Estava tão machucada por ter sofrido o aborto que não conseguia ver a dor de mais ninguém, apenas a dela. E o pior é que sabia que havia algo de errado consigo mesma e mesmo assim não conseguia enxergar. Era maior e mais forte, a dor na qual sentia toda vez que pensava em sua garotinha, o que era praticamente 24h por dia. Ninguém sabia o porquê de ficar tantas horas dentro do quartinho de sua pequena, apenas tinha suas opiniões sobre, como por exemplo, se aconchegar a dor ou mesmo no acolhimento do cômodo, mesmo que o bebê dela não tivesse tido o prazer de passar sequer um dia ali. Mas a verdade, era que sentia a filha mais perto de si de vez em quando, e conseguia falar com ela, mesmo que na maioria das vezes, chorasse como uma criança, e mais que isso, de alguma forma, conseguia vê-la.
E mesmo sabendo que era loucura, ela gostava daquele sentimento que lhe trazia um pouquinho de paz, pelo menos por um instante. E era por isso que nunca havia dividido aquele segredo com ninguém, principalmente porque sabia que iriam achar que ela estava enlouquecendo.
Naquele dia, como sempre, ela passou todo o dia no quarto infantil, abraçada a um ursinho de pelúcia, sentindo a falta da filha, chorando mais um pouco pela perda dela; até mesmo adormeceu sobre o tapete felpudo, acordando quase na hora do jantar, e apenas porque seu celular tocou, indicando que alguém, no qual ela queria poder ignorar, ligou. Era sua melhor amiga a chamando para jantar com ela, sabendo provavelmente que seu marido não a acompanharia, o que era verdade. Todas as suas amigas sabiam sobre aquele problema que estava tendo com Oliver, principalmente porque elas haviam presenciado algumas discussões; não de propósito, claro. E desde então sempre avisavam quando iam visitá-los. Depois de negar ao convite da loira, que ainda havia insistido por mais alguns minutos, tomou um banho, vestiu uma roupa confortável e não se preocupou em esperar pelo marido para poderem ter uma refeição juntos. Não foi uma surpresa vê-lo adentrar a casa com a feição cansada, já passado a hora do jantar; na verdade, ele havia chegado quase às 23h. Seus olhos se encontraram no momento em que ele deixou a pasta em cima da poltrona, pois a acastanhada estava sentada no sofá ao lado.
— Pensei que estivesse dormindo.
— Como se eu conseguisse. – Retrucou, grosseiramente.
Oliver não respondeu e por isso Felicity se manifestou novamente, demonstrando toda sua amargura em suas palavras.
— Como sempre você ficou até tarde na empresa.
— Não estou a fim de discutir hoje. – Diz, lhe dando as costas.
— Isso mesmo, me dê as costas, é o que você mais gosta de fazer ultimamente.
E então ele se virou, já com a carranca; o olhar frio, as sobrancelhas arqueadas.
— Não é muito diferente do que faz. Durante a manhã me ignora e a noite acha um motivo para discutir.
— Agora eu sou o problema aqui? – Sua voz se exaltou enquanto se levantava. – Você ama tanto esse maldito trabalho que prefere passar horas lá, do que no quarto que fez para a nossa filha.
Balançando a cabeça, não querendo falar sobre a pequena, fez menção de subir as escadas, e Felicity o seguiu rapidamente.
— Você se lembra dela? – O viu parar no meio do caminho. – Eu me lembro todos os dias. Me lembro principalmente do motivo de ela não estar mais aqui. De não poder sentir ela me chutar, ouvir seu coraçãozinho quando fosse a uma consulta...
Oliver fechou as mãos em punhos, ainda de costas, sentindo seu peito apertar a cada palavra dita por sua esposa. Era doloroso falar sobre sua garotinha e era por esse motivo que jamais falava sobre ela, e até mesmo fugia quando o assunto era ela. Mas diferente de sua família e seus amigos, que o compreendiam completamente, Felicity não fazia o mesmo, na verdade parecia gostar de tocar na ferida e fazer com que demorasse muito mais para cicatrizar, e isso o deixava magoado e irritadiço, por mais que soubesse que toda aquela grosseria dela, era por conta de sua própria dor. Mas nem por isso deixava de ficar chateado por ela estar sendo tão cruel ultimamente.
— Me lembro em especial do dia em que eu a perdi. – Sua voz embargou. – Você se lembra desse dia? Se lembra de como o céu estava, de como se sentiu ao descobrir da minha queda, de como foi nosso reencontro? – Ele não respondeu novamente, e ela trincou os dentes, sentindo o corpo tremer de raiva. – A culpa foi sua!
E então ele se virou, completamente incrédulo, sentindo seu peito doer cada vez mais, em especial por aquelas palavras dolorosas.
— Você viajou. Viajou, por conta daquela m*****a empresa. Viajou e me deixou sozinha, e eu acabei perdendo nossa filha.
