Tempos antes...
Rio de Janeiro
Eu estava organizando as roupas no armário de ferro que usava para guardar minhas coisas no apartamento da minha irmã quando ela entrara no quarto.
– Como você está? – perguntara Ester.
– Decepcionada! – fora minha resposta.
Para ela eu não precisava fingir. Ester era minha melhor amiga – e talvez a única além de minha mãe.
Me sentara na cama e pegara uma pilha de roupas, colocando-a sobre meu colo. As coisas realmente não estavam sorrindo para mim e, quando sorriam, era com os dentes cheios de cáries.
– Nenhum restaurante precisando de uma cozinheira na cidade inteira. Nem lanchonete, nem sorveteria. Não se come mais nesta cidade.
– Eu sinto muito, Martinha!
Era assim que Ester me chamava desde criança: Martinha. E era assim que eu gostava de ser chamada. Minha mãe costumava dizer que Marta era um dos nomes mais bonitos que existiam, mas a maioria das pessoas preferia me chamar por seu diminutivo, e eu me identificava assim, pois denotava carinho e, sinceramente, diante de tantas frustrações – eu estava (muito) carente – precisava mesmo ser acarinhada. Carente a ponto de abraçar ursinhos de pelúcia, diga-se de passagem.
Levantara-me de súbito, pois o arroz estava no fogo e eu não podia deixá-lo queimar.
Na casa de minha irmã, era eu quem cozinhava, pois ela não sabia sequer fritar um ovo. Ester tinha ficado com todo o carisma da nossa genética, mas com zero talento culinário. Já Peter, meu cunhado, fazia alguns poucos pratos de seu país (ele era norte-americano), mas nada que Ester conseguisse comer sem ficar enjoada. Isso porque seus falecidos avós eram críticos gastronômicos, imagine se não fossem. Minha irmã tinha o paladar infantil, eram poucas as coisas que lhe agradavam, e minha estadia em sua casa tinha esse benefício.
Entretanto, eu não queria morar de favor para sempre (eles detestavam que eu usasse esse termo). Precisava de um lugar meu e, para isso, teria que colocar a vida nos eixos.
No momento, eu não tinha um real para pensar em alugar um local para morar sozinha. Os cruzeiros e cruzados tinham ficado para trás no ano anterior.
Trabalhara desde a adolescência em uma sorveteria que havia fechado. Ela ficava em Ipanema e era muito bem frequentada. Eu tinha predileção por fazer sorvete à comida tradicional, mas em suma gostava de cozinhar de tudo, e tinha curiosidade de conhecer outras culturas e seus respectivos pratos. Peter me ensinara a fazer torta de maçã e brownies, e um antigo namorado chinês de Ester me apresentara a Yakisoba. Esse era o lado bom de ter uma irmã sexualmente cosmopolita.
Alguns minutos depois, meu cunhado chegara do trabalho com um sorriso maior do que o habitual. Peter, no auge de seus vinte anos – ele era mais novo do que Ester – costumava sorrir sempre, quase o tempo inteiro.
– Martinha! – ele dissera com seu sotaque engraçado.
– Eu!
– Como foi sua busca por emprego?
– Fracassada! – exclamara.
– Que bom!
– Bom? – eu e minha irmã perguntáramos em coro.
– Não, bom não... Ótimo.
Eu não estava entendendo o que Peter queria dizer com aquilo. Ele estaria rindo da minha desgraça? Quem tem um parente desses não precisa de inimigo, constatei.
– Conhece Los Angeles, Martinha?
Eu rira.
– Claro que conheço, estive lá ontem para tomar um café. Meu jatinho particular me deixou aqui no estacionamento do prédio, você não ouviu o barulho do motor?
– Está sendo biônica?
– É irônica, amor – minha irmã corrigira.
Peter ainda não tinha o português perfeito, e se embananava com algumas palavras. Entretanto, ele nos ensinara muito de seu idioma natal, de modo que eu devia a ele esse ponto no meu currículo.
