Quando estamos terminando de comer, ouvimos um clique na porta de entrada, que abre automaticamente. Então as grades, que fechavam as janelas e portas, sobem, trazendo a luz do sol, e vejo que estamos em uma casa de campo, só há árvores e montanhas à nossa volta, um lindo gramado na frente e, da janela da cozinha, vejo um campo que parece ser de treinamento, com vários equipamentos, e um ginásio ao lado.
Sinto um nó no estômago. Nunca fui boa nesse tipo de coisas. Alguns levantam para olhar à nossa volta e quando Natan corre para a porta, um homem alto, bonito e musculoso aparece, vestindo calça preta e uma camiseta preta, os braços cruzados ao olhar para nós seriamente.
— Bom dia, sou o Will, e serei o instrutor de vocês.
— Podemos saber por quê? Por que seremos treinados? — indaga Alex.
— Sinto muito, mas estou como vocês. Fui capturado e obrigado a seguir as ordens deles, caso contrário... — Will suspira e continua. — Não tenho escolha, eles estão no controle. Mas o que sei é que precisam ser treinados para matar.
Antes que alguém fale alguma coisa, Will prossegue:
— Tudo bem, vamos começar! Sugiro que vocês se esforcem o máximo, porque suas vidas dependem disso. E a minha também. Sigam-me.
Ele sai porta afora e o seguimos.
Contornamos a casa e vejo que homens armados cercam a casa. Guardas.
Estamos em uma clareira gigante, com uma floresta densa e escura em volta e mais ao longe é possível ver montanhas cercando o lugar.
Chegamos na parte de trás onde fica o galpão. Will para em frente a uma porta de madeira e cruza os braços.
— Existem algumas regras básicas — diz ele. — Vocês devem estar na sala de treinamento todos os dias. Começará às oito da manhã e terminará às seis da tarde, com um intervalo para o almoço. Não tentem sair deste lugar, ele é fechado com um muro de mais de cinco metros de altura e uma cerca elétrica logo acima dele. E só a tentativa já garante a sua morte.
Entramos no galpão e olhamos ao redor. É impressionante a quantidade de equipamentos para os treinos. Will vai até o final onde ficam vários tipos de armas e há alvos desenhados na parede.
— A primeira coisa que vocês vão aprender essa semana é como atirar.
Will diz para cada um pegar uma arma que está colocada na mesa de canto e se posicionar na frente dos alvos.
— Observem com atenção! — grita. Ele encara a parede na qual estão desenhados os alvos: um quadrado para cada um de nós, com três círculos pretos no centro. Will separa os pés, segura a arma com ambas as mãos e atira. O estrondo é alto.
Estico o pescoço para ver o alvo. A bala perfurou o círculo central.
Olho fixamente para a arma em minha mão. Nunca esperei um dia segurar e, muito menos, disparar uma arma. Ela me parece perigosa, como se eu pudesse ferir alguém apenas por segurá-la.
Separo os pés e seguro delicadamente a arma com as duas mãos. Ela é pesada e difícil de manusear. Aperto o gatilho com força. O som fere meus ouvidos e a força do disparo me empurra para trás. Tropeço, apoiando-me na parede à minha esquerda para me equilibrar. Não sei onde foi parar a bala, mas sei que não foi nem perto do alvo.
Atiro mais uma vez, e mais outra e outra, e nenhum dos tiros chega perto. Natan, que está ao meu lado, sorri e diz:
— Calma, Grace. Você vai conseguir.
Cerro os dentes e encaro o alvo, decidida no mínimo me manter firme desta vez. Se eu não for capaz de aprender nem a primeira lição que eles nos deram, como serei capaz de chegar ao final do treinamento? Ou melhor, como sairei daqui viva?
Aperto o gatilho com força, e desta vez estou preparada para o empurrão que dá e meus pés permanecem firmes no chão. Vejo um buraco de bala no canto do alvo, e ergo as sobrancelhas ao olhar para Natan.
— Viu como eu estava certo? — diz.
