Maio de 2018
"Viro-me depressa, abro o vidro da janela do carro depois que um tiro acerta o espelho lateral. Coloco metade do corpo para fora, e tento atirar neles. Harry está dirigindo rapidamente, tentando desviar dos disparos. Ele faz uma curva rápido demais e perco o equilíbrio.
— Cuidado, Grace — Harry avisa, focado na estrada. O vento sopra em meus ouvidos quando acerto um tiro em um dos pneus. Depois que atinjo o segundo pneu, volto para dentro do carro, respirando pesadamente. Três tiros são disparados na minha direção e eu me abaixo.
Há uma pausa. Volto meu olhar para trás e vejo o carro diminuir a velocidade.
— Harry... eles estão parando — comento.
— Você atirou nos pneus — murmura.
— Não. Eles só pararam — explico, confusa.
No silêncio que se seguiu, escutamos o barulho do vento, soprando fortemente. Mas esse silêncio foi mais curto do que eu esperava. Ouvimos um alto woosh, e então vejo uma chama brilhante vindo até nós. Eles nos lançaram um explosivo. E está vindo para o lado de Harry. Meus olhos se arregalam quando eu grito:
— Harry!
Mas é muito tarde. O carro é impulsionado contra uma árvore. Tudo acontece muito rápido. Meu corpo é lançado para frente e atinjo o painel com a cabeça. Minha visão borra. Engasgo com a falta momentânea de ar. Viro a cabeça devagar para olhar Harry. Está inconsciente, com a cabeça no volante. Não consigo ver o rosto dele. Suas mãos estão sangrando e vejo pedaços de vidro cravados em sua pele. Solto um gemido de dor e percebo o carro em chamas. A fumaça começa a me sufocar.
— Harry... — sussurro, tentando manter os meus olhos abertos. Sinto sangue quente escorrer do meu nariz.
A porta do meu lado é aberta. Eu grito o mais alto que posso. A força e a intensidade do meu grito queimam a minha garganta.
— Harry! — grito uma e outra vez, lutando contra as mãos desconhecidas que me puxam para fora do carro. Mas não faz diferença alguma. Sou arrastada para fora de um veículo em chamas e para longe de Harry. Ouço alguém dizer:
— Certifique-se de que ele esteja morto.
E um tiro é disparado. Meu grito ecoa no ar. Minha dor gradualmente começa a me dominar, me puxando para a inconsciência, um sono perigoso e indesejado."
— Não! — grito, acordando. Calma, digo a mim mesma, suando e tremendo. Foi só um sonho. Na verdade, foi um pesadelo, mas não é real.
Enquanto inspiro e expiro, tentando controlar a minha respiração, meu celular toca.
— Pensei que você tivesse ido embora sem se despedir — Sara diz quando atendo. — Ocupada demais fazendo as malas para responder as minhas mensagens? — termina ela.
— O quê? Não! Você já está com saudades de mim? Eu não fui ainda — dou risada.
Sara é minha única amiga aqui em Curitiba. Conhecemo-nos no colégio, anos depois que vim morar na capital, quando tínhamos quinze anos, e é minha melhor amiga desde então.
— O que houve? — O tom dela fica sério de repente. Ela sempre consegue perceber quando tem algo acontecendo.
É muito irritante em alguns momentos.
Suspiro.
— Sonhei com ele de novo. Só que desta vez não foi romântico... — conto para ela sobre a noite horrível que tive, vendo o amor da minha vida morrer tragicamente. — Sei que sou maluca por continuar pensando nele assim — digo rapidamente. — Você não tem que me dizer. Nós já tivemos essa conversa um milhão de vezes antes.
Sara suspira.
— É só que... você tem um novo começo se aproximando, Grace. Caramba, a sua vida vai mudar completamente! Pensa nisso. Talvez seja inteligente, sabe... namorar um cara com quem você pode, tipo, ficar de verdade, sabe? E talvez esses sonhos nunca mais voltem...
— Mas parece que é real, Sara... sinto que é.
— Sabe o que quero dizer. — Sara responde, impaciente. — Alguém que você possa ter de verdade. E apresentar para a sua família. Pensa bem! Você vai para Londres, amiga! E vai conhecer britânicos lindos! E vai poder beijar um deles num canto escondido da escola que você vai estar. Alguém que seja tipo, real.
Real. A última palavra fica se repetindo na minha mente. Ela tem razão. Não importa como eu me sinta em relação a Harry, ainda existe um problema: todas as noites com Harry, desde que me lembro, foram sonhos. Porque Harry é o garoto dos meus sonhos, e só dos meus sonhos.