— Felicity, eu perguntei se você ficaria bem sozinha, perguntei se não queria que eu ficasse e enviasse outro em meu lugar...
— E mesmo assim você foi!
— Depois de você prometer que ficaria bem!
Ambos já gritavam um com o outro.
— Você disse: “não se preocupe comigo, meu amor, eu ficarei bem”. – Repetiu suas palavras. – “Estou grávida, não inválida”.
— E agora está me culpando?
— Não. – Respondeu imediatamente. – Você não tem culpa do que houve, foi um acidente. – Sentiu seus olhos arderem. – Mas acho que você não consegue ver o mesmo, não é? Já que está me culpando. Me culpando por ter ido viajar, me culpando por deixá-la sozinha e não estar contigo quando você caiu, por não estar aqui para te ajudar e evitar que nossa filha... – Não conseguiu completar.
— A escolha foi sua! – Diz friamente, com os olhos lacrimejados.
— Muito bem, Felicity ... – Balançou a cabeça. – Me desculpe por ser um péssimo marido e um pai pior ainda.
E então se virou, respirando fundo antes de enfim começar a subir os degraus, a fim de chegar ao seu quarto, tomar um banho relaxante e cair sobre a cama em um sono profundo, tão profundo que ele não teria nem mesmo um sonho sequer. E enquanto isso, Felicity se jogava sobre o piso de madeira, chorando mais um pouco, deixando a dor que a consumia, sair mais um pouquinho pelas lágrimas quentes que desciam por seu rosto.
Oliver se encontrava em sua sala enorme e aconchegante. Os documentos a frente indicavam que ele tinha trabalho a fazer, e mesmo assim não conseguia se concentrar; viajava mais e mais nos momentos felizes que já tivera com a esposa. Por anos, eles tiveram uma vida feliz apesar das pequenas e bobas discussões. Jamais se imaginou em um momento tão horrível com a mulher que amava. E isso o fez pensar no bebê que nasceria em alguns dias se não estivesse morto. Ele sentia raiva por ter acontecido aquele aborto, sentia raiva por não conseguir nem mesmo adentrar o quarto no qual foi feito com todo carinho para a criança dele e de Felicity, sentia raiva por não conseguir se controlar e acabar brigando com a esposa ao chegar em casa e ouvir todos os insultos que ela tinha para lhe dizer. E a última havia sido a pior. Ela havia o acusado de ter sido o culpado pela perda do bebê deles; ele não estava na cidade no dia e ela esteve por quase cinco dias, sozinha, por conta de uma conferência import
— Você está bem? E ele sentiu raiva ao ouvir aquela pergunta. — O que você acha, Liam? Acabou sendo grosso, mas não era sua intenção, e por isso suspirou. — O que você quer? – Perguntou, mais calmo. Liam pensou duas vezes antes de dizer o que foi fazer ali. Principalmente quando tinha percebido que o amigo não estava bem. O que não era uma grande surpresa. Isso vinha sendo rotineiro. Ele nunca chegava com um sorriso, mesmo que pequeno, nos lábios. Desde que perdeu a filha, ele vinha se estressando mais fácil. E não tinha paciência com ninguém, nem com os amigos, ainda que fizesse todo o esforço do mundo para não jogar sobre os ombros dele, uma culpa que eles não tinham. E os amigos o compreendiam. Apenas isso. Sabiam que ele estava passando por momentos difíceis e precisava de tempo. E de apoio. Sobretudo apoio, porque infelizmente, isso ele não vinha tendo em casa. — Eu estou com seus clientes. O moreno suspirou, bagunçando os cabelos. — Olha, eu cuido disso se quiser. Se
A coisa mais difícil foi chegar em casa. Havia dado algumas voltas pela cidade, tentando encontrar coragem para voltar para casa. Depois de uma conversa que teve com seu primo após despertar de um sono muito bom, diga-se de passagem, percebeu que o melhor a se fazer era tirar um tempo a mais por ali. Quando despertou a refeição estava pronta. Théo era daqueles que gostava de aconselhar as pessoas. E por isso Oliver gostava de conversar com ele. Principalmente quando tudo que ele mais precisava no momento, era de conselhos. Eles conversaram – ele mais que o primo –, jogaram videogame – ideia para que ele não ficasse pensando o tempo todo em seus problemas com a esposa –, e então, descansou mais um pouco. Já passava das 19h quando saiu da casa de Théo, agradecendo por tudo, e quando percebeu, estava dando voltas pela cidade, temendo, pela primeira vez, por algo em sua vida. Não queria estar em casa, muito menos quando sabia que sua esposa estava acordada. Ela odiava estar sozinha, mas o