– Sim, estou, é claro que estou! Mas conheço de nome, e já vi vários filmes que se passam lá. Por quê?
– Pois então se prepare para conhecer de um novo jeito – havia entusiasmo em sua voz.
– Hãn?
– Você vai passar o verão lá, my dear!
**
Ester e eu arrumáramos juntas as minhas poucas coisas.
– Se eu tivesse grana, compraria roupas novas para sua viagem. Você seria a garota mais fashion de Beverly Hills.
Fora minha irmã quem ligara para minha mãe para avisar sobre minha partida.
Ela vivia em outra cidade desde algum tempo após a morte de meu pai, que deixara para nossa família várias dívidas de jogo e bebida. Tinham sido tempos difíceis, e nós não tínhamos nos recuperado disso por completo ainda.
– Como assim Los Angeles, Martinha? – perguntara ela após Ester passar o telefone para mim. – É alguma cidade do interior, que não tem no mapa?
– Não! É Los Angeles mesmo, na Califórnia. Aquela onde as estrelas de cinema moram. Peter conseguiu um trabalho pra mim com uns amigos dele. Não posso recusar!
– Senhor! Isso é muito longe. Esta gente é realmente de bem? Não se pode confiar em todo mundo. Até hoje não me conformei com aquele ator que matou aquela atriz, se lembra?
Claro que eu me lembrava. O assassinato da filha da autora da novela das oito, pelo ator que fazia seu par romântico havia marcado a década tragicamente[1].
– O que eles querem que você faça lá? Não me diga que será babá de uma criança gringa?
– Vou trabalhar em uma lanchonete. Não estou conseguindo trabalho aqui no Rio. Impossível recusar uma oportunidade dessas.
– Já lhe disse mil vezes para vir morar comigo. Aqui é o seu lugar, Martinha.
Eu ficara em silêncio. Não estava a fim de dizer pela milésima vez que não iria, para não parecer uma filha desnaturada.
– Mas e essa gente, é de bem? – minha mãe repetira. E eu sei que ela poderia ter repetido a pergunta incansavelmente até se sentir segura de que sim, essas pessoas eram de bem, ou, ao menos, não eram péssimas.
Minha irmã pegara o telefone da minha mão.
– É sim! Peter os conhece há bastante tempo. Eles são amigos do pai dele. E são apenas três meses, mãe, não a vida inteira.
– Tem certeza de que não estão colocando sua irmã em encrenca?
– Certeza absoluta, mãe! Fique tranquila. Martinha já é uma mulher adulta.
– Pra você ela pode ser, mas para mim será sempre minha filhinha.
– Está bem. Ela pode continuar sendo, só que em outro continente.
Peter me dissera que os meses de junho, julho e agosto costumavam ser do tipo mediterrâneo. O que isso significava? Que os verões eram secos a ponto de deixar a pele descascando, mas isso não era motivo para me desanimar, afinal cremes hidratantes existiam para isso.
E foi assim que parti para Los Angeles.
[1] Crime que chocou o país em dezembro de 1992, cuja vítima foi Daniella Perez, filha da autora Glória Perez.
