Felicity não soube por quanto tempo ficou deitada de lado, na cama macia, com ambas as mãos abaixo da orelha e os olhos totalmente abertos. Ela não enxergava nada naquele momento, não estava naquele plano, e mesmo assim, podia sentir as lágrimas descendo por seu rosto. Ela não sabia que ainda tinha lágrimas, não quando havia chorado por dias e mais dias, incansavelmente, mas ali estavam elas enquanto pensava em sua filhinha. Tocou a barriga plana, fechando as mãos em cima dela, imaginando como seria se ela ainda estivesse ali. Provavelmente sua vida e a de seu marido não estaria desmoronando da forma como estava. Brigavam todos os dias, e ela sabia que era sua culpa. Mas ela não conseguia se controlar, nem com as palavras, nem com os sentimentos. Estava com raiva. E descontava no único que não tinha culpa. Sua mente sabia que ele não tinha culpa, mas seu coração, ele o culpava todos os dias por não estar junto dela quando escorregou em uma poça d’água no chão da cozinha enquanto lavava a louça, o culpava por não estar em casa para poder levá-la ao hospital a tempo de proteger a garotinha deles, o culpava por ele ter se atrasado e não ter estado ao lado dela quando disseram que não havia mais bebê.
Estava angustiada, com raiva, sentindo-se sozinha e sabia que isso queria dizer que estava em um estado de depressão, e mesmo assim, não queria sair daquele torpor. Aquele torpor era o que lhe deixava ter sonhos com sua filha, era o que lhe dava a imaginação de que como ela seria, de quem ela puxaria os olhos e os cabelos, de seu sorriso, de ouvir suas primeiras palavras.
Estava doente, era o que sua mente lhe dizia o tempo todo.
Ela não estava raciocinando direito, e mesmo assim, não queria pedir ajuda. Só o que queria era sentir aquela sensação de que seu bebê ainda estava vivo, de que poderia tocá-lo, senti-lo, ouvi-lo. Mas naquele momento, tudo que conseguia era ouvir as palavras de seu marido martelando em sua cabeça. Ele estava sofrendo, assim como ela, e por isso fugia. Fugia da dor, fugia das lembranças, dos pequenos detalhes que o levaria a pensar na filha amada. Ela, ao contrário, se aconchegava cada vez mais em cada pequena coisa que a levaria pensar mais e mais em sua garotinha. Falava com ela, no quarto que seria dela, tocava suas roupinhas, seus brinquedos, e naquele dia, se lembrou do colar especial que seria dela ao nascer.
Não era justo o que estava fazendo com seu próprio marido, não estava sendo uma boa esposa. Ele já sofria o bastante, e ela, ao invés de ajudar, acabava perfurando ainda mais a ferida, que ao invés de cicatrizar, assim como ele necessitava, acabava por ficar ainda maior, como o dela sempre que se lembrava de que havia perdido sua princesinha. A princesinha deles.
Fechou os olhos, pedindo para dormir e sonhar com sua princesa.
Fazia dias que ela mal conseguia pregar os olhos, e por isso se levantava tão agitada, limpando tudo que via pela frente, se movimentando o tempo todo, mesmo que estivesse apenas no quartinho infantil. Precisava sonhar com ela, com a imagem do que seria ela caso estivesse em seus braços, sentir seu calor mesmo que só por sonho.
Mas não foi o que aconteceu.
Acordou suada, trêmula e ofegante. Havia se lembrado do pior dia de sua vida. O dia em que perdeu filha. A sensação ainda estava por todo o seu corpo, a voz do médico que a atendeu naquele dia ainda estava em sua mente, assim como seu rosto e a sensação que sentiu ao descobrir que sua garotinha não estaria em seus braços em alguns meses.
— Eu sinto muito, senhora Barbieri.
Lágrimas desceram por seu rosto.
— Nós fizemos o possível, mas o bebê não resistiu.
