Enquanto Kevin ia para o seu compromisso misterioso (misterioso para mim, que havia ficado excessivamente curiosa após nosso sorvete), fiquei em casa terminando de organizar minhas coisas. Eu não tinha levado mais do que o necessário, que consistia em roupas e objetos pessoais, assim como um exemplar de “O Morro dos Ventos Uivantes”[1] e outro de “A Hora da Estrela”[2], livros que eu gostava muito.
Será que meu novo amigo estava com esperanças de encontrar a ex-namorada naquele dia? Eu conseguia imaginar essa garota claramente, ela devia ser a típica americana: loira dos olhos azuis, alta e peituda. Todas essas coisas que eu não era, começando pelo "americana" e terminando com o "peituda". Por que mesmo eu estava constatando isso? Me importava ser como ela?
Lena tinha me prometido uma ajuda para aprimorar meu inglês, mas naquele primeiro dia de trabalho, eu estava com preguiça e fui para minha suíte.Dormi tão pesado que não ouvi a porta do quarto de Kevin se abrir com sua chegada, nem o som de seu chuveiro sendo ligado.No outro dia, pela manhã, ele não estava presente na cozinha e eu supus que acordaria tarde. “Quem pode, pode!”, foi meu pensamento. E quem não pode...
Isso me fez invejá-lo um pouco. Kevin era rico, bonito, tinha a casa mais linda que eu já tinha visto, e sequer precisava trabalhar. Ele pertencia a um grupo de pessoas extremamente privilegiadas, mas será que sua felicidade condizia com todas essas bênçãos? É, eu fazia perguntas demais, principalmente sobre coisas que não eram da minha conta.
Senti curiosidade de saber algum defeito dele. Um cara não poderia ser perfeito, ainda que levasse a vida perfeita.
Seria ele violento e agressivo? Eu duvidava, pois seu semblante era simpático demais, embora soubesse que quem vê cara, não vê coração.
Fui trabalhar, e durante o restante da minha primeira semana, continuei sem vê-lo.
Foram dias tranquilos com a minha nova rotina. As coisas iam se encaixando dia a dia, conforme eu pegava prática no trabalho. A casa grande que de início me assustara, agora começava a parecer menos monstruosamente inabitável.
Eu me acostumei com minha cama grande e macia, o que não era difícil.
Lena e eu começamos nossas aulas de aprimoramento, o que nos aproximou.Falei com minha família por mais duas vezes ao telefone e comecei a sentir as saudades apertarem.Ao menos tudo estava bem a quilômetros de distância, assim como estava ali.
**Foi no final de semana que voltei a ver Kevin. Era o meu dia de folga e fiquei até tarde na suíte, descansando enquanto o ventilador de teto jogava um pouco de seu vento fresco sobre mim.
– E aí?! – ele disse quando desci para tomar café.
Ainda ficava sem jeito com aquela situação. Não é fácil se acostumar com a casa alheia (exceto com a cama confortável), tampouco se sentir à vontade nela, mas as coisas estavam fluindo. Eu dizia a mim mesma que estava hospedada em um hotel e pagava por isso com meu trabalho, embora não me fosse permitido usar a vassoura para tirar um grão de poeira daquele chão.
– E aí?! – repeti.
Ele parecia diferente das primeiras vezes em que o vira, embora não tivessem se passado mais do que alguns dias. Essa diferença não influenciava sua beleza. E eu deveria parar de reparar nisso!
– Quanto tempo – comentei.
– Duas pessoas podem morar na mesma casa e mesmo assim ficar dias sem se ver – ele constatou.
– Se for uma casa grande como esta, realmente! Onde você morava antes de se mudar para cá?
Essa era outra curiosidade minha.
– Em uma casa não tão grande assim. E você?
– Rum! – Ri. – Digamos que o apartamento da minha irmã era do tamanho da sua sala.
Ele sorriu e caminhou até a geladeira, pegando um iogurte e me oferecendo. Neguei e agradeci. Em seguida, Kevin abriu a tampa e passou sua língua vermelha sobre ela, aproveitando todo o resto de iogurte contido ali. Era uma visão obscena, eu não podia negar, mas, para ele, aquilo parecia natural demais, o que demonstrava que a maldade estava na minha cabeça.