Ele não existe de verdade.
É claro que estou plenamente consciente de que soa cem por cento louco estar apaixonada por alguém que nunca conheci e que não é real. Mas, já que não consigo me lembrar de uma noite em que eu não sonhasse com Harry, pode ser difícil esquecer completamente. Os lugares e as histórias nos sonhos mudam, mas Harry é constante, me recebendo em cada sonho com seu lindo sorriso e seus olhos verdes deslumbrantes.
No entanto, sei que isso não pode durar para sempre. Então, tomei a decisão de sair do país e mudar minha vida. Consegui uma vaga de au pair, vou morar na casa de uma família britânica trabalhando como babá e estudando durante a noite, e tudo já foi pago pela matriarca da família.
O dinheiro que irei receber, eu vou enviar para a minha mãe aqui no Brasil. E, penso que, talvez, saindo da rotina e mudando praticamente tudo à minha volta, os sonhos parem e a minha mente pode, enfim, descansar.
Em outras palavras: estou fugindo, só que desta vez, os livros não serão a minha fuga como foram durante todos esses anos.
***
Minha mãe me levou até o aeroporto de Curitiba. Gabriel, meu irmão, estava triste no banco de trás do carro.
— Grace — ela me disse pela milésima vez antes de eu entrar no avião. — Você não precisa fazer isso. Eu já consegui um emprego, vai dar tudo certo.
Minha mãe não se parece comigo. Tem olhos e cabelos pretos, exceto pelas sardas no rosto. Senti um espasmo ao encarar os olhos dela. Como poderia deixar minha mãe? Ou meu irmãozinho? Claro, eles poderiam viver muito bem sem mim, mas ainda assim...
— Eu quero ir — digo com convicção.
Eu preciso ir. Precisamos desse dinheiro.
— Verei você logo — insistiu ela. — E pode voltar para casa quando quiser.
— Não se preocupe comigo — pedi — vai ser ótimo. Amo você, mãe.
Abracei os dois por um tempo, então fui para a área de embarque e não olhei para trás.
***
Quando o avião pousou em Londres, quinze horas depois, encontrei Hannah no portão do aeroporto. Ela estava tentando fazer malabarismos com duas filhas, três mochilas da Disney, um carrinho de bebê e uma barriga de grávida.
Ela é uma mulher de temperamento forte, independente, e não precisava de qualquer ajuda... até que o carrinho tombou e Katherine começou a chorar, Jenny deixou cair sua tiara com as orelhas do Mickey e, quando se abaixou para pegar, derramou seu milk-shake.
Eu tinha trazido poucas malas. Minha mãe me ajudou a renovar meu guarda-roupa com roupas melhores, mas ainda assim, tinha pouca coisa. Então, consegui ajudar Hannah e peguei o carrinho.
Caminhei com ela e as meninas até à Starbucks. Sentamo-nos em uma mesa enquanto a mãe delas entrou na fila para comprar outra bebida gelada para Jenny. Em questão de segundos, eu sabia que Katherine era tímida, e Jenny não era. Ouvi mais histórias sobre sua viagem para a Disney em cinco minutos do que eu pensava ser possível.
— A mamãe vai ter outro bebê. — Jenny diz enquanto coloca gominhas em sua boca. — Mas não temos um pai.
Eu não sabia como responder isso. Crianças geralmente não têm um filtro. Elas dizem algumas coisas bizarras, então é melhor apenas disfarçar.
— Tudo bem. Nem todo mundo tem um pai.
Ela sorriu. Estava perdendo dois dentes da frente, o que tornou seu sorriso muito mais adorável.
— Isso é o que diz a mamãe — responde ela.
Hannah voltou para a mesa com a nova bebida da Jenny e um café para mim. Ela parecia exausta. Eu não poderia imaginar, estavam voltando de uma viagem para Disney hoje. Nos quinze minutos em que eu me sentei com elas, aprendi muito, principalmente de Jenny, e sua mãe estremecia quando ela abria a boca.
Hannah é editora executiva da revista Harper e ela está feliz solteira. Usou o mesmo doador para cada uma de suas gestações. Quando fez trinta anos, ela percebeu que não poderia esperar pelo homem certo, então decidiu fazer uma família por conta própria.
Eu estava completamente admirada, porque nunca conheci uma mulher tão independente.