Não conseguia respirar.
— Senhora Barbieri, respire, por favor.
Procurava por ar, chorava, pedia o tempo todo que não fosse verdade, e enquanto isso os médicos se colocavam em sua volta, tentando acalmá-la. Mas a única coisa que puderam fazer foi apagá-la. Quando acordou, Oliver se encontrava ao seu lado, sobre uma poltrona acolchoada; sua cabeça apoiada nos braços que se encontravam apoiadas na cama na qual estava deitada. Voltou a fechar os olhos, querendo se esquecer das palavras do médico, e então novamente adormeceu, e ela gostaria de ficar naquele estado por horas, até que aquela dor que a consumia completamente a deixasse finalmente; mas ela sabia que não aconteceria nem tão cedo.
Como odiava se lembrar daquele dia. Como odiava se ver perdida e dolorosamente abatida. Nem um sono tranquilo ela podia ter. Ela não conseguia adormecer direito desde o ocorrido. Era difícil. Era irritante. A cabeça não parava de pensar em tudo. No dia. Nas palavras. Nos sons. Em seu choro sofrido. Ela se lembrava de tudo todos os dias, toda noite, e por isso não conseguia dormir. E pela primeira vez na vida, ela seguiu para fora de casa, respirando fundo e olhando para o céu, sentindo uma gota cair em sua testa. E mais outra. E outra. E de repente, caía uma chuva forte. E mesmo assim ela não adentrou a casa. Ficou ali, pegando aquela chuva. Era como se o céu também chorasse com ela. Por ela.
Não podia ficar ali, não conseguia continuar ali. Ela se sentia caustrasfóbica. De repente, era o que sentia. Logo ela, que até então não conseguia deixar a casa dela. Mesmo assim, sabia que deveria voltar. Deveria tomar um banho quente e deitar. Ao menos tentar adormecer, ainda que soubesse que não conseguiria. A voz de sua melhor amiga soou firme em sua mente. E ela entrou finalmente em casa.
"Você vai adoecer, é isso que quer?"
"Eu tenho meus filhos para me preocupar, Felicity, quer que eu me preocupe ainda mais com você e os deixe de lado porque minha melhor amiga não consegue se cuidar nem por uma única noite?"
Era pesado, mas escutou ela dizer isso em uma das noites que passaram juntas, porque ela adoeceu. Adoeceu porque não conseguia dormir, não conseguia comer e definitivamente não conseguia se levantar da cama para mais nada além de tomar um banho. Ana precisou ser dura pela primeira vez na vida, ao perceber que nada que fazia por sua melhor amiga estava dando resultados. Precisou ser dura, porque ela não escutava ninguém além dela. Então teve que reagir de uma forma que nunca fez ou precisou fazer antes. Não por sua irmã de alma.
Quando passou pelo corredor, percebeu que a porta do quarto que antes era dela e do marido estava aberta. Percebeu também que a luz estava acesa. E foi só por sua curiosidade, que descobriu que não havia ninguém ali. Em casa, se encontrava completamente sozinha. Como desejou. Ou fez o marido acreditar que era seu desejo. Ele não estava. E algo dizia a ela, que seria assim pelos próximos dias.
