Capítulo 2

Estava tão machucada por ter sofrido o aborto que não conseguia ver a dor de mais ninguém, apenas a dela. E o pior é que sabia que havia algo de errado consigo mesma e mesmo assim não conseguia enxergar. Era maior e mais forte, a dor na qual sentia toda vez que pensava em sua garotinha, o que era praticamente 24h por dia. Ninguém sabia o porquê de ficar tantas horas dentro do quartinho de sua pequena, apenas tinha suas opiniões sobre, como por exemplo, se aconchegar a dor ou mesmo no acolhimento do cômodo, mesmo que o bebê dela não tivesse tido o prazer de passar sequer um dia ali. Mas a verdade, era que sentia a filha mais perto de si de vez em quando, e conseguia falar com ela, mesmo que na maioria das vezes, chorasse como uma criança, e mais que isso, de alguma forma, conseguia vê-la.

E mesmo sabendo que era loucura, ela gostava daquele sentimento que lhe trazia um pouquinho de paz, pelo menos por um instante. E era por isso que nunca havia dividido aquele segredo com ninguém, principalmente porque sabia que iriam achar que ela estava enlouquecendo.

Naquele dia, como sempre, ela passou todo o dia no quarto infantil, abraçada a um ursinho de pelúcia, sentindo a falta da filha, chorando mais um pouco pela perda dela; até mesmo adormeceu sobre o tapete felpudo, acordando quase na hora do jantar, e apenas porque seu celular tocou, indicando que alguém, no qual ela queria poder ignorar, ligou. Era sua melhor amiga a chamando para jantar com ela, sabendo provavelmente que seu marido não a acompanharia, o que era verdade. Todas as suas amigas sabiam sobre aquele problema que estava tendo com Oliver, principalmente porque elas haviam presenciado algumas discussões; não de propósito, claro. E desde então sempre avisavam quando iam visitá-los. Depois de negar ao convite da loira, que ainda havia insistido por mais alguns minutos, tomou um banho, vestiu uma roupa confortável e não se preocupou em esperar pelo marido para poderem ter uma refeição juntos. Não foi uma surpresa vê-lo adentrar a casa com a feição cansada, já passado a hora do jantar; na verdade, ele havia chegado quase às 23h. Seus olhos se encontraram no momento em que ele deixou a pasta em cima da poltrona, pois a acastanhada estava sentada no sofá ao lado.

— Pensei que estivesse dormindo.

— Como se eu conseguisse. – Retrucou, grosseiramente. 

Oliver não respondeu e por isso Felicity se manifestou novamente, demonstrando toda sua amargura em suas palavras.

— Como sempre você ficou até tarde na empresa.

— Não estou a fim de discutir hoje. – Diz, lhe dando as costas. 

— Isso mesmo, me dê as costas, é o que você mais gosta de fazer ultimamente. 

E então ele se virou, já com a carranca; o olhar frio, as sobrancelhas arqueadas.

— Não é muito diferente do que faz. Durante a manhã me ignora e a noite acha um motivo para discutir.

— Agora eu sou o problema aqui? – Sua voz se exaltou enquanto se levantava. – Você ama tanto esse maldito trabalho que prefere passar horas lá, do que no quarto que fez para a nossa filha.

Balançando a cabeça, não querendo falar sobre a pequena, fez menção de subir as escadas, e Felicity o seguiu rapidamente.

— Você se lembra dela? – O viu parar no meio do caminho. – Eu me lembro todos os dias. Me lembro principalmente do motivo de ela não estar mais aqui. De não poder sentir ela me chutar, ouvir seu coraçãozinho quando fosse a uma consulta... 

Oliver fechou as mãos em punhos, ainda de costas, sentindo seu peito apertar a cada palavra dita por sua esposa. Era doloroso falar sobre sua garotinha e era por esse motivo que jamais falava sobre ela, e até mesmo fugia quando o assunto era ela. Mas diferente de sua família e seus amigos, que o compreendiam completamente, Felicity não fazia o mesmo, na verdade parecia gostar de tocar na ferida e fazer com que demorasse muito mais para cicatrizar, e isso o deixava magoado e irritadiço, por mais que soubesse que toda aquela grosseria dela, era por conta de sua própria dor. Mas nem por isso deixava de ficar chateado por ela estar sendo tão cruel ultimamente.

— Me lembro em especial do dia em que eu a perdi. – Sua voz embargou. – Você se lembra desse dia? Se lembra de como o céu estava, de como se sentiu ao descobrir da minha queda, de como foi nosso reencontro? – Ele não respondeu novamente, e ela trincou os dentes, sentindo o corpo tremer de raiva. – A culpa foi sua!

E então ele se virou, completamente incrédulo, sentindo seu peito doer cada vez mais, em especial por aquelas palavras dolorosas. 

— Você viajou. Viajou, por conta daquela m*****a empresa. Viajou e me deixou sozinha, e eu acabei perdendo nossa filha.

— Felicity, eu perguntei se você ficaria bem sozinha, perguntei se não queria que eu ficasse e enviasse outro em meu lugar...

— E mesmo assim você foi! 

— Depois de você prometer que ficaria bem! 

Ambos já gritavam um com o outro.

— Você disse: “não se preocupe comigo, meu amor, eu ficarei bem”. – Repetiu suas palavras. – “Estou grávida, não inválida”. 

— E agora está me culpando?

— Não. – Respondeu imediatamente. – Você não tem culpa do que houve, foi um acidente. – Sentiu seus olhos arderem. – Mas acho que você não consegue ver o mesmo, não é? Já que está me culpando. Me culpando por ter ido viajar, me culpando por deixá-la sozinha e não estar contigo quando você caiu, por não estar aqui para te ajudar e evitar que nossa filha... – Não conseguiu completar. 

— A escolha foi sua! – Diz friamente, com os olhos lacrimejados. 

— Muito bem, Felicity ... – Balançou a cabeça. – Me desculpe por ser um péssimo marido e um pai pior ainda. 

E então se virou, respirando fundo antes de enfim começar a subir os degraus, a fim de chegar ao seu quarto, tomar um banho relaxante e cair sobre a cama em um sono profundo, tão profundo que ele não teria nem mesmo um sonho sequer. E enquanto isso, Felicity se jogava sobre o piso de madeira, chorando mais um pouco, deixando a dor que a consumia, sair mais um pouquinho pelas lágrimas quentes que desciam por seu rosto.

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