Em seguida, pegou uma garrafa de água relativamente grossa entre os dedos, e chacoalhou. Eram referências sexuais demais para uma manhã só. Isso me fez chegar à conclusão de que eu deveria procurar a igreja mais próxima.
Havia um templo Batista a alguns quarteirões, e eu sabia que a família que me acolhera costumava frequentá-la, embora não mais tão assiduamente conforme Lena revelara em tom de autopenalização.
– Semana badalada – ele respondeu.
Resisti ao ímpeto de perguntar sobre a ex-namorada peituda. Eu não tinha nada a ver com a vida dele, afinal, e tinha que parar também de ser curiosa.
– Vai fazer o que hoje? – perguntou.
Dei de ombros.
– Reler “O Morro dos Ventos Uivantes” e talvez dar um passeio.
Eu ainda não tinha recebido meu salário, apenas um adiantamento para me manter nos primeiros dias. Claro que eu tinha muitas opções de coisas para fazer na minha folga, até mesmo porque, tinha que aproveitar a Califórnia, mas agora não sabia o que fazer com esse tempo livre. Por onde começar? Essa também devia ser a pergunta de quem limpava os cômodos da mansão.
Tudo o que eu sabia era que a cidade me oferecia muitas opções.
– Gosto da Cathy e do Heathcliff – contou Kevin.
Quase arregalei os olhos.
Ele não tinha a aparência de um grande conhecedor de literatura, mas constatei que aquele era mais um preconceito meu. Um cara gato não podia ser inteligente também? Nem minimamente culto? O fato é que ele era. “O Morro dos Ventos Uivantes”, eu bem sabia, não era do tipo que agradava a todos. Uma obra de arte incompreendida.
– Sério?
– Sim! Li por obrigação em uma aula de literatura inglesa no ensino médio, e acabei me apaixonando pela aura de mistério do livro.
– Gosto do modo como as personagens são todas detestáveis, mas o livro é adorável a despeito disso.
– Pra mim a única personagem que se salva é a Nelly, ela é a voz da razão – disse Kevin. – Acho que é por isso que a história é narrada por ela ao Lockwood, e a nós.
Ele estava certo! Eu enxergava da mesma forma. Cathy era uma personagem insuportável e egoísta, Heathcliff era vingativo e rancoroso, e os demais eram todos extremamente tolos a ponto de deixá-los destruir suas vidas. Entretanto, Nelly estava sempre lá, racional e observadora.
– Você conhece a Inglaterra? – perguntei curiosa.
A família dele parecia ser do tipo que passava cada férias em um país diferente, afinal o dinheiro servia para isso. Era o que eu mesma faria se pudesse: conhecer o mundo. Dos castelos às cascatas, passando por lagos cobertos de gelo e pelas praias havaianas.
– Que nada! Depois que vim pros EUA, nunca mais saí daqui.
– Nem mesmo para visitar o Brasil?
Ele negou com a cabeça e eu fiquei surpresa, pois isso significava que Kevin nunca mais tinha visto seus parentes (se os tivesse, e eu imaginava que sim).
– A lanchonete sempre foi mais importante – havia certa mágoa em sua voz. – Até mesmo que os meus avós. A lanchonete e o diploma que meus pais tanto querem que eu consiga.
Voltamos a debater mais sobre o romance de Emily Brontë. Kevin disse também apreciar os livros de suas irmãs, Anne e Charlotte Brontë, e eu fiquei instigada a lê-los também.
– Você gostou do filme de 1992?
– Eu adorei! – respondi. E fiz uma verdadeira crítica cinematográfica (amadora) sobre ele.
– Tenho a fita. Se quiser rever, te empresto.
– Sério?
– Uhum!
Ele mudou de assunto, o que me fez voltar à realidade:
– Mas que tal trocar o Heathcliff por uma festa na piscina?
– Festa na piscina?
– É! Chamei uns amigos para virem aqui. Você está convidada.
Kevin deu uma piscadela tão despretensiosa quanto sua beleza. E eu não neguei ao seu convite.