Pelos príximos dias, Oliver aparecia apenas para ver como ela estava, e sempre quando ela estava dormindo. Não queria mais brigas. A observava por horas, e saia de mansinho, querendo evitar que ela percebesse sua presença de alguma forma. Não queria desistir dela. Não queria deixá-la sozinha naquela casa. Mas estava quebrado. Precisava de alguma forma se recuperar ao menos um pouco. Aquela casa, aquela situação, aquelas lembranças, faziam um mal a ele, que ele não conseguia nem sequer imaginar o quanto. Mas podia sentir. Ele não queria causar mais dor em si ou na esposa, então achou melhor dar um tempo de tudo. Théo o recebeu de braços abertos e ele era muito grato. Se não fosse por ele, estaria... em um hotel. Irritantemente sozinho. E mesmo que fosse bom estar sozinho de vez em quando, ainda assim, sentia a necessidade de ter com quem conversar. Liam quase não acreditou quando soube. E mesmo que não estivesse de acordo, não disse uma palavra, e Oliver foi grato também por isso. Não
Oliver soube que havia algo de errado no instante em que não a encontrou na cozinha, como sempre, fazendo seus bolinhos, cookies ou seja lá o que fosse que não a deixasse agitada por todo o dia. Era cedo, mas nem tão cedo, e por isso imaginou que a encontraria ali, na cozinha, cozinhando, que era o que ela fazia quando estava com a cabeça cheia. Mas não foi o que encontrou ao entrar em casa. Tudo estava escuro quando subiu as escadas, e foi isso que o fez ficar em alerta pela primeira vez. Estranhou quando não ouviu seus passos ou mesmo seus sussurros; porque ela havia passado a falar sozinha desde que tudo aconteceu. Por um momento imaginou que sua esposa estivesse dormindo, mas passava das 8h e ela ainda não havia se levantado, então era impossível. Havia tido uma noite ruim e acabou se atrasando para o trabalho, mas nem por isso deixou de passar ali para vê-la. Ainda que soubesse que a encontraria desperta. Pela primeira vez em dias. Vários dias. Quinze, para ser mais exato. Seguiu
Oliver estava naquela sala de espera, angustiado, esperando por uma notícia e que ela fosse boa. Após chegar com sua esposa em seus braços, gritando desesperado por ajuda, trouxeram uma maca e a levaram, mas aquele não era o hospital no qual trabalhava Agatha Villela, a médica na qual era a chefe dos residentes sua esposa trabalha — a mesma na qual havia sido de sua esposa em sua residência no hospital Villela —, e por isso ligou para a mulher loira, pedindo para que ela comparecesse e cuidasse de Felicity. Sabia que ela era a melhor e naquele momento ele precisava da melhor. Sentia-se um pouco culpado; talvez, se não tivesse dito todas aquelas coisas, ela não tivesse feito o que fez. Ele só pensava na angústia que foi encontrá-la com o pulso fraco, completamente desmaiada sobre a cama, com aquele vidro com poucos comprimidos dentro. Quantos ela havia tomado? Por que ela faria isso sabendo o quanto era perigoso? No que ela estava pensando... E Oliver, que andava de um lado par
E então, após dizer o nome, desligou. Seus amigos também deveriam saber, mas não conseguiria ligar para mais alguém e falar com sua própria boca, então abriu o WhatsApp, abriu o grupo no qual estavam todos os seus amigos, inclusive sua esposa, e digitou rapidamente onde estava, o que havia acontecido, contou que não sabia nada de Felicity ainda e pediu para que não comparecessem, pois seria muito tumultuado; ele não conseguiria suportar naquele momento de tensão, mesmo que soubesse que os amigos seriam gentis. Prometeu notícias e então desligou a tela, dando um longo suspiro em seguida. Tinha medo do que ouviria dos médicos, mas precisava acreditar de que ela ficaria bem – do que aconteceu a pouco, claro, afinal, ela não estava bem emocionalmente e nem sabia se ficaria se não aceitasse ajuda. Não demorou muito para que seu irmão chegasse. Ele sentou-se ao seu lado e ouviu atentamente a tudo que havia acontecido, e assim como imaginou, ouviu que não era sua culpa. Thomy estava sempre
