- Eu quero morrer, eu quero a minha mãe, eu quero envelhecer, já deixei de ser mulher, voltei a ser menina. – lamenta-se Fabilda. Raios! Não me digas que já deixou de ter a regra[1]? Temos que apressar a viagem! Levanto-me, obrigando-os a levantar-se.
Selamos as montadas e a mula, que carinhosamente a baptizamos de Ulf, e seguimos a XVI via para o sul. O panorama começou a ser plano e, a meio do dia, paramos numa fonte abrigada por oliveiras, soltamos as montadas num campo de restolho para comerem forragens. Fabilda, já mais recuperada, aquece uma mistela na frigideira, misturando farinha de cevada e abrindo a carne dos enchidos. Molho meu chapéu de abas largas preto na fonte como maneira de me refrescar do sol matador do meio-dia. Odoacro estava de pé, observando ao longe as montadas, tinha a cara rígida.
- Que foi ó rabo? Tens medo que as montadas fujam, são dóceis, dependem de nós, elas não vão fugir. - Odoacro rosna-me:
- Tenho medo de a perder, ali
A felicidade só se pode alcançar noutro mundo, enquanto que para nós…-Fabilda interrompe-me:- Se conseguirmos inverter meu feitiço ofereço-me ao senhor – não lhe respondo, e essa declaração repentina da moça remete-me para o meu próprio futuro “ que raios vais fazer a Olissipo? Que raios vais fazer lá a cima? a Suevia? Não sabias ficar no teu cantinho com as cabras?”Quando comemos este pãoE bebemos deste cálice,Anunciamos, Senhor, a vossa morte,Esperando a vossa vinda gloriosaImerso nestes inusitados pensamentos fiquei quase não ouvindo a homília do bispo Andeca. Que raios estás aqui a fazer? Tu és um raio de um odinista. Isto é gente estranha! Começo a tremer das p
Espreguicei-me demoradamente de olhos fechados, sentindo a fresca brisa vinda lá de baixo, do rio. Depois, lentamente, fui habituando os olhos à claridade, vendo primeiro os lanços de muralhas ameadas de cor amarelada, e, depois delas, o escarpado vale coberto de vegetação. Mais além, como um fundibulario que lança a sua pedra, meu olhar recaiu nas extensas e planas vistas além Tagus, enormes campos de searas amareladas de pão até perder de vista, vastíssimos olivedos desapareciam do olhar, vigiados por touros solitários e calcorreados por grupos de bons cavalos. Meu Deus como isto é enorme! Por Woden, não evoquei o Velho Pai, mas Deus, o Deus cristão?! Magníficas quintas, todas muito férteis, entremeavam esses campos vastíssimos, e a via que saia da altaneira ci
- Ei, Ó da torre! – espero, uma velhota olha-me assustada da sua soleira e entra em casa. Não deve ser costume bater a esta porta, afinal era o forte de uma força ocupante estrangeira, relembro a conversa com Sardenna: “ - como vieste parar aqui? - Nem eu sei bem. – um dia estava a lavar o chão de mármore e fui chamada ao atrium, lá estava meu amo, um suevo e mais um padre com um cicatriz na face, discutiam em latim apontando para uma moiça luso-romana que vestia um vestido nobre, depois apontaram para mim, os da guarda real alana vieram-me buscar”. - Ei, ó da torre! - Vai-te embora, que quereis daqui? aqui só entram vândalos ou desgraçados para a decapitação, vai-te embora verme! - Cala-te macabeu! E chama o teu chefe, eu sou o filho de Boringio Langobardo. - Nem que fosses o filho de Hermerico. Vai-te embora ou atiro-te com um dardo. - Um zarolho como tu? Chama o teu chefe que o sol tá-me a foder a mona. – Rai
. Detivemo-nos no escuro, frente ao grupo de marinheiros, todos baixos, entroncados e com carapinhas, que merendavam pão e chouriço. - Vosso capitão? – pergunta imponente Slova. Um dos marinheiros aponta a saída do enorme armazém à beira-rio. Para lá nos encaminhamos. O sol voltou a brilhar sobre as nossas cabeças. No alto cais estava ancorado uma enorme corbita de duas velas, do tombadilho, um marinheiro de tronco nu acena para Slova e desce pelo passadiço em largas passadas apressadas.- Apoloro, vais ter que levar…quantos são? – pergunta-me:- Três. - …Apoloro vais ter que levar três passageiros amanhã quando zarpares para Portocale. - O capitão de saio de couro com um punhal embainhado na sua ilharga, gesticula negativamente.- Senhor, o meu navio é de carga, não leva passageiros. Não temos lugar para pass