Esboço um sorriso.
Depois de incansáveis tentativas, consigo acertar o centro do alvo, fazendo com que uma corrente de energia e satisfação percorra meu corpo.
Estou desperta, com os olhos bem abertos e as mãos quentes. Sorrio para Harry, que está do meu outro lado, e ele me ignora. Percebi que ele nem precisa de treinamento, acertou todos os disparos no centro do alvo. Natan também.
Quando finalmente chega a hora de fazermos um intervalo para o almoço, meus braços estão latejando de segurar a arma por tanto tempo, e tenho dificuldade em esticar os dedos.
***
Dois dias depois, Will nos guia a uma nova sala no ginásio. Ela é ampla, com um piso liso cinza e fosco. Pendurados em um dos lados da sala, com intervalo de cerca de um metro entre eles, encontram-se sacos de pancadas. Will fica em pé no centro, onde todos podem vê-lo, e diz:
— O próximo passo é aprender a lutar. O objetivo desta etapa é ensiná-los a agir, preparar seus corpos para que respondam a ameaças e desafios. Hoje nos concentraremos na parte técnica, e em breve irão lutar entre vocês. Por isso, sugiro que prestem atenção. Aqueles que não aprenderem rápido, vão se machucar.
Will lista tipos diferentes de socos, demonstrando-os à medida que os apresenta, primeiro no ar e depois no saco de pancadas.
Vou me familiarizando com eles à medida que treinamos. Como no caso da arma, preciso de algumas tentativas até descobrir como devo me posicionar e como movimentar meu corpo da maneira correta.
Os chutes são mais complicados, embora ele nos ensinou apenas o básico. O saco de pancadas machuca minhas mãos, deixando minha pele vermelha, e ele quase não se move, não importa o quão forte eu bata.
Will nos libera às seis da tarde. No caminho para dentro da casa, Angela me acompanha e olho para ela, erguendo minhas sobrancelhas.
— O que você vai fazer agora? — pergunta.
— Comer, estou com muita fome — respondo, com um suspiro cansado — E depois, quero dormir.
— Hum, pensei que poderíamos sentar lá debaixo das árvores e descansar, junto com Irma.
— Ah, podem ir, obrigada pelo convite, mas eu quero dormir mesmo.
— Tudo bem então, mas estaremos lá, caso mude de ideia.
Aceno e sentamo-nos à mesa para o jantar. Sento-me ao lado de Harry, que já está sendo alvo dos olhares de Cornélia e Megan. Não sei por que, mas não gosto delas, e parece que o sentimento é mútuo, porque me olham como se fossem me estrangular.
Depois que termino de comer, sigo para meu quarto e tomo um banho demorado. Deito-me, tentando dormir, mas não consigo por causa dos pensamentos correndo em minha mente. Temos que dar um jeito de sair daqui... só consigo pensar nisso.
Não consigo dormir desde que compreendi que no silêncio da noite meu cérebro funciona melhor. Observo com atenção tudo por aqui: a hora das trocas dos guardas, como se posicionam, qual deles vigia, qual traz mantimentos...
E, depois, tento me preparar para o esforço que uma fuga exige, as precauções a tomar. Será que alguém está pensando o mesmo que eu? Ou estou sozinha nessa?
O calor se acumula atrás dos meus olhos à medida que penso na minha casa, minha família, nas meninas em Londres, e, quando pisco, uma lágrima escorre sobre meu rosto. Cubro a boca para abafar o soluço de tristeza. Não posso chorar. Não posso. Preciso me acalmar.
Vai ficar tudo bem aqui. Poderei ser amiga de Angela e Natan. Tenho Harry aqui comigo, mesmo que ele esteja me ignorando, sinto que posso contar com ele.
