Capítulo 6

Enquanto Kevin ia para o seu compromisso misterioso (misterioso para mim, que havia ficado excessivamente curiosa após nosso sorvete), fiquei em casa terminando de organizar minhas coisas. Eu não tinha levado mais do que o necessário, que consistia em roupas e objetos pessoais, assim como um exemplar de “O Morro dos Ventos Uivantes”[1] e outro de “A Hora da Estrela”[2], livros que eu gostava muito.

Será que meu novo amigo estava com esperanças de encontrar a ex-namorada naquele dia? Eu conseguia imaginar essa garota claramente, ela devia ser a típica americana: loira dos olhos azuis, alta e peituda. Todas essas coisas que eu não era, começando pelo "americana" e terminando com o "peituda". Por que mesmo eu estava constatando isso? Me importava ser como ela?

Lena tinha me prometido uma ajuda para aprimorar meu inglês, mas naquele primeiro dia de trabalho, eu estava com preguiça e fui para minha suíte.

Dormi tão pesado que não ouvi a porta do quarto de Kevin se abrir com sua chegada, nem o som de seu chuveiro sendo ligado.

No outro dia, pela manhã, ele não estava presente na cozinha e eu supus que acordaria tarde. “Quem pode, pode!”, foi meu pensamento. E quem não pode...

Isso me fez invejá-lo um pouco. Kevin era rico, bonito, tinha a casa mais linda que eu já tinha visto, e sequer precisava trabalhar. Ele pertencia a um grupo de pessoas extremamente privilegiadas, mas será que sua felicidade condizia com todas essas bênçãos? É, eu fazia perguntas demais, principalmente sobre coisas que não eram da minha conta.

Senti curiosidade de saber algum defeito dele. Um cara não poderia ser perfeito, ainda que levasse a vida perfeita.

Seria ele violento e agressivo? Eu duvidava, pois seu semblante era simpático demais, embora soubesse que quem vê cara, não vê coração.

Fui trabalhar, e durante o restante da minha primeira semana, continuei sem vê-lo.

Foram dias tranquilos com a minha nova rotina.  As coisas iam se encaixando dia a dia, conforme eu pegava prática no trabalho. A casa grande que de início me assustara, agora começava a parecer menos monstruosamente inabitável.

Eu me acostumei com minha cama grande e macia, o que não era difícil.

Lena e eu começamos nossas aulas de aprimoramento, o que nos aproximou.

Falei com minha família por mais duas vezes ao telefone e comecei a sentir as saudades apertarem.

Ao menos tudo estava bem a quilômetros de distância, assim como estava ali.

**

Foi no final de semana que voltei a ver Kevin. Era o meu dia de  folga e fiquei até tarde na suíte, descansando enquanto o ventilador de teto jogava um pouco de seu vento fresco sobre mim.

– E aí?! – ele disse quando desci para tomar café. 

Ainda ficava sem jeito com aquela situação. Não é fácil se acostumar com a casa alheia (exceto com a cama confortável), tampouco se sentir à vontade nela, mas as coisas estavam fluindo. Eu dizia a mim mesma que estava hospedada em um hotel e pagava por isso com meu trabalho, embora não me fosse permitido usar a vassoura para tirar um grão de poeira daquele chão.

– E aí?! – repeti. 

Ele parecia diferente das primeiras vezes em que o vira, embora não tivessem se passado mais do que alguns dias. Essa diferença não influenciava sua beleza. E eu deveria parar de reparar nisso!

– Quanto tempo – comentei.

– Duas pessoas podem morar na mesma casa e mesmo assim ficar dias sem se ver – ele constatou.

– Se for uma casa grande como esta, realmente! Onde você morava antes de se mudar para cá?

Essa era outra curiosidade minha.

– Em uma casa não tão grande assim. E você?

– Rum! – Ri. – Digamos que o apartamento da minha irmã era do tamanho da sua sala.

Ele sorriu e caminhou até a geladeira, pegando um iogurte e me oferecendo. Neguei e agradeci. Em seguida, Kevin abriu a tampa e passou sua língua vermelha sobre ela, aproveitando todo o resto de iogurte contido ali. Era uma visão obscena, eu não podia negar, mas, para ele, aquilo parecia natural demais, o que demonstrava que a maldade estava na minha cabeça. 