Oliver saiu do banheiro apenas de toalha, encontrando sua esposa no closet deles ao seguir até lá para pegar uma roupa para dormir. Confortável, já que não se sentia confortável dentro de sua própria casa. Ou quarto. Ou cama. Ao menos a roupa deveria fazê-lo se sentir confortável, afinal. E de repente, antes que pudesse dar algum passo em direção a seu lado do closet, onde se encontravam suas roupas, ouviu um “achei”. Ficou curioso para saber o que ela finalmente havia encontrado. E se recriminou por isso. Nas mãos de Felicity havia uma caixinha na qual havia um colar lindo de ouro branco; havia mandado fazer quando soube que teriam uma menina. Engoliu em seco ao ler o nome na joia. “Lívia” — Por que está pegando isso? Seus olhos finalmente se encontraram, após encontrar sua voz novamente. — É da minha filha. — Nossa filha. – Retrucou. — Eu vou deixar junto de suas coisinhas no quarto. – Respondeu, andando para longe do marido. – Ela vai gostar de ver isso junto aos seus outros
Felicity não soube por quanto tempo ficou deitada de lado, na cama macia, com ambas as mãos abaixo da orelha e os olhos totalmente abertos. Ela não enxergava nada naquele momento, não estava naquele plano, e mesmo assim, podia sentir as lágrimas descendo por seu rosto. Ela não sabia que ainda tinha lágrimas, não quando havia chorado por dias e mais dias, incansavelmente, mas ali estavam elas enquanto pensava em sua filhinha. Tocou a barriga plana, fechando as mãos em cima dela, imaginando como seria se ela ainda estivesse ali. Provavelmente sua vida e a de seu marido não estaria desmoronando da forma como estava. Brigavam todos os dias, e ela sabia que era sua culpa. Mas ela não conseguia se controlar, nem com as palavras, nem com os sentimentos. Estava com raiva. E descontava no único que não tinha culpa. Sua mente sabia que ele não tinha culpa, mas seu coração, ele o culpava todos os dias por não estar junto dela quando escorregou em uma poça d’água no chão da cozinha enquanto lavav
Pelos príximos dias, Oliver aparecia apenas para ver como ela estava, e sempre quando ela estava dormindo. Não queria mais brigas. A observava por horas, e saia de mansinho, querendo evitar que ela percebesse sua presença de alguma forma. Não queria desistir dela. Não queria deixá-la sozinha naquela casa. Mas estava quebrado. Precisava de alguma forma se recuperar ao menos um pouco. Aquela casa, aquela situação, aquelas lembranças, faziam um mal a ele, que ele não conseguia nem sequer imaginar o quanto. Mas podia sentir. Ele não queria causar mais dor em si ou na esposa, então achou melhor dar um tempo de tudo. Théo o recebeu de braços abertos e ele era muito grato. Se não fosse por ele, estaria... em um hotel. Irritantemente sozinho. E mesmo que fosse bom estar sozinho de vez em quando, ainda assim, sentia a necessidade de ter com quem conversar. Liam quase não acreditou quando soube. E mesmo que não estivesse de acordo, não disse uma palavra, e Oliver foi grato também por isso. Não
Oliver soube que havia algo de errado no instante em que não a encontrou na cozinha, como sempre, fazendo seus bolinhos, cookies ou seja lá o que fosse que não a deixasse agitada por todo o dia. Era cedo, mas nem tão cedo, e por isso imaginou que a encontraria ali, na cozinha, cozinhando, que era o que ela fazia quando estava com a cabeça cheia. Mas não foi o que encontrou ao entrar em casa. Tudo estava escuro quando subiu as escadas, e foi isso que o fez ficar em alerta pela primeira vez. Estranhou quando não ouviu seus passos ou mesmo seus sussurros; porque ela havia passado a falar sozinha desde que tudo aconteceu. Por um momento imaginou que sua esposa estivesse dormindo, mas passava das 8h e ela ainda não havia se levantado, então era impossível. Havia tido uma noite ruim e acabou se atrasando para o trabalho, mas nem por isso deixou de passar ali para vê-la. Ainda que soubesse que a encontraria desperta. Pela primeira vez em dias. Vários dias. Quinze, para ser mais exato. Seguiu
Oliver estava naquela sala de espera, angustiado, esperando por uma notícia e que ela fosse boa. Após chegar com sua esposa em seus braços, gritando desesperado por ajuda, trouxeram uma maca e a levaram, mas aquele não era o hospital no qual trabalhava Agatha Villela, a médica na qual era a chefe dos residentes sua esposa trabalha — a mesma na qual havia sido de sua esposa em sua residência no hospital Villela —, e por isso ligou para a mulher loira, pedindo para que ela comparecesse e cuidasse de Felicity. Sabia que ela era a melhor e naquele momento ele precisava da melhor. Sentia-se um pouco culpado; talvez, se não tivesse dito todas aquelas coisas, ela não tivesse feito o que fez. Ele só pensava na angústia que foi encontrá-la com o pulso fraco, completamente desmaiada sobre a cama, com aquele vidro com poucos comprimidos dentro. Quantos ela havia tomado? Por que ela faria isso sabendo o quanto era perigoso? No que ela estava pensando... E Oliver, que andava de um lado par