– Onde ancoremos? - Não sei, talvez numa aldeia de pescadores chamada Vacea, povo rude e pescador, os vacceus. Teremos que aproveitar o resto do dia para nos impulsionarmos mais para a norte! - e assim foi… passamos ao largo das Saturni, evitando os perigosos rochedos onde restos de embarcações naufragadas ainda estavam presas entre rochas. As saturni eram altas e rochosas e milhares de gaivotas tinham lá o seu poiso fazendo um ruído ensurdecedor. Ao final do dia, vimos um promontório antiquíssimo, com uma acolhedora enseada funda para fundearmos o barco. - Largar âncoras! – grita o capitão. Os diligentes marinheiros apressaram-se a largar as cordas das duas pesadas âncoras que nos permitiriam fundear ao largo de Vacea. Na base do promontório e ao longo da enseada, pequenas casas de tábuas de madeira enegrecidas vigiavam barcos longos com peculiares proas que se pareciam com pentes e que se dispunham ao longo da prai
- Por Woden e por seu ruivo filho, que mistela é essa? – pergunta o coto. - É o preço da luxúria, andais nas putas? – eu aceno que sim com a cabeça, vendo a interminável drenagem do pus. Já percebem por que eu as enrabo, nunca ninguém faz isso e assim eu livro-me de doenças, um veterano ensinou-me o truque, nunca ninguém as vai ao cu, julgam que é coisa de paneleiro. - Isto vai voltar a acontecer, o futuro da doença é trágico, dores de cabeça, dores nos ossos, perde de apetite, febre, cansaço, queda de cabelo. Pode-se andar anos assim. – diz o sabedor virias, o curandeiro da aldeia, continuando: - Depois, no futuro pode levar a uma paralisia geral. - Não faz mal, Odoacro é um eleito, tem uma cauda. – ficam todos a olhar para mim boquiabertos. - É filho de um rei e só a guerra ou a velhice o pode levar para o palácio celestial. – Odoacro assenta que sim com a cabeça. Olharam todos com caras de burros para mim, - Como
- Ah! a menina muda é minha? A mãe morreu na baixa Lusitânia. – Odro baixa a cabeça, Fabilda faz uma careta com a língua ao cavaleiro. Ele volteia o cavalo, avisando-nos: - Aconselho-vos a não ficar muito tempo por aqui. Os francos tem-vos de ponta, há guerra em Lucus[1], Tude e Brigantium está cercada. Bem vindos a Suevia e que a vossa cabeça fique no lugar por muito tempo. - abala dali com seu cavalo de tranças e sua guarda que nos miram de lado. Enveredamos pelo cais, interrompendo o jogo das crianças nuas. Algumas, perante a nossa passagem, mergulham do alto cais romano para a ribeira. Fabilda quer fazer o mesmo e Odoacro avisa-a que ela é muda. Paramos por momentos a ver um torneio de pugilato e depois dirigimo-nos às lojas escavadas nas rochas por cima do cais, no início dos socalcos. Passamos por um pedreiro que esculpia uma roda de moinho, passamos por um armeiro que, à viva força, nos queríamos vender azaguaias para caça grossa. Decid
- Deveríamos dedicar-lhe uma oração e um holocausto. - Com que vítima? - O nosso sangue. - Esta noite dá-me arrepios, o piar lamentoso das corujas, o uivar esfomeado dos lobos nos montes sobranceiros. - Sim, é uma noite propícia para as nossas preces ao Deus da Guerra. As criaturinhas vão-nos atender, porque estão atentas, ainda mais quando cortarmos os braços e jorramos sangue para terra. Ávidas elas vão estar bebendo-nos o suco vital e atendendo-nos. – Enveredamos, então, para o sul pelo caminho de terra e embrenhamo-nos num charco interrompendo o coachar das rãs, essas criaturas do inferno de hel. Ultrapassamos o charco e tornamos a embrenharmos no escuro mato, tendo por guia o parco e encoberto luar e os olhos longínquos das bestas deambulatórias. Temos medo, medo que alguém de repente nos ataque no escuro. Por fim, paramos nas fraldas de uma clareira, juntamos mato seco e, com duas pedras de sílex, pusemo-nos a fazer faíscas para que o fogo se pr