Em seguida, pegou uma garrafa de água relativamente grossa entre os dedos, e chacoalhou. Eram referências sexuais demais para uma manhã só. Isso me fez chegar à conclusão de que eu deveria procurar a igreja mais próxima.

Havia um templo Batista a alguns quarteirões, e eu sabia que a família que me acolhera costumava frequentá-la, embora não mais tão assiduamente conforme Lena revelara em tom de autopenalização.

– Semana badalada – ele respondeu. 

Resisti ao ímpeto de perguntar sobre a ex-namorada peituda. Eu não tinha nada a ver com a vida dele, afinal, e tinha que parar também de ser curiosa. 

– Vai fazer o que hoje? – perguntou. 

Dei de ombros. 

– Reler “O Morro dos Ventos Uivantes” e talvez dar um passeio. 

Eu ainda não tinha recebido meu salário, apenas um adiantamento para me manter nos primeiros dias. Claro que eu tinha muitas opções de coisas para fazer na minha folga, até mesmo porque, tinha que aproveitar a Califórnia, mas agora não sabia o que fazer com esse tempo livre. Por onde começar? Essa também devia ser a pergunta de quem limpava os cômodos da mansão.

Tudo o que eu sabia era que a cidade me oferecia muitas opções.

– Gosto da Cathy e do Heathcliff – contou Kevin.

Quase arregalei os olhos. 

Ele não tinha a aparência de um grande conhecedor de literatura, mas constatei que aquele era mais um preconceito meu. Um cara gato não podia ser inteligente também? Nem minimamente culto? O fato é que ele era. “O Morro dos Ventos Uivantes”, eu bem sabia, não era do tipo que agradava a todos. Uma obra de arte incompreendida.

– Sério?

– Sim! Li por obrigação em uma aula de literatura inglesa no ensino médio, e acabei me apaixonando pela aura de mistério do livro. 

– Gosto do modo como as personagens são todas detestáveis, mas o livro é adorável a despeito disso.

– Pra mim a única personagem que se salva é a Nelly, ela é a voz da razão – disse Kevin. – Acho que é por isso que a história é narrada por ela ao Lockwood, e a nós.

Ele estava certo! Eu enxergava da mesma forma. Cathy era uma personagem insuportável e egoísta, Heathcliff era vingativo e rancoroso, e os demais eram todos extremamente tolos a ponto de deixá-los destruir suas vidas. Entretanto, Nelly estava sempre lá, racional e observadora.

– Você conhece a Inglaterra? – perguntei curiosa.

A família dele parecia ser do tipo que passava cada férias em um país diferente, afinal o dinheiro servia para isso. Era o que eu mesma faria se pudesse: conhecer o mundo. Dos castelos às cascatas, passando por lagos cobertos de gelo e pelas praias havaianas.

– Que nada! Depois que vim pros EUA, nunca mais saí daqui.

– Nem mesmo para visitar o Brasil?

Ele negou com a cabeça e eu fiquei surpresa, pois isso significava que Kevin nunca mais tinha visto seus parentes (se os tivesse, e eu imaginava que sim).

– A lanchonete sempre foi mais importante – havia certa mágoa em sua voz. – Até mesmo que os meus avós. A lanchonete e o diploma que meus pais tanto querem que eu consiga.

Voltamos a debater mais sobre o romance de Emily Brontë. Kevin disse também apreciar os livros de suas irmãs, Anne e Charlotte Brontë, e eu fiquei instigada a lê-los também.

– Você gostou do filme de 1992?

– Eu adorei! – respondi. E fiz uma verdadeira crítica cinematográfica (amadora) sobre ele.

– Tenho a fita. Se quiser rever, te empresto.

– Sério?

– Uhum!

Ele mudou de assunto, o que me fez voltar à realidade:

– Mas que tal trocar o Heathcliff por uma festa na piscina?

– Festa na piscina?

– É! Chamei uns amigos para virem aqui. Você está convidada.

Kevin deu uma piscadela tão despretensiosa quanto sua beleza. E eu não neguei ao seu convite.

[1] Emily Brontë (1818-1848)

[2] Clarice Lispector (1920-1977)

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