O celular despertava, já no terceiro ciclo da função “soneca”, quando Gustavo parou de tentar se iludir e jogou as cobertas no chão. Ainda ficou um tempo deitado, imóvel, no sofá, mas já estava acordado e não conseguiria voltar a dormir. Ainda sonolento, caminhou, arrastando os pés, até o banheiro enquanto despia a cueca. Tomou um banho demorado e quente.
- Mas que merda!
Apenas quando saia do banho é que reparou que o toalheiro estava vazio, pensou em suas alternativas, a mais fácil se
O jovem descia a Rua Canadá, na periferia da cidade, e parecia estar imerso em sua mente. Apesar dos fones de ouvido o volume estava tão alto que quem passasse por perto poderia identificar Negro Drama dos Racionais Mcs. As lembranças do que tinha visto na tarde do sábado ainda atormentavam Beto. Ele tinha plena certeza de que o melhor que poderia fazer era tentar esquecer e fingir que nada acontecera. Nada parecia dar certo nos últimos dois meses e se tentasse se meter em mais coisas que não eram seu interesse tudo iria acabar ainda pior. A faixa tracejada do asfalto passava com velocidade por baixo do carro, os poucos veículos da via davam passagem, mas pareciam estar praticamente parados. A sirene ecoava pela noite, como um sinal de mau agouro, muitas famílias em suas casas sentiam uma pontada de angústia, pensando se estaria tudo bem com o parente ausente. E o Capitão Aurélio seguia em seu ritmo frenético para apoiar seus colegas e subordinados em ação. Conforme se aproximava do Jardim Nova Luz, local da ocorrência, teve de deixar a grande Avenida Carlos Marighella e se embrenhar nas tortuosas avenidas menores que levavam ao bairro de periferia. Nestas ruas menores, praguejava pela impossibilidade de andar em alta velocidade. Há muitos meses, a polícia civil vinha investigando um ponto de tráfico de drogas na região, coletando informações e elaborando uma o22
A casa verde estava à venda, já há alguns anos que ninguém morava nela e, aparentemente, há tempos que ninguém fazia alguma visita para ver se a casa precisava de alguma manutenção. Os muros externos da casa mediam cerca de um metro e meio, apesar da cor original ser o verde, ele já estava quase totalmente coberto por pichações e por um novo tom de verde, mais escuro, dos musgos que se proliferavam. A casa não possuía garagem, a única entrada era um portão comum, de barras de ferro, muito corroído pela ferrugem, que era mantido fechado por um cadeado. Estranhamente o cadeado era novo e parecia estar em ótimo estado. Joaquim ficou alguns minutos parado em frente ao portão, fumando um cigarro e coçando a barba que crescia em seu pescoço. Terminado o cigarro ele estralou os dedos e olhou para o
Muitos conhecidos ficavam admirados com a força de vontade de Cibele, comentavam como ela tinha superado rápido a perda do namorado e ficavam aliviados em ver como ela continuava com a mesma risada sonora e gostosa de sempre. O que eles não sabiam é que todos os dias, ao entardecer, Cibele começava a chorar enquanto tomava banho e só parava quando tinha que sair do quarto para fazer alguma coisa. No entanto, Onério, avô de Cibele, sabia. A fina parede que separava os dois quartos não era o suficiente para abafar os soluços de desespero da garota e Onério também chorava enquanto o choro de sua neta durasse. Este homem, que derramara poucas lágrimas em seus mais de oitenta anos, chorava agora por toda uma vida, como se fosse responsável pelo sofrimento da neta. Repentinamente, grossas gotas de chuva passaram a desabar, batendo violentamente contra a janela, empurradas por lufadas de vento. Como se não bastasse o tempo ruim, as notícias recebidas por telefone também não eram nada agradáveis. Plínio escutava cada palavra com máxima atenção, o telefone sem fio colado à orelha, os olhos arregalados. A mão espalmada no vidro da janela, como se o mau tempo fosse o responsável por ter trazido as más notícias. Sua prima Marina estava desaparecida há três dias. O último sinal de vida dado por ela era uma publicação no facebook, reclamando do tédio e anunciando que iria se juntar à manifestação. Depois de algumas respostas25
Após esperar quase três horas por uma brecha da chuva, que castigava incansavelmente toda Angabaíba, Eliseu chegou à conclusão de que se esperasse por muito mais tempo, seria mais fácil dormir direto na fábrica onde trabalhava do que voltar para casa, tirar um cochilo, e voltar para o trabalho no dia seguinte. Quando, às cinco horas da tarde, percebeu que a única maneira de chegar em casa seria enfrentando a tempestade, preferiu conversar com seu supervisor sobre a possibilidade de fazer hora extra até a chuva passar. O acordo acabou sendo feito de maneira não oficial, como já estava acostumado, ao invés de receber a remuneração, poderia descontar essas horas em outro dia. Vinha fazendo isso, esporadicamente, na tentativa de juntar dois dias inteiros de descanso e assim emendar a quinta e a sexta feira que seguiriam o dia do
- Tô te falando, Aurélio, o cacete do Mauro não vai fazer nada... Ele colocou na cabeça dele que o Supremacia Branca está envolvido e não quer me ouvir. Você sabe, a hora que vocês chegaram na casa que eu fui baleado já não tinha mais nada lá... O quarto de Joaquim era um lugar simples, ele estava deitado em uma cama de solteiro, que ocupava uma das quinas do quarto, a lateral da cama ficava encostada na parede da janela e o sol da tarde batia em suas pernas. Na outra quina do quarto ficava a escrivaninha totalmente bagunçada, carteira, celular, desodorante, perfumes, papeis de propaganda, notebook, uma das gavetas, entreaberta, revelava um caos de papéis.
Enquanto terminava de alimentar a tabela do excel com dados referentes a compra de insumos para o Lava Rápido Lady Wheels, onde trabalhava como auxiliar administrativo, Paulo pensava em como seu mundo mudou nas últimas semanas. Sua aparência era outra, não precisava mais andar por aí fingindo ser um miliciano, sua maneira de tratar as outras pessoas transformara-se, não queria mais tentar se mostrar mais importante que ninguém, apesar de algumas vezes o hábito ainda superar a consciência. Mas a verdadeira mudança era processada no interior de sua mente. Tentava não dar importância para a cor de sua pele, mesmo que algumas vezes os pensamentos racistas aparecessem em sua mente com uma cruel naturalidade. Nesses momentos forçava sua mente a se lembrar dos seus novos amigos, uma negra e um mulato, e como eles se divertiam juntos