A buzina do carro de Kevin me despertou do torpor da revista que eu estava folheando – a Elle, cuja capa era estampada pela linda Kate Moss. A matéria da página onde ela estava aberta era sobre a moda das gargantilhas. O último parágrafo dizia que se você era uma garota e não tinha uma, estava fora de moda. Eu podia ter ficado ofendida, pois não havia gargantilha alguma entre as minhas coisas.
Kevin estava alguns minutos atrasado. Eu tinha saído da lanchonete após o horário de almoço ser encerrado e, sentada na mureta dos fundos, o aguardava. A Julia Roberts não tinha aparecido, mas o dia tinha sido ótimo mesmo assim.
Embora eu trabalhasse dentro da cozinha, pude ver alguns clientes circulando pelo salão. Eram pessoas ricas, bonitas e que comiam feito bois famintos.
– Vamos? – ele perguntou segurando o volante.
Abri a porta do Mustang e entrei com medo de batê-la com muita força, pois aquele carro era caro demais e muito bem cuidado.
– Para onde vamos?
Eu estava mais à vontade agora que sabia que aquilo não era uma furada das piores. Me sentia mais segura, e portanto ainda mais animada.
– Para onde quer ir?
– Você quem sabe – disse para ser educada.
Mas na verdade eu queria mesmo era conhecer o icônico letreiro de Hollywood. Ele estava no topo da minha lista.
Eu gostava de assistir a filmes. O dono da locadora que eu frequentava no Rio de Janeiro estava farto de olhar para a minha cara, principalmente depois que eu ficara sem trabalho. Era lendo e assistindo a produções cinematográficas que eu ocupava o meu tempo. Ah, e não podia me esquecer das novelas que passavam na televisão. Tudo isso me ajudava a desanuviar a cabeça da vida real.
Kevin, além de bonito, parecia ter o dom de ler mentes, pois foi exatamente para lá que me levou.
Percebi que seus cabelos castanhos eram finos, pois se moviam com muita facilidade com o vento que entrava pela janela. Ele estava com seu Ray-ban que o deixava estiloso. Aliás, Kevin era puro estilo, e isso se revelava de um jeito despretensioso. Eu sabia que mesmo que ele não usasse roupas de marca, continuaria belo. Apreciava esse tipo de beleza até mesmo em mim. Era irônico como meu cabelo ficava mais bonito preso em um coque improvisado do que super arrumado com laquê.
O local ficava no Mount Lee, no parque Griffith, ao norte da Mulholland Highway, e havia sido criado em 1921, era dourada de Hollywood.
O terreno áspero e íngreme era assim justamente para impedir os acessos não autorizados, e eu sabia que não seria possível chegar tão perto, por isso fiquei contente apenas de vê-la de longe, do carro de Kevin. Claro que eu queria tocá-la, me aproximar, mas aquilo era o bastante para mim. Eu estava satisfeita.
– Este é um lugar necessário! – comentei. – Não queria ir embora sem conhecê-lo, e consegui fazer isso logo no meu segundo dia. Comecei com o pé direito.
– Eu diria que é o primeiro – ele retorquiu. – O dia da chegada não conta. Mas e aí, o que achou?
– Menor do que eu pensava. Estou acostumada com o Cristo Redentor. Mas mesmo assim, dá um friozinho na barriga só de olhar e pensar no que isso representa.
Sorri por saber que tinha acabado de realizar um pequeno sonho, na verdade não tão pequeno assim. Ok, era um grande sonho! E grandes também seriam os que estavam por vir. Mas vamos por partes.
Dali, nosso passeio seguiu para uma sorveteria próxima.
– Você vive aqui desde a infância, né?! – perguntei enquanto pegava delicadamente com a colher o sorvete de Vanilla.
Eu não queria parecer obscena lambendo excessivamente o conteúdo da casquinha. Já Kevin, não parecia se importar com sua sensualidade enquanto sua língua vermelhinha tocava o doce gelado.
Eu amava sorvetes! Acho que já disse isso, né?! Os anos trabalhando em uma sorveteria fizeram eu me apaixonar por seus produtos. Esse era meu carro-chefe, e sempre que eu fazia para meus familiares, era elogiada. Por isso o verão era minha estação favorita. Minha receita secreta era minha obra prima.
– Eu era quase um adolescente quando vim, e não fiquei tão animado quanto você está agora.
– Sério?