Minhas mãos tremem e as lágrimas se acumulam com mais rapidez em meus olhos, ofuscando minha visão. Não importa agora se sinto uma dor em meu peito quando me lembro do rosto do meu irmão, de Jenny e Katherine, mesmo que seja por segundos. Regulo minha respiração. Ouço um soluço vindo do quarto ao lado. Quem será que está chorando tão alto assim? Engulo em seco com força. Meus olhos se fecham e sinto o peso do sono, mas quando estou prestes a dormir, ouço o choro do quarto ao lado novamente.
Talvez meu problema seja que, mesmo que eu voltasse para casa, lá não seria meu lugar. Sempre quis sair do Brasil, morar em Londres e, quando consegui, foi por pouco tempo, porque fui capturada algumas semanas depois da minha chegada em Londres.
Pensar nisso me leva a ranger os dentes. Aperto o travesseiro contra meus ouvidos para bloquear o choro que estou ouvindo, e adormeço com uma poça úmida apertada contra a bochecha.
Julho de 2018 Tive pesadelos durante anoite. Eu me vi sozinha, afogando-me em águas paradas e profundas. Via as árvores me olharem, seus galhos se curvando para a superfície trêmula. Sentia a água tremer como se estivesse viva e depois perdia de vista as árvores e os galhos, tragada no líquido que me aspirava, cada vez mais fundo. Meus braços se estendiam dolorosamente para aquela luz, para aquele céu inacessível, apesar de meus esforços para soltar os pés e subir à tona para respirar. Acordo exausta e, encharcada de suor e trêmula por causa do sonho, caminho até o banheiro para tomar um banho e me trocar. Quando saio, a porta domeuquarto está aberta e alguém escreveu a palavra “puritana” em vermelho na porta. Onde conseguiram a tinta? A cama e o travesseiro estão manchados com a mesma tinta. Olho ao redor, com o coração batendo forte de raiva. Devon aparece na por
Eles cobrem meus olhos com uma faixa grossa, e amarram minhas mãos por trás. Com isso, o medo instintivo de não saber onde colocarei os pés, me trava. Me esforço para andar normalmente, mas tropeço a cada dois passos e sou levantada pelos guardas, avançando sem querer. Ouço alguns cliques e então o barulho de uma porta pesada se abre. Dentro do ambiente está gelado: ar condicionado. Ouço barulhos de pessoas trabalhando, como um escritório: papéis, teclado, bips. Escuto uma voz que parece estar no comando. Ele fala com alguém e tenho certeza de que não está contente. Tenho a impressão de ouvi-lo dizer "desse jeito você vai acabar com eles". Depois, há gritos e ordens sendo dadas. Muito depressa, os guardas me levam para a sala designada. Desamarram minhas mãos e a venda é retirada depois que a cortina da sala da enfermaria se fecha. Uma enfermeira está na minha frente, me olhando com pesar e compaixão. Quero falar, interrogá-la, mas nada me vem à mente. Ela me
Começo a subir e, quando já estou a alguns metros do chão, ele me segue. Move-se mais rápido do que eu, e logo suas mãos seguram o galho onde meus pés acabaram de pisar. A altura está me deixando tonta, minhas mãos doem de segurar os galhos e minhas pernas estão tremendo, mas não sei bem o motivo. Não é a altura que me assusta. De repente, percebo o que está me deixando tonta. É ele. Algo nele faz com que me sinta prestes a despencar. Ou derreter. Ou arder em chamas. Minha mão quase erra o galho seguinte. Uma rajada de vento bate contra o lado esquerdo do meu corpo, jogando o meu peso para a direita. Perco o fôlego, desequilibrando-me. A mão de Harry segura o lado do meu quadril, me ajuda a me equilibrar e me empurra suavemente para a esquerda. Agora eu é que não consigo respirar. Fico parada, olhando para as minhas mãos, com a boca seca. Sinto a presença de sua mão que já não encosta mais em mim, de seus dedos longos e estreitos. — Você e