— Eu sinto muito, ele acabou de se transformar em um staf. — Eu não quero saber dele, ou no que ele se transformou ou não, eu quero saber se posso ver minha esposa. – Diz de maneira grosseira, mas não se desculpou, estava irritado por tudo que aconteceu a pouco e preocupado com a esposa mesmo que dissessem que ela estava bem. — A Villela o acompanhará até o quarto dela. E eu estarei de plantão hoje, então caso precise de mim, é só chamar. — Obrigado. – Diz verdadeiramente, antes de olhar para seu irmão. — Vai lá. Eu vou avisar a nossa família e aos seus amigos que ela está bem. O moreno mais novo apenas balançou a cabeça antes de seguir a médica, na qual conhecia a um tempo já que ela havia sido a chefe de sua esposa na época da residência dela no hospital mais renomado daquele país. A mais velha havia pedido desculpas por sua conduta de a pouco, mas Oliver apenas balançou a cabeça; não estava preocupado com as palavras dela ou mesmo se importando, tudo que ele queria naquele mo
— Sabe o que senti quando entrei no quarto e... – Sentiu o nó de antes na garganta. – E a encontrei inconsciente? Como me senti ao te chamar, várias vezes e você não abriu os olhos? Ela mordeu o lábio, sentindo o choro vir da garganta. — Eu pensei que estava morta, Felicity. — Me desculpa. – Sua voz saiu embargada, assim como a dele a pouco. — Não faça mais isso. – Praticamente implorou. – Apenas... não faça, por favor. O silêncio reinou por um tempo. — Eu não estou bem. – Confessou com os olhos lacrimejados. – Eu não sou a melhor pessoa nesse momento, e não consigo ser quem você precisa. Eu não consigo. Estou destruída, completamente. – Ela deu uma pausa dando um baixo soluço, antes de confessar o que jamais havia o feito para ninguém. – Eu sonho com a nossa filha, eu falo com ela, eu vejo ela, Oliver... Ele engoliu em seco. — E eu sei que ela não está... viva. Mas eu penso que sim, então, acredito que estou muito doente. – Confessou entre o choro. – Então, eu acho, que o
Enquanto dirigia até em casa, com o som ligado bem baixinho para ele não acabar dormindo no volante, ele pensava em tudo que houve entre ele e a esposa naqueles meses. E que seriam ainda mais difíceis quando chegasse a data no qual seria o dia que a filha deles nasceria. Não faltavam tantos dias assim, e a chegada o deixava angustiado, então ele imaginava o que sua esposa sentia por pensar no mesmo que ele. Ele gostaria de pensar que ela não se lembraria nem tão cedo, que ela teria outras coisas com o que se preocupar, mas sabia que não era verdade. Ela provavelmente se lembraria naquele mesmo dia ou no máximo no dia seguinte, isso se já não estava pensando nisso quando se virou de costas para ele há alguns minutos atrás. Engoliu em seco e seu corpo se arrepiou por imaginar a dor dela; ele estava sofrendo, muito, mas conseguia controlar isso melhor que ela. A primeira vez que havia chorado após descobrir da perda, havia sido há algumas horas atrás, antes de toda aquela confusão aconte
Chegou ao fim de seu corredor e olhou para a primeira porta do outro, do seu lado direito, e pela primeira vez andou até ela, devagar. Havia uma plaquinha decorativa na qual a amada havia comprado; um cordão cor-de-rosa, várias perolas e um laço delicado enfeitavam toda a forma oval da placa — com exceção do laço, que ficava na ponta de cima —, com estampa floral; ao redor, uma moldura artesanal delicada; no centro havia o nome “Lívia” e ao lado uma linda ursinha princesa na qual tinha um vestidinho cor-de-rosa. Oliver levou um tempo olhando para aquela plaquinha, até que finalmente pegou na maçaneta, girando-a e abrindo a porta minimamente, apenas o bastante para que ele pudesse ver o interior do quarto. Ele encontrou tudo da mesma forma que estava desde que havia sido montado com todo carinho; havia um berço em conjunto com uma cômoda rosa e branca na qual tinha duas gavetas, dois nichos — onde havia uma manta rosa-bebê dobrada perfeitamente e uma caixinha de música na mesma cor — e