– Uhum! Eu gostava de viver no Brasil, e quando cheguei, tive que reaprender tudo. Nova escola, novos amigos, tudo novo. Não foi muito fácil. Essa é uma fase da vida em que estamos um tanto... rebeldes. Eu era a rebeldia em pessoa. Mas acabei me acostumando na marra.
– Eu imagino, quer dizer, eu meio que sei como se sentiu. É como estou me sentindo, embora tenha prazo de validade aqui. É tudo novo para mim também. Confesso que ainda estou um pouco assustada!
– Nem perguntei como foi seu primeiro dia na lanchonete.
– Foi ótimo! Sua mãe me tratou muito bem, seu pai também. Os clientes não reclamaram de nada que fiz. Acho que isso é um bom sinal.
Falamos sobre isso por alguns minutos, até que Kevin olhou para o relógio e eu percebi que um cara como ele devia estar cheio de compromissos. Devia haver uma fila de garotas na cidade esperando pela oportunidade de beijá-lo e outras cositas más. Será que ele distribuía senhas? Não que eu tivesse a intenção de pegar uma.
– Vamos? – perguntou ele.
Assenti com a cabeça e Kevin pagou a conta. Ele devia ter algum compromisso importante naquele fim de tarde.
Voltamos para casa ao som de Ice Mc, um rapper que Kevin me apresentou. Eu nunca tinha ouvido nenhuma música dele, mas parecia que o cara estava em alta em Los Angeles, e a batida era boa a ponto de não deixar meus pés ficarem parados sobre o tapete emborrachado do carro.
– Yale é animada? – perguntei curiosa.
Eu tinha muitas dúvidas sobre universidades americanas, mas mais ainda sobre como era a vida de Kevin. Imaginava um campus repleto de jovens atraentes e cheios de energia, que fumavam maconha nos intervalos das aulas.
Eu sabia tão pouco sobre ele, e ele sobre mim, e acho que eu estava ainda mais em desvantagem.
– Olha, eu confesso que prefiro LA. Me mudar para Yale foi tão difícil quanto vir para cá. Me acostumei a Los Angeles, mas ainda não me acostumei com a universidade.
– Sério?
Eu achava que rapazes como ele não tinham dificuldades na vida, por isso me surpreendi com a confissão. Era natural para mim que a mudança para LA na pré-adolescência tivesse sido complicada, mas um Kevin já adulto, bonitão e inteligente indo para a universidade, não parecia ser do tipo que sofria com obstáculos. Na verdade, eu poderia imaginar as pessoas estendendo um tapete vermelho para ele passar, mas isso podia ser preconceito meu, afinal pessoas bonitas também podiam ter os seus problemas, ainda que estes fossem apenas “problemas de pessoas bonitas (e ricas)”.
Kevin poderia ser um ator em Hollywood se quisesse (e tivesse talento pra atuar, é claro), pois sua beleza o permitia. Leonardo DiCaprio que se cuidasse.
– Fui para lá por livre e espontânea pressão.
– Hum – respondi sem ter o que dizer.
– Nunca passou por isso?
Não, eu nunca tinha passado. Na verdade, minha vida era o oposto. Minha mãe e minha irmã me incentivavam a continuar levando a mesma vida de sempre, e era eu quem queria mais. Não que eu fosse um poço de ambição, mas tinha uma sede de algo que não sabia o que era, e que poucos dias após minha chegada a Califórnia, entendi se tratar de sede pela vida. Eu precisava me sentir viva e, para isso, beber daquela água. Precisava sair do lugar, sentir o vento bater em meu rosto. Conhecer o mundo. Vencer meus medos mesmo que eles fizessem parte de mim.
– Por isso não, mas já passei por outras coisas.
– Tipo...
– Longa história. Outro dia te conto – saí na defensiva. – Por que não queria ir?
– Deixei uma namorada aqui – ele contou por fim.
E eu vi em seus olhos um brilho diferente, talvez melancólico. Então entendi tudo.
– Ah – sorri. – Agora faz sentido.
– É – ele sorriu de volta, como se tivesse entendido que eu, por minha vez, compreendera o âmago de seu dilema.
Ou talvez fosse mais profundo do que isso, e a garota não fosse o centro de tudo. Contudo, ainda era cedo para que eu soubesse disso. Kevin era muito mais complexo, e isso era algo que eu ainda iria descobrir.
– Ela ainda está em Los Angeles?
– Nesse momento? Não sei. Mas provavelmente chegará a qualquer hora. Férias na universidade...
