Junho de 2018
Katherine está em pé no meio do corredor, completamente nua, com um picolé na mão. Tem sido uma longa batalha para levá-la para o banho, e eu estou prestes a acenar a bandeira branca. Por alguma razão, as duas meninas têm uma aversão extrema para água e sabão.— Katherine Mary Burton — ofego. — Estou pedindo a você com muito carinho.
Tiro o cabelo do rosto, e coloco as mãos na cintura. Se há uma lição nisso, é que eu estou fora de forma. Perseguir uma criança de três anos de idade por dois lances de escadas e em torno de uma sala de brinquedos não foi fácil. Eu fiz uma nota mental para colocar um lembrete em meu celular para ir para uma corrida na próxima semana, se houver tempo. Vou começar a estudar inglês hoje à noite – faz parte do pacote de intercâmbio.
— Agora, eu vou contar até três, e se você não entrar no banheiro, vamos descer e assistir aquele filme sobre a importância da higiene pessoal.
Ela sorri para mim. Seu picolé vermelho está derretendo sobre o rosto e escorrendo pelo seu peito, deixando uma poça de suco no chão. Ela está uma bagunça pegajosa com gosto de cereja, e eu tenho que conseguir tirar isso do piso de madeira antes que fique uma mancha.
— Um... dois... tr-
— Katherine. — Hannah sai de seu escritório, os óculos em uma mão enquanto ela segurava o quadril com a outra. — Quando Grace lhe pede para fazer algo, você faz. — Hannah diz, com a voz firme. Katherine lambe seu picolé e responde:
— Não banho.
Sua mãe franze o cenho e olha para mim.
— Amor, você não tem aula hoje à noite?
— Sim. Tenho que estar lá às sete horas.
Ela olha para o relógio no pulso. Eu sei que é apenas seis, porque Jenny tem estado em silêncio por meia hora, e isso significa que ela está em frente da TV assistindo seu programa favorito.
— Vá. — Hannah acena com sua cabeça em direção ao meu quarto. — Vá ficar pronta. Eu vou lidar com este muppet imundo aqui.
— Mas o médico lhe disse para ter calma e...
Dou um passo em direção à Kath, apenas para ela dar um para trás, com um fluxo de picolé derretido seguindo-a.
— E eu ainda tenho tem-
— Grace, quero que você vá e não se atrase. Não se preocupe comigo ou as meninas — Hannah sorri, andando até Katherine. Ela ergue-a em seus braços, ajustando-a em seu quadril, com um suspiro pesado.
— Tudo bem, mas se você precisar de mim, eu vou estar lá no meu quarto até-
— Vai ficar pronta, Grace Heinz.
***
A escola não é muito longe, por isso resolvi ir caminhando, chegarei lá em 15 minutos.
A rua em que estou andando está muito deserta. Na verdade, Hampstead, o bairro onde Hannah mora, é um deserto depois que o comércio se fecha. Mas achei que tivesse mais pessoas aqui pela noite, assim como é durante o dia. Afinal, é um bairro turístico de Londres.
Um calafrio percorre minha espinha. Eu não devo temer, pois estou acostumada com isso - andar sozinha à noite. E eu sei me defender.
Meu corpo fica tenso quando avisto o mesmo homem, usando um capuz dessa vez, que está me seguindo já faz alguns dias. É o mesmo homem do shopping. Ele está encostado em um muro a uns dez metros na minha frente, e está me encarando. Quando diminuo a velocidade da minha caminhada, ele começa a vir em minha direção.
Sinto um arrepio, daqueles que significa que você sabe que algo está errado. Continuo andando e fingindo que ele não está olhando para mim. Quando ele se aproxima, meu coração começa a bater mais rápido, um tipo de nervosismo que normalmente só acontecia quando eu estava sobrecarregada ou em pânico.
Ele para na minha frente e agarra meu braço. Fico tensa. Ele está tão perto que posso sentir sua respiração no meu pescoço. Meu estômago dá um salto quando seu nariz encosta na minha orelha.
— Fique quieta e nada de ruim vai lhe acontecer — sussurra, sua voz rígida e grossa. O aperto no meu braço é forte.
Respiro fundo e lhe dou uma cotovelada nas suas costelas, me debato, solto-me do seu aperto no meu braço e tento correr, mas ele me alcança no mesmo instante, me puxando contra ele pelo pulso.
Rapidamente lhe dou um golpe com a palma da mão no seu nariz, fazendo-o me soltar e cambalear para trás.
Corro, mas não por muito tempo. Algo atinge meu pescoço e caio no asfalto. Passo a mão no local atingido e retiro um pequeno dardo; ele atirou em mim. Antes que eu possa reagir, minha visão escurece e tudo se apaga alguns segundos depois.
***
Acordo com uma dor de cabeça forte, em uma cama pequena, um quarto estranho, paredes de madeira, uma janela minúscula do lado esquerdo acima da cama e uma cômoda em frente; vejo duas portas, e uma delas pode ser a saída, tem que ser.
Levanto, cambaleando e meio tonta. Abro a primeira porta: é um banheiro simples com chuveiro. A porta seguinte abre para um corredor, com várias outras portas. Ouço vozes e sigo, devagar, segurando na parede para não tropeçar.
Paro em frente a uma sala ampla com sofás e uma tela grande na parede. Está cheia de pessoas que parecem apavoradas. Todos param de falar no momento em que apareço e olham para mim com os olhos arregalados.
Vejo quatro garotos sentados em um sofá, mais dois em pé do outro lado da sala. Cinco garotas estão sentadas no sofá maior e mais duas no outro.
— Acho que você é a única que faltava para se juntar a nós — diz uma garota morena, com o cabelo preto comprido e liso. A voz dela é irritante.
— Que lugar é esse? — Minha voz sai quase como um gemido; quanto tempo fiquei desmaiada?
— Nós ainda não sabemos, mas tenho certeza que fomos sequestrados — responde um rapaz musculoso, que está em pé do outro lado da sala, com os braços cruzados.
Parece que uma garota está chorando baixinho, encolhida no canto do sofá. Alguns estão de cabeça baixa, com o rosto nas mãos. Todos parecem um pouco perdidos.
— Há quanto tempo estamos... — começo a falar, mas a mesma garota, com a voz irritante, me interrompe:
— Escuta aqui garota, não sei se você percebeu, mas todos nós estamos perdidos aqui, sabemos tanto quanto você!
— Vamos manter a calma, não há nada que possamos fazer; estamos trancados, então vamos nos conhecer e tentar agir juntos, como uma equipe, descobrir como poderemos sair daqui e talvez... — O um cara começou a falar, com sua voz autoritária.
Paro de ouvir totalmente.
Também parei de respirar.
Estou total e completamente paralisada, com exceção de meu coração disparando loucamente dentro de mim. Porque bem ao meu lado, sentado no braço do sofá à minha esquerda, com os olhos verdes olhando diretamente para mim, está Harry. Houve vezes em que me vi sonhando acordada com o sorriso dele. E agora ele está bem aqui.
Eu o inventei. Pelo menos é isso que sempre disse a mim mesma. A mistura de todos os itens da lista de um homem perfeito. O problema é que eu estava errada. Porque agora mesmo Harry está sentado no sofá à minha esquerda, mexendo em seus dedos.