Descobri o mundo da insônia desde que cheguei nesse local. Em uma dessas noites, escutei uma conversa cochichada dos guardas, como se estivessem muito próximos da minha janela. Ouvi um deles dizer que por um triz não tínhamos conseguido fugir. Que se fôssemos mais espertos, teríamos visto o portão logo atrás das árvores, que permaneceu aberto por alguns minutos, por conta de uma falha elétrica. Eu vi o portão. Quando subi naquela árvore, pude ver o que está ao nosso redor. É uma selva densa, não vi nada além de árvores e montanhas, mas avistei o enorme portão escondido entre elas. Então a conversa mudou de rumo... parei de ouvir depois disso. Deito-me olhando para o teto, no escuro do meu quarto. Por fim, acabo fechando os olhos e começo a cochilar. *** — Que bom ver você po
Uma semana de treinamentos depois, ainda estou com dificuldades e Harry voltou a me ignorar, fazendo de conta que eu não existo. Ainda não sei como me sinto sobre isso. Também tentei não pensar muito em Derek e no fato de que ele tem me observado. Não contei a ninguém o que houve naquele dia na enfermaria. Às quatro da tarde, duas vezes por semana, antes do pôr do sol, os guardas mascarados e armados entram na casa para repor os alimentos. Depois, eles se dirigem até o portão para trocar de turno. Eu seguia seus gestos com extremo interesse, tentando encontrar a falha do sistema que nos permitisse escapar. Porém, não podíamos falar sobre a fuga, eles iriam ouvir; então, aprendemos a nos comunicar com gestos e olhares. A fuga estava finalmente sendo planejada. *** Um
— Sobre a Companhia... É uma organização do governo? — Harry pergunta, desviando a atenção de Jason sobre mim. Ele parecia calmo, sentado no sofá, suas mãos descansavam em cima dos joelhos, mas seu corpo estava tenso. E, quando ele ajustou a sua posição, notei que a camiseta estava presa nas costas, dando acesso rápido e fácil à arma colocada ali. Nenhum de nós pode usar as armas quando não estamos em treinamento, ou sem a autorização de Will, e como ele tem uma? — Não, está além do governo. Mas eles são em grande parte financiados pelo governo, e existe um acordo mútuo entre eles. O governo deixa a Companhia fazer o que bem entender e, o que quer que desenvolvam, eles terão acesso a isso em primeira mão. — Jason responde. Isso me deixa enojada. Um peso cai sobre meu estômago. — Mas se o plano inicial deles era uma guerra invencível, e eles mudaram de ideia... o que eles querem, afinal? — Natan pergunta. — Eles querem vendê-los como uma
HARRY Não demorou muito - entre a subida íngreme e o calor - a falta de ar. Natan e eu temos treinado intensamente e, embora Grace tenha uma força física surpreendente, subimos rapidamente por cerca de uma milha antes de ela pedir um descanso. A folhagem densa esconde nossa visão, então decido escalar uma árvore com galhos baixos e firmes, para obter uma visão melhor. E desejei que não tivesse. O gramado que tinha antes de começar a floresta parece estar sangrando, cheio de manchas vermelhas. Corpos jazem no chão, mas a esta distância, com todos vestidos de preto, eu não posso dizer quem escapou ou quem morreu. Bem, o que eu pensei? Que por eles precisarem de nós, esperava que pudessem mostrar alguma... o quê? Retenção? Relutância, pelo menos.
GRACE Assim que Harry desaparece por entre as folhagens e, antes que eu possa pensar no que está acontecendo entre nós, ouvimos um tiro. Então outros tiros são disparados em torno do nosso perímetro. Agachamo-nos, com as mãos na cabeça, enquanto as balas atravessam as árvores. Há um súbito silêncio, até que um tiro solitário é disparado, e o tiroteio começa novamente. Então sinto sua presença ao meu lado. Harry voltou e os tiros pararam. Olho para os lados, e enxergo o corpo de um guarda, sua metralhadora ao lado, com uma poça de sangue embaixo de sua cabeça. Morto. Ficamos escondidos atrás da árvore, pacientemente esperando por sinais da presença de alguém. Engasgo quando ouço uma voz. — Você tem certeza de que el