A mulher à porta estava com o rosto inchado, provavelmente de tanto chorar. Se os cabelos não fossem raspados, rentes à cabeça, provavelmente estariam desgrenhados. A senhora negra não era alta, era obesa, possuía grandes olhos castanhos, normalmente muito belos, mas agora devastados pelo sofrimento, trajava um vestido colorido que deixavam à mostra suas grandes panturrilhas maltratadas pelas varizes. Sua voz geralmente tão deliciosa de ser ouvida, devido o forte sotaque baiano, era puro desespero e terror:
- Cibele, por favor, diga que Maicon passou a noite em sua casa! Eu TENHO que estar vivendo um pesadelo! Diga que ele está aí! Dêxe eu entrar!
Não se sabe qual foi o artifício utilizado pelos membros do grupo Supremacia Branca, o fato é que quando Dona Lourdes, a avó de Paulo, abriu a porta do quarto de hospital para deixar os novos visitantes entrar, eles eram cinco. Muito além do permitido pela política de silêncio e tranquilidade do hospital. Olhando a porta, não dá para desconfiar a suntuosidade da suíte ocupada por Paulo. Além do catre e da aparelhagem médica, o quarto possuía um televisor de cinquenta polegadas, duas poltronas e um sofá de dois lugares, muitas vezes utilizado pelos acompanhantes. O primeiro a entrar no quarto, pôs-se
O corpo foi velado com a tampa do caixão completamente fechada. Nada podia ser feito, a cabeça desapareceu e o restante do corpo estava completamente roído. Nenhum dos presentes poderia lançar um olhar de despedida para Maicon. O jovem perdeu o direito de ser lembrado como um belo rapaz vestido em roupa social e uma expressão solene no rosto. Para sempre ele seria um amontoado de membros roídos. O acaso dividiu o salão do velório, do lado direito do caixão, José, uma versão exata do que Maicon seria se um dia chegasse aos quarenta e poucos anos de idade, cercado por uma roda de homens, familiares e conhecidos que desejavam os pêsames, como se já não bastasse o pesar que esmagava o coração do enorme homem, subindo por seu pescoço como uma bola de pelos sobe pela garganta de um gato, mas que ao invés de emergir em sua boca na forma de um grito, ascendia silenciosamente para seus olhos com a inten
O Capitão Aurélio sentia que estava carregando toneladas de trabalho em suas costas enquanto subia os últimos degraus que o separavam da porta de sua casa. Em um tipo de ritual inconsciente, tateou os bolsos laterais de suas calças em busca do molho de chaves, antes de encontrá-lo no bolso traseiro, onde sempre guardava. A chave deslizou pelo buraco da fechadura e girou com facilidade, fazia pouco tempo que ele tinha lubrificado as dobradiças e despejado grafite em pó para que a chave parasse de enroscar, afinal, não aguentava mais as reclamações de sua mulher, Simone. Apesar das frequentes pequenas brigas e do excesso de preocupações que o Capitão levava para casa, seu casamento era muito feliz, sempre
- Todos vocês, prestem atenção no que nosso mais eminente General tem a nos dizer, suas palavras nos levaram a ação e a ação nos levará à vitória! Em seus sonhos mais megalomaníacos, João Klauss, que tinha trinta e cinco anos de idade, alto e, apesar de parecer muito saudável, magérrimo, louro de olhos claros, sustentado pelos pais, nunca, em sua vida, exercera atividade remunerada. Imaginava-se como um grande líder que guiaria o povo do Cone Sul, composto por São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em uma cruzada, primeiramente visando separar a região do resto do insignificante Brasil e depois buscando expulsar ou matar todos negros, nordestinos e
Retirado do Evento “Marcha do bom cidadão de Angabaíba” criado por João Klauss no Facebook:Marcha do bom cidadão de AngabaíbaSábado, 30 de março às 15:00Daqui a 5 diasAv. Boa EsperançaAvenida Boa Esperança, 1100, Centro, Angabaíba O Grupo “Supremacia Branca” com o intuito de mostrar para as autoridades de nossa tão amada cidade que ainda existem moradores apegados à moral e aos bons costumes promoverá uma marcha destinada a manifestação dos bons cidad&
Era pouco mais que uma hora da tarde e uma pequena concentração de pessoas já podia ser vista na Avenida da Prosperidade, o grupo era composto principalmente por jovens, mas aqui e ali era possível identificar algumas pessoas mais maduras. Gustavo não costumava participar de manifestações, muito menos se envolver em disputas ideológicas, mas daquela vez a situação era diferente, os possíveis assassinos de seu amigo de infância estavam organizando uma marcha que, nas entrelinhas, defendia que as pessoas não precisavam se preocupar com essa morte, afinal a vítima era um criminoso, ele era negro. Para ele, não fazia o menor sentido a existência de pessoas que defendessem o assassinato de quem quer que seja, como se houvesse seres humanos melhores e seres humanos piores e ficava chocado com
“Eu me tornei insano, com longos intervalos de horrível sanidade”(Carta para George Washington Eveleth , 4 de janeiro de 1848 - Edgar Allan Poe) - Um fracasso! Um total fracasso! Era para ter sido o nosso grande dia e fomos sabotados! Fomos traídos por aquela polícia frouxa! Fomos traídos! Passados para trás! Fizemos papel de otários! O que mais eu posso dizer? Aqueles pretos, viados e comunistas nos passaram a perna e nós caímos! A luz acesa não era o suficiente para iluminar a garagem apertada onde duas dezenas de jovens estavam espalhados, escorados nas três paredes da garagem, imó
O celular despertava, já no terceiro ciclo da função “soneca”, quando Gustavo parou de tentar se iludir e jogou as cobertas no chão. Ainda ficou um tempo deitado, imóvel, no sofá, mas já estava acordado e não conseguiria voltar a dormir. Ainda sonolento, caminhou, arrastando os pés, até o banheiro enquanto despia a cueca. Tomou um banho demorado e quente. - Mas que merda! Apenas quando saia do banho é que reparou que o toalheiro estava vazio, pensou em suas alternativas, a mais fácil se