***
Só precisou uma viagem para levar todas as minhas coisas para o andar de cima. A casa é grande, bonita e aconchegante. Fiquei com o quarto que tinha janela para o jardim de trás. Com o chão de madeira, as paredes de cor azul claro, o teto branco e as cortinas cinza.
Deixaram-me sozinha para desfazer as malas e arrumar as coisas no quarto. Hannah me disse que ela e as meninas iriam descansar da viagem e que eu poderia fazer o mesmo. Quando terminei de colocar as minhas roupas no guarda-roupa, peguei minha bolsa e fui ao banheiro para um banho.
Olhei para meu rosto no espelho enquanto penteava meu cabelo embaraçado e úmido. Estava pálida, sem cor. Encarando meu reflexo, fui obrigada a admitir que estava mentindo para mim mesma. Não era só fisicamente que eu nunca me encaixaria. Se eu não consegui no Brasil, quais eram as minhas chances aqui?
Eu não me relacionava bem com as pessoas da minha idade. Talvez a verdade fosse que eu não me relacionava bem com as pessoas. Até minha mãe, que era a pessoa mais próxima de mim no planeta, nunca estava em harmonia comigo.
Não dormi bem naquela noite, mesmo depois de ter falado com Sara, com minha mãe e Gabe no telefone.
Uma semana depois e estou começando a aprender como é a rotina dessas garotas. São sete horas da manhã de segunda-feira e estou na cozinha preparando o café para elas. Depois de terminar, eu ainda tenho quinze minutos para ver se Katherine se vestiu. Ela está naquela idade que quer escolher suas próprias roupas. Na maioria das vezes, eu a deixo escolher, porque gosto da ideia da liberdade de expressão. Mas ela tem três anos e quer usar seu tutu em todos os lugares. Houve momentos em que tive que convencê-la do contrário. Jenny geralmente se veste enquanto estou fazendo o café da manhã. Ela nunca consegue decidir, por isso temos um desfile de roupas em potencial entre colheradas de cereal. Aos sete anos, ela tem mais roupa do que eu poderia imaginar. O resto do dia é dividido entre aulas de balé, ginástica, aulas de natação, música e, no meio disso, o almoço. São crianças ocupadas. Elas têm um calendário social maior do que a maioria dos adultos. Jenny senta-s
Junho de 2018 Katherine está em pé no meio do corredor, completamente nua, com um picolé na mão. Tem sido uma longa batalha para levá-la para o banho, e eu estou prestes a acenar a bandeira branca. Por alguma razão, as duas meninas têm uma aversão extrema para água e sabão. — Katherine Mary Burton — ofego. — Estou pedindo a você com muito carinho. Tiro o cabelo do rosto, e coloco as mãos na cintura. Se há uma lição nisso, é que eu estou fora de forma. Perseguir uma criança de três anos de idade por dois lances de escadas e em torno de uma sala de brinquedos não foi fácil. Eu fiz uma nota mental para colocar um lembrete em meu celular para ir para uma corrida na próxima semana, se houver tempo. Vou começar a estudar inglês hoje à noite – faz parte do pacote de intercâmbio. — Agora, eu vou contar até três, e se você não entrar no banheiro, vamos descer e assistir aquele filme sobre a importância da higien
ObserveiHarry. Ele ficou em silêncio o tempo todo, com sobrancelhas franzidas e mordendoos lábios. Percebi que euestava assim também, e suandode nervosismo. Já não basta ser sequestrada por um psicopata maníaco, tenho que estarao lado de Harry! — O que vamos fazer agora? — pergunta a garota ruiva. Acho que nome dela é Irma. — Não sei, acho que devemos tentar descansar... ele disse que amanhã de manhã vamos ser treinados, então... — Kyle responde. Todos concordam com a cabeça e se levantam para ir, mas não consigo sair do meu lugar, parece que estou congelada. Ajeito uma mecha do meu cabelo atrás da orelha enquanto tento organizar as ideias e lembrar que fui raptada e que provavelmente serei morta, mas... não consigo. Não seja esquisita, não seja esquisita, repito para mim mesma ao mover meus pés e parar na frente dele. Há milhares de possíveis frases passando pela minha cabeça. Harry vai