– Vocês vão se encontrar por aí nesse verão.
– É! – ele respondeu se levantando para irmos embora. – Na verdade a essa altura isso já não importa.
– Você ainda gosta dela? – mentira. Eu não perguntei isso.
Seria um pouco demais. Eu não era tão invasiva assim.
O Mustang estacionou dentro da garagem da mansão. Nós havíamos chegado em casa.
Enquanto Kevin ia para o seu compromisso misterioso (misterioso para mim, que havia ficado excessivamente curiosa após nosso sorvete), fiquei em casa terminando de organizar minhas coisas. Eu não tinha levado mais do que o necessário, que consistia em roupas e objetos pessoais, assim como um exemplar de “O Morro dos Ventos Uivantes”[1] e outro de “A Hora da Estrela”[2], livros que eu gostava muito.Será que meu novo amigo estava com esperanças de encontrar a ex-namorada naquele dia? Eu conseguia imaginar essa garota claramente, ela devia ser a típica americana: loira dos olhos azuis, alta e peituda. Todas essas coisas que eu não era, começando pelo "americana" e terminando com o "peituda". Por que mesmo eu estava constatando isso? Me importava ser como ela?Lena tinha me prometido uma ajuda para aprimorar meu inglês, mas naquele primeiro dia de trabalho, eu estava com preguiça e fui para minha suíte. Dormi tão pesado que não ouvi a porta do quarto de Kevin se abrir com sua chegada, n
A festa da piscina acabou não acontecendo naquele dia, então eu pude continuar com minha leitura.– Nós queremos preparar um almoço especial no domingo para comemorar sua chegada – disse Lena. – Pretendíamos fazer isso antes, mas estávamos atribulados.Estranhei, pois não sabia que minha estadia ali era motivo de comemoração para eles, mesmo que para mim fosse.– Não precisa, imagine! – respondi absolutamente sem jeito.– Nós fazemos questão! Qual é o seu prato preferido? – Como de tudo.– Deve haver algo de que você goste mais. Que tal um churrasco?Carne assada me fazia lembrar da minha infância, quando as coisas eram mais fáceis para minha família e a vizinhança toda se reunia em nossa casa para almoçar nos feriados. Cada um levava um prato. Alguns levavam o arroz, outros a farofa, e havia aqueles que faziam a vinagrete.Minha chefe saiu do cômodo, me deixando sozinha no sofá amplo com a televisão ligada em um programa de fofocas de celebridades. Eu não me sentia à vontade o sufi
Festa na piscina era uma boa pedida para um dia de folga.Imaginei jovens animados dançando no jardim da casa dos meus anfitriões, e embora eu mesma não soubesse dançar, me animei também.O jantar de boas-vindas tinha me deixado mais à vontade, de forma que eu já não me sentia mais uma completa intrusa, só meia, mesmo. O mesmo poderia ser dito sobre meu bolo de aniversário. Se a intenção dos meus chefes era aumentar meu entrosamento, eles tinham conseguido com sucesso.– Aquela festa vai rolar hoje e você está convidada – disse Kevin.– Beleza! – respondi.Apesar disso, estava tensa, pois não conhecia os amigos dele, nem sabia se era cabível participar desse momento de lazer. Lena e João eram bons patrões e me tratavam muito bem, mas eu deveria abusar? Isso não era misturar as coisas?Você que está lendo já deve estar farto das minhas perguntas. Antes que eu pudesse expor esse pensamento, Kevin tinha dado as costas.Eu subi para escolher um traje de banho dentre os meus poucos. Olh
Ah, as praias de Los Angeles.A melhor escolha do dia fora sair da festa na piscina e ir para a beira do mar. Decisão acertadíssima. Era muito mais divertido ouvir o barulho das ondas do que o das vozes alteradas dos jovens quase bêbados, embora elas tivessem soado divertidas até certo ponto.Preciso dizer que não estava com ciúmes do brilho de Summer, ou da atenção de Kevin, que eu conhecia há tão pouco tempo, sobre ela. A questão é que eu não me sentia parte daquele mundo de mauricinhos de Beverly Hills. Eu estava nele, de fato, mas de passagem, e logo voltaria para minha antiga vida suburbana.Eles eram ricos, bonitos, e tinham sido agraciados com uma vida fácil demais, o que tornava sua existência quase entediante. Já eu, tinha tantos degraus a galgar, que era quase um luxo poder sentir tédio.Por alguma razão, em algum momento eu cogitara fazer parte deste universo, mas não fazia e tinha que aceitar isso, o que não era uma tarefa complicada.Pelo contrário, aquele não era meu lug