[1] Emily Brontë (1818-1848)
[2] Clarice Lispector (1920-1977)
A festa da piscina acabou não acontecendo naquele dia, então eu pude continuar com minha leitura.– Nós queremos preparar um almoço especial no domingo para comemorar sua chegada – disse Lena. – Pretendíamos fazer isso antes, mas estávamos atribulados.Estranhei, pois não sabia que minha estadia ali era motivo de comemoração para eles, mesmo que para mim fosse.– Não precisa, imagine! – respondi absolutamente sem jeito.– Nós fazemos questão! Qual é o seu prato preferido? – Como de tudo.– Deve haver algo de que você goste mais. Que tal um churrasco?Carne assada me fazia lembrar da minha infância, quando as coisas eram mais fáceis para minha família e a vizinhança toda se reunia em nossa casa para almoçar nos feriados. Cada um levava um prato. Alguns levavam o arroz, outros a farofa, e havia aqueles que faziam a vinagrete.Minha chefe saiu do cômodo, me deixando sozinha no sofá amplo com a televisão ligada em um programa de fofocas de celebridades. Eu não me sentia à vontade o sufi
Festa na piscina era uma boa pedida para um dia de folga.Imaginei jovens animados dançando no jardim da casa dos meus anfitriões, e embora eu mesma não soubesse dançar, me animei também.O jantar de boas-vindas tinha me deixado mais à vontade, de forma que eu já não me sentia mais uma completa intrusa, só meia, mesmo. O mesmo poderia ser dito sobre meu bolo de aniversário. Se a intenção dos meus chefes era aumentar meu entrosamento, eles tinham conseguido com sucesso.– Aquela festa vai rolar hoje e você está convidada – disse Kevin.– Beleza! – respondi.Apesar disso, estava tensa, pois não conhecia os amigos dele, nem sabia se era cabível participar desse momento de lazer. Lena e João eram bons patrões e me tratavam muito bem, mas eu deveria abusar? Isso não era misturar as coisas?Você que está lendo já deve estar farto das minhas perguntas. Antes que eu pudesse expor esse pensamento, Kevin tinha dado as costas.Eu subi para escolher um traje de banho dentre os meus poucos. Olh
Ah, as praias de Los Angeles.A melhor escolha do dia fora sair da festa na piscina e ir para a beira do mar. Decisão acertadíssima. Era muito mais divertido ouvir o barulho das ondas do que o das vozes alteradas dos jovens quase bêbados, embora elas tivessem soado divertidas até certo ponto.Preciso dizer que não estava com ciúmes do brilho de Summer, ou da atenção de Kevin, que eu conhecia há tão pouco tempo, sobre ela. A questão é que eu não me sentia parte daquele mundo de mauricinhos de Beverly Hills. Eu estava nele, de fato, mas de passagem, e logo voltaria para minha antiga vida suburbana.Eles eram ricos, bonitos, e tinham sido agraciados com uma vida fácil demais, o que tornava sua existência quase entediante. Já eu, tinha tantos degraus a galgar, que era quase um luxo poder sentir tédio.Por alguma razão, em algum momento eu cogitara fazer parte deste universo, mas não fazia e tinha que aceitar isso, o que não era uma tarefa complicada.Pelo contrário, aquele não era meu lug
Foi a primeira vez que sonhei com Kevin. Um sonho quase erótico com o filho dos meus patrões. Algo tão indevido. Mas eu não tinha culpa, não é?! Ou será que tinha? Ah, Freud que explicasse isso do além, se quisesse. A mim mesma, eu estava reservando o direito de esquecer o assunto.Nossa conversa na praia terminara com ele se levantando, me estendendo a mão e me levando de volta para a festa onde Summer já não estava. Nenhum beijo acontecera. Não até o sonho, é claro.Acordei decepcionada, mas ao mesmo tempo aliviada, pois se a situação fosse real, poderia ter consequências graves (que talvez valessem a pena se ele beijasse tão bem na vida real quanto no sonho)."Ou vai, ou racha", era o que minha irmã costumava dizer quando me via com medo de algo. Apesar de eu estar longe de ser medrosa. Ok, ok, eu admito que era. Entretanto, não gostava dessa frase, pois ela me colocava na obrigação iminente de uma escolha. Às vezes, eu era boa em fazê-las, mas em outras não. Nesse caso, escolhi d
