CAPÍTULO 2

Tempos antes...

Rio de Janeiro

Eu estava organizando as roupas no armário de ferro que usava para guardar minhas coisas no apartamento da minha irmã quando ela entrara no quarto.

– Como você está? – perguntara Ester.

– Decepcionada! – fora minha resposta.

Para ela eu não precisava fingir. Ester era minha melhor amiga – e talvez a única além de minha mãe.

Me sentara na cama e pegara uma pilha de roupas, colocando-a sobre meu colo. As coisas realmente não estavam sorrindo para mim e, quando sorriam, era com os dentes cheios de cáries.

– Nenhum restaurante precisando de uma cozinheira na cidade inteira. Nem lanchonete, nem sorveteria. Não se come mais nesta cidade.

– Eu sinto muito, Martinha!

Era assim que Ester me chamava desde criança: Martinha. E era assim que eu gostava de ser chamada. Minha mãe costumava dizer que Marta era um dos nomes mais bonitos que existiam, mas a maioria das pessoas preferia me chamar por seu diminutivo, e eu me identificava assim, pois denotava carinho e, sinceramente, diante de tantas frustrações – eu estava (muito) carente – precisava mesmo ser acarinhada. Carente a ponto de abraçar ursinhos de pelúcia, diga-se de passagem.

Levantara-me de súbito, pois o arroz estava no fogo e eu não podia deixá-lo queimar.

Na casa de minha irmã, era eu quem cozinhava, pois ela não sabia sequer fritar um ovo. Ester tinha ficado com todo o carisma da nossa genética, mas com zero talento culinário. Já Peter, meu cunhado, fazia alguns poucos pratos de seu país (ele era norte-americano), mas nada que Ester conseguisse comer sem ficar enjoada. Isso porque seus falecidos avós eram críticos gastronômicos, imagine se não fossem. Minha irmã tinha o paladar infantil, eram poucas as coisas que lhe agradavam, e minha estadia em sua casa tinha esse benefício.

Entretanto, eu não queria morar de favor para sempre (eles detestavam que eu usasse esse termo). Precisava de um lugar meu e, para isso, teria que colocar a vida nos eixos.

No momento, eu não tinha um real para pensar em alugar um local para morar sozinha. Os cruzeiros e cruzados tinham ficado para trás no ano anterior.

Trabalhara desde a adolescência em uma sorveteria que havia fechado. Ela ficava em Ipanema e era muito bem frequentada. Eu tinha predileção por fazer sorvete à comida tradicional, mas em suma gostava de cozinhar de tudo, e tinha curiosidade de conhecer outras culturas e seus respectivos pratos. Peter me ensinara a fazer torta de maçã e brownies, e um antigo namorado chinês de Ester me apresentara a Yakisoba. Esse era o lado bom de ter uma irmã sexualmente cosmopolita.

Alguns minutos depois, meu cunhado chegara do trabalho com um sorriso maior do que o habitual. Peter, no auge de seus vinte anos – ele era mais novo do que Ester – costumava sorrir sempre, quase o tempo inteiro.

– Martinha! – ele dissera com seu sotaque engraçado.

– Eu!

– Como foi sua busca por emprego?

– Fracassada! – exclamara.

– Que bom!

– Bom? – eu e minha irmã perguntáramos em coro.

– Não, bom não... Ótimo.

Eu não estava entendendo o que Peter queria dizer com aquilo. Ele estaria rindo da minha desgraça? Quem tem um parente desses não precisa de inimigo, constatei.

– Conhece Los Angeles, Martinha?

Eu rira.

– Claro que conheço, estive lá ontem para tomar um café. Meu jatinho particular me deixou aqui no estacionamento do prédio, você não ouviu o barulho do motor?

– Está sendo biônica?

– É irônica, amor – minha irmã corrigira.

Peter ainda não tinha o português perfeito, e se embananava com algumas palavras. Entretanto, ele nos ensinara muito de seu idioma natal, de modo que eu devia a ele esse ponto no meu currículo.

– Sim, estou, é claro que estou! Mas conheço de nome, e já vi vários filmes que se passam lá. Por quê?

– Pois então se prepare para conhecer de um novo jeito – havia entusiasmo em sua voz.

– Hãn?

– Você vai passar o verão lá, my dear!

**

Ester e eu arrumáramos juntas as minhas poucas coisas.

– Se eu tivesse grana, compraria roupas novas para sua viagem. Você seria a garota mais fashion de Beverly Hills.

Fora minha irmã quem ligara para minha mãe para avisar sobre minha partida.

Ela vivia em outra cidade desde algum tempo após a morte de meu pai, que deixara para nossa família várias dívidas de jogo e bebida. Tinham sido tempos difíceis, e nós não tínhamos nos recuperado disso por completo ainda.

– Como assim Los Angeles, Martinha? – perguntara ela após Ester passar o telefone para mim. – É alguma cidade do interior, que não tem no mapa?

– Não! É Los Angeles mesmo, na Califórnia. Aquela onde as estrelas de cinema moram. Peter conseguiu um trabalho pra mim com uns amigos dele. Não posso recusar!

– Senhor! Isso é muito longe. Esta gente é realmente de bem? Não se pode confiar em todo mundo. Até hoje não me conformei com aquele ator que matou aquela atriz, se lembra?

Claro que eu me lembrava. O assassinato da filha da autora da novela das oito, pelo ator que fazia seu par romântico havia marcado a década tragicamente[1].

– O que eles querem que você faça lá? Não me diga que será babá de uma criança gringa?

– Vou trabalhar em uma lanchonete. Não estou conseguindo trabalho aqui no Rio. Impossível recusar uma oportunidade dessas.

– Já lhe disse mil vezes para vir morar comigo. Aqui é o seu lugar, Martinha.

Eu ficara em silêncio. Não estava a fim de dizer pela milésima vez que não iria, para não parecer uma filha desnaturada.

– Mas e essa gente, é de bem? – minha mãe repetira. E eu sei que ela poderia ter repetido a pergunta incansavelmente até se sentir segura de que sim, essas pessoas eram de bem, ou, ao menos, não eram péssimas.

Minha irmã pegara o telefone da minha mão.

– É sim! Peter os conhece há bastante tempo. Eles são amigos do pai dele. E são apenas três meses, mãe, não a vida inteira.

– Tem certeza de que não estão colocando sua irmã em encrenca?

– Certeza absoluta, mãe! Fique tranquila. Martinha já é uma mulher adulta.

– Pra você ela pode ser, mas para mim será sempre minha filhinha.

– Está bem. Ela pode continuar sendo, só que em outro continente.

Peter me dissera que os meses de junho, julho e agosto costumavam ser do tipo mediterrâneo. O que isso significava? Que os verões eram secos a ponto de deixar a pele descascando, mas isso não era motivo para me desanimar, afinal cremes hidratantes existiam para isso.

E foi assim que parti para Los Angeles.

[1] Crime que chocou o país em dezembro de 1992, cuja vítima foi Daniella Perez, filha da autora Glória Perez.

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