Foi a primeira vez que sonhei com Kevin. Um sonho quase erótico com o filho dos meus patrões. Algo tão indevido. Mas eu não tinha culpa, não é?! Ou será que tinha? Ah, Freud que explicasse isso do além, se quisesse. A mim mesma, eu estava reservando o direito de esquecer o assunto.Nossa conversa na praia terminara com ele se levantando, me estendendo a mão e me levando de volta para a festa onde Summer já não estava. Nenhum beijo acontecera. Não até o sonho, é claro.Acordei decepcionada, mas ao mesmo tempo aliviada, pois se a situação fosse real, poderia ter consequências graves (que talvez valessem a pena se ele beijasse tão bem na vida real quanto no sonho)."Ou vai, ou racha", era o que minha irmã costumava dizer quando me via com medo de algo. Apesar de eu estar longe de ser medrosa. Ok, ok, eu admito que era. Entretanto, não gostava dessa frase, pois ela me colocava na obrigação iminente de uma escolha. Às vezes, eu era boa em fazê-las, mas em outras não. Nesse caso, escolhi d
O ambiente era bem diferente da lanchonete dos pais de Kevin, e perdia muito em elegância, não chegando a poder se considerar um concorrente da Milk Shakespeare, sendo, porém, agradável o suficiente para que eu desejasse voltar; desta vez sem os intrusos.O McDonald’s era muito ofuscado na região devido à variedade de estabelecimentos do ramo alimentício. Ronald McDonal’d não era tão venerado quanto eu achava, mas, sendo sincera, era apaixonada por seu molho especial (cebola, picles, no pão com gergelim).Sentamo-nos em uma mesa de quatro cadeiras. Summer e Junior lado a lado e Kevin e eu opostos a eles. Este último estava visivelmente incomodado com a presença da ex-namorada ao lado de alguém que eu julgara ser seu amigo. Devia estar enganado, pois Junior não demonstrava nenhum constrangimento de estar com ela, pelo contrário, ele parecia estar feliz como alguém que tinha acabado de ganhar um troféu, que no caso era uma garota. Talvez ele tivesse ganhado outra coisa na sala de cinem
Pela primeira vez desde minha chegada, Lena iria receber visitas. Tratava-se de algumas das mulheres da vizinhança e do clube que sua família frequentava. Todas madames, eu supunha (e estava certa). Uma versão mais velha e feminina dos amigos de Kevin.Fui para o meu quarto para não atrapalhar, apesar de ter sido convidada a participar daquele momento "mulheres ricas". Eu imaginei que elas discutiriam juntas seus problemas de, adivinhe: mulheres ricas. Não eram, definitivamente, problemas sobre os quais eu poderia falar com conhecimento de causa, então preferi me abster. Se elas quisessem falar sobre contar moedas, aí sim eu poderia participar, mas não era o caso.Queria ligar para minha irmã para perguntar sobre a novela cujo primeiro capítulo eu tinha assistido antes de viajar para a Califórnia, mas que tinha sido o suficiente para ficar curiosa para saber quem seria A Próxima Vítima[1] (era esse mesmo o nome da novela). Nos EUA, as séries eram mais populares, e eu percebi que elas
Cortei as cebolas e as armazenei em um pote para que Alejandro utilizasse conforme preparava hambúrgueres.– Vai fazer o que hoje? – ele perguntou.– Que eu saiba, nada – dei de ombros. – Sem planos.– Quer conhecer a parte pobre de Beverly Hills?Aceitei o convite. Eu estava curiosa para saber mais sobre essa parte do bairro desde que ele me falara sobre o lugar onde morava. Até ali havia me alimentado com a imagem de pessoas ricas.– Vou preparar uma Tamale para nós.– Tamale? – perguntei.– É um prato típico mexicano.Antes de irmos, passamos no supermercado mais próximo para comprar os ingredientes para o tal prato. Alejandro colocou milho, queijo, pimentões e outras coisas em sua cesta.– Você veio para trabalhar aqui? – o interpelei.– Que nada! Vim sem emprego mesmo. Procurei muito em restaurantes de comida mexicana, mas não encontrei. Aí em um belo dia, acordei e decidi conhecer a famosa Beverly Hills (nessa época morava a alguns quilômetros de Bel Air). Sem a intenção, dei de