Quando estamos terminando de comer, ouvimos um clique na porta de entrada, que abre automaticamente. Então as grades, que fechavam as janelas e portas, sobem, trazendo a luz do sol, e vejo que estamos em uma casa de campo, só há árvores e montanhas à nossa volta, um lindo gramado na frente e, da janela da cozinha, vejo um campo que parece ser de treinamento, com vários equipamentos, e um ginásio ao lado. Sinto um nó no estômago. Nunca fui boa nesse tipo de coisas.Alguns levantam para olhar à nossa volta e quandoNatancorre para a porta, um homem alto, bonito e musculoso aparece, vestindo calçapreta e uma camiseta preta, os braços cruzados ao olhar para nós seriamente. —Bom dia, sou oWill, e serei o instrutor de vocês. —Podemos saber por quê? Por que seremos treinados? —indagaAlex. —Sinto muito, mas estou como vocês. Fui capturado e obrigado a seguir asordens deles, caso contr
Julho de 2018 Tive pesadelos durante anoite. Eu me vi sozinha, afogando-me em águas paradas e profundas. Via as árvores me olharem, seus galhos se curvando para a superfície trêmula. Sentia a água tremer como se estivesse viva e depois perdia de vista as árvores e os galhos, tragada no líquido que me aspirava, cada vez mais fundo. Meus braços se estendiam dolorosamente para aquela luz, para aquele céu inacessível, apesar de meus esforços para soltar os pés e subir à tona para respirar. Acordo exausta e, encharcada de suor e trêmula por causa do sonho, caminho até o banheiro para tomar um banho e me trocar. Quando saio, a porta domeuquarto está aberta e alguém escreveu a palavra “puritana” em vermelho na porta. Onde conseguiram a tinta? A cama e o travesseiro estão manchados com a mesma tinta. Olho ao redor, com o coração batendo forte de raiva. Devon aparece na por
Eles cobrem meus olhos com uma faixa grossa, e amarram minhas mãos por trás. Com isso, o medo instintivo de não saber onde colocarei os pés, me trava. Me esforço para andar normalmente, mas tropeço a cada dois passos e sou levantada pelos guardas, avançando sem querer. Ouço alguns cliques e então o barulho de uma porta pesada se abre. Dentro do ambiente está gelado: ar condicionado. Ouço barulhos de pessoas trabalhando, como um escritório: papéis, teclado, bips. Escuto uma voz que parece estar no comando. Ele fala com alguém e tenho certeza de que não está contente. Tenho a impressão de ouvi-lo dizer "desse jeito você vai acabar com eles". Depois, há gritos e ordens sendo dadas. Muito depressa, os guardas me levam para a sala designada. Desamarram minhas mãos e a venda é retirada depois que a cortina da sala da enfermaria se fecha. Uma enfermeira está na minha frente, me olhando com pesar e compaixão. Quero falar, interrogá-la, mas nada me vem à mente. Ela me
Começo a subir e, quando já estou a alguns metros do chão, ele me segue. Move-se mais rápido do que eu, e logo suas mãos seguram o galho onde meus pés acabaram de pisar. A altura está me deixando tonta, minhas mãos doem de segurar os galhos e minhas pernas estão tremendo, mas não sei bem o motivo. Não é a altura que me assusta. De repente, percebo o que está me deixando tonta. É ele. Algo nele faz com que me sinta prestes a despencar. Ou derreter. Ou arder em chamas. Minha mão quase erra o galho seguinte. Uma rajada de vento bate contra o lado esquerdo do meu corpo, jogando o meu peso para a direita. Perco o fôlego, desequilibrando-me. A mão de Harry segura o lado do meu quadril, me ajuda a me equilibrar e me empurra suavemente para a esquerda. Agora eu é que não consigo respirar. Fico parada, olhando para as minhas mãos, com a boca seca. Sinto a presença de sua mão que já não encosta mais em mim, de seus dedos longos e estreitos. — Você e
Descobri o mundo da insônia desde que cheguei nesse local. Em uma dessas noites, escutei uma conversa cochichada dos guardas, como se estivessem muito próximos da minha janela. Ouvi um deles dizer que por um triz não tínhamos conseguido fugir. Que se fôssemos mais espertos, teríamos visto o portão logo atrás das árvores, que permaneceu aberto por alguns minutos, por conta de uma falha elétrica. Eu vi o portão. Quando subi naquela árvore, pude ver o que está ao nosso redor. É uma selva densa, não vi nada além de árvores e montanhas, mas avistei o enorme portão escondido entre elas. Então a conversa mudou de rumo... parei de ouvir depois disso. Deito-me olhando para o teto, no escuro do meu quarto. Por fim, acabo fechando os olhos e começo a cochilar. *** — Que bom ver você po