O ambiente era bem diferente da lanchonete dos pais de Kevin, e perdia muito em elegância, não chegando a poder se considerar um concorrente da Milk Shakespeare, sendo, porém, agradável o suficiente para que eu desejasse voltar; desta vez sem os intrusos.O McDonald’s era muito ofuscado na região devido à variedade de estabelecimentos do ramo alimentício. Ronald McDonal’d não era tão venerado quanto eu achava, mas, sendo sincera, era apaixonada por seu molho especial (cebola, picles, no pão com gergelim).Sentamo-nos em uma mesa de quatro cadeiras. Summer e Junior lado a lado e Kevin e eu opostos a eles. Este último estava visivelmente incomodado com a presença da ex-namorada ao lado de alguém que eu julgara ser seu amigo. Devia estar enganado, pois Junior não demonstrava nenhum constrangimento de estar com ela, pelo contrário, ele parecia estar feliz como alguém que tinha acabado de ganhar um troféu, que no caso era uma garota. Talvez ele tivesse ganhado outra coisa na sala de cinem
Pela primeira vez desde minha chegada, Lena iria receber visitas. Tratava-se de algumas das mulheres da vizinhança e do clube que sua família frequentava. Todas madames, eu supunha (e estava certa). Uma versão mais velha e feminina dos amigos de Kevin.Fui para o meu quarto para não atrapalhar, apesar de ter sido convidada a participar daquele momento "mulheres ricas". Eu imaginei que elas discutiriam juntas seus problemas de, adivinhe: mulheres ricas. Não eram, definitivamente, problemas sobre os quais eu poderia falar com conhecimento de causa, então preferi me abster. Se elas quisessem falar sobre contar moedas, aí sim eu poderia participar, mas não era o caso.Queria ligar para minha irmã para perguntar sobre a novela cujo primeiro capítulo eu tinha assistido antes de viajar para a Califórnia, mas que tinha sido o suficiente para ficar curiosa para saber quem seria A Próxima Vítima[1] (era esse mesmo o nome da novela). Nos EUA, as séries eram mais populares, e eu percebi que elas
Cortei as cebolas e as armazenei em um pote para que Alejandro utilizasse conforme preparava hambúrgueres.– Vai fazer o que hoje? – ele perguntou.– Que eu saiba, nada – dei de ombros. – Sem planos.– Quer conhecer a parte pobre de Beverly Hills?Aceitei o convite. Eu estava curiosa para saber mais sobre essa parte do bairro desde que ele me falara sobre o lugar onde morava. Até ali havia me alimentado com a imagem de pessoas ricas.– Vou preparar uma Tamale para nós.– Tamale? – perguntei.– É um prato típico mexicano.Antes de irmos, passamos no supermercado mais próximo para comprar os ingredientes para o tal prato. Alejandro colocou milho, queijo, pimentões e outras coisas em sua cesta.– Você veio para trabalhar aqui? – o interpelei.– Que nada! Vim sem emprego mesmo. Procurei muito em restaurantes de comida mexicana, mas não encontrei. Aí em um belo dia, acordei e decidi conhecer a famosa Beverly Hills (nessa época morava a alguns quilômetros de Bel Air). Sem a intenção, dei de
No final de semana seguinte, Lena estava de maiô na sala quando desci. Eu ainda ficava tensa de perambular pela casa, mas era inevitável; tinha que passar pela sala em algum momento, caso contrário pareceria uma princesa presa na torre.E a mansão realmente parecia um castelo moderno.Na tarde em que eu fora à casa dos meus amigos mexicanos, voltara cedo para não dar motivos para reclamações.– A fim de ir ao clube comigo? – ela convidou.– Clube?– Sim! E aí, vamos? Às vezes, eu trabalho tanto na lanchonete que preciso de um respiro, compreende?De fato Lena trabalhava muito. Eu ficava abismada com o fato de que uma madame, o que era o seu caso, continuasse fazendo isso mesmo estando rica o suficiente para se dar ao luxo de relaxar um pouquinho. Muitas, em seu lugar, estariam apenas colhendo os frutos do trabalho, ao invés de permanecer trabalhando. Ela era aficionada pela lanchonete, e isso me causava admiração. Eu queria ser como ela quando crescesse.– Kevin vai mais tarde – ela c