– Eu vou o quê? – perguntei.As palavras de Kevin tinham me alcançado pela metade. Eu sabia o significado de cada uma delas, mas não fazia muito sentido sua junção em uma frase. Isso porque ele tinha falado em português comigo, imagine se fosse um estrangeiro qualquer, ou pior, um rapper estrangeiro cuspindo as palavras freneticamente. – É! – respondeu sem pretensão. – Você vai ocupar uma suíte lá em cima! Venha, vou te mostrar!Kevin passava uma confiança absoluta por meio do seu tom de voz e do seu semblante, o que foi essencial para que eu não saísse correndo dali achando que aquela era uma tramoia de garotos ricos para fazer algum tipo de mal com uma garota pobre e inexperiente. Seria trágico! Imaginei minha irmã recebendo a notícia pelo telefone e tendo que contar à minha mãe. Cruel demais. Pobre garota! Duvidei que a matriarca da minha família dissesse “eu avisei!” diante de tamanha dor, mas isso não mudaria o fato de que, nessa realidade paralela, ela teria razão de ter desco
E nós realmente nos vimos no dia seguinte, que seria o meu primeiro de trabalho na lanchonete Milk Shakespeare.O que sucedera à visita de Lena ao meu novo quarto foram momentos de descoberta. Eu viajara pelo cômodo, analisando novamente e com mais atenção, seus móveis, sua janela e sobretudo a vista que esta última oferecia de Beverly Hills. Nunca na minha vida eu tinha sido privilegiada com uma boa vista. Na infância, a janela do quarto que dividia com minha irmã dava para um muro coberto de lodo. Já mais tarde, quando fui viver com ela e meu cunhado em seu apartamento, a vista que eu tinha era para o estacionamento do prédio. A fila de carros não se comparava ao céu azul e às mansões vizinhas, nem ao verde que as circundava. Era um novo mundo para mim, cheio de descobertas.– Vê se descola um namorado – minha mãe dissera na última vez que nos falamos ao telefone antes de eu viajar. Ela estava aderindo gírias ao seu vocabulário. – E, por favor, que seja um rapaz de bem! Digno, hone
A buzina do carro de Kevin me despertou do torpor da revista que eu estava folheando – a Elle, cuja capa era estampada pela linda Kate Moss. A matéria da página onde ela estava aberta era sobre a moda das gargantilhas. O último parágrafo dizia que se você era uma garota e não tinha uma, estava fora de moda. Eu podia ter ficado ofendida, pois não havia gargantilha alguma entre as minhas coisas.Kevin estava alguns minutos atrasado. Eu tinha saído da lanchonete após o horário de almoço ser encerrado e, sentada na mureta dos fundos, o aguardava. A Julia Roberts não tinha aparecido, mas o dia tinha sido ótimo mesmo assim.Embora eu trabalhasse dentro da cozinha, pude ver alguns clientes circulando pelo salão. Eram pessoas ricas, bonitas e que comiam feito bois famintos.– Vamos? – ele perguntou segurando o volante.Abri a porta do Mustang e entrei com medo de batê-la com muita força, pois aquele carro era caro demais e muito bem cuidado.– Para onde vamos?Eu estava mais à vontade agora q
Enquanto Kevin ia para o seu compromisso misterioso (misterioso para mim, que havia ficado excessivamente curiosa após nosso sorvete), fiquei em casa terminando de organizar minhas coisas. Eu não tinha levado mais do que o necessário, que consistia em roupas e objetos pessoais, assim como um exemplar de “O Morro dos Ventos Uivantes”[1] e outro de “A Hora da Estrela”[2], livros que eu gostava muito.Será que meu novo amigo estava com esperanças de encontrar a ex-namorada naquele dia? Eu conseguia imaginar essa garota claramente, ela devia ser a típica americana: loira dos olhos azuis, alta e peituda. Todas essas coisas que eu não era, começando pelo "americana" e terminando com o "peituda". Por que mesmo eu estava constatando isso? Me importava ser como ela?Lena tinha me prometido uma ajuda para aprimorar meu inglês, mas naquele primeiro dia de trabalho, eu estava com preguiça e fui para minha suíte. Dormi tão pesado que não ouvi a porta do quarto de Kevin se abrir com sua chegada, n
A festa da piscina acabou não acontecendo naquele dia, então eu pude continuar com minha leitura.– Nós queremos preparar um almoço especial no domingo para comemorar sua chegada – disse Lena. – Pretendíamos fazer isso antes, mas estávamos atribulados.Estranhei, pois não sabia que minha estadia ali era motivo de comemoração para eles, mesmo que para mim fosse.– Não precisa, imagine! – respondi absolutamente sem jeito.– Nós fazemos questão! Qual é o seu prato preferido? – Como de tudo.– Deve haver algo de que você goste mais. Que tal um churrasco?Carne assada me fazia lembrar da minha infância, quando as coisas eram mais fáceis para minha família e a vizinhança toda se reunia em nossa casa para almoçar nos feriados. Cada um levava um prato. Alguns levavam o arroz, outros a farofa, e havia aqueles que faziam a vinagrete.Minha chefe saiu do cômodo, me deixando sozinha no sofá amplo com a televisão ligada em um programa de fofocas de celebridades. Eu não me sentia à vontade o sufi
Festa na piscina era uma boa pedida para um dia de folga.Imaginei jovens animados dançando no jardim da casa dos meus anfitriões, e embora eu mesma não soubesse dançar, me animei também.O jantar de boas-vindas tinha me deixado mais à vontade, de forma que eu já não me sentia mais uma completa intrusa, só meia, mesmo. O mesmo poderia ser dito sobre meu bolo de aniversário. Se a intenção dos meus chefes era aumentar meu entrosamento, eles tinham conseguido com sucesso.– Aquela festa vai rolar hoje e você está convidada – disse Kevin.– Beleza! – respondi.Apesar disso, estava tensa, pois não conhecia os amigos dele, nem sabia se era cabível participar desse momento de lazer. Lena e João eram bons patrões e me tratavam muito bem, mas eu deveria abusar? Isso não era misturar as coisas?Você que está lendo já deve estar farto das minhas perguntas. Antes que eu pudesse expor esse pensamento, Kevin tinha dado as costas.Eu subi para escolher um traje de banho dentre os meus poucos. Olh
Ah, as praias de Los Angeles.A melhor escolha do dia fora sair da festa na piscina e ir para a beira do mar. Decisão acertadíssima. Era muito mais divertido ouvir o barulho das ondas do que o das vozes alteradas dos jovens quase bêbados, embora elas tivessem soado divertidas até certo ponto.Preciso dizer que não estava com ciúmes do brilho de Summer, ou da atenção de Kevin, que eu conhecia há tão pouco tempo, sobre ela. A questão é que eu não me sentia parte daquele mundo de mauricinhos de Beverly Hills. Eu estava nele, de fato, mas de passagem, e logo voltaria para minha antiga vida suburbana.Eles eram ricos, bonitos, e tinham sido agraciados com uma vida fácil demais, o que tornava sua existência quase entediante. Já eu, tinha tantos degraus a galgar, que era quase um luxo poder sentir tédio.Por alguma razão, em algum momento eu cogitara fazer parte deste universo, mas não fazia e tinha que aceitar isso, o que não era uma tarefa complicada.Pelo contrário, aquele não era meu lug
Foi a primeira vez que sonhei com Kevin. Um sonho quase erótico com o filho dos meus patrões. Algo tão indevido. Mas eu não tinha culpa, não é?! Ou será que tinha? Ah, Freud que explicasse isso do além, se quisesse. A mim mesma, eu estava reservando o direito de esquecer o assunto.Nossa conversa na praia terminara com ele se levantando, me estendendo a mão e me levando de volta para a festa onde Summer já não estava. Nenhum beijo acontecera. Não até o sonho, é claro.Acordei decepcionada, mas ao mesmo tempo aliviada, pois se a situação fosse real, poderia ter consequências graves (que talvez valessem a pena se ele beijasse tão bem na vida real quanto no sonho)."Ou vai, ou racha", era o que minha irmã costumava dizer quando me via com medo de algo. Apesar de eu estar longe de ser medrosa. Ok, ok, eu admito que era. Entretanto, não gostava dessa frase, pois ela me colocava na obrigação iminente de uma escolha. Às vezes, eu era boa em fazê-las, mas em outras não. Nesse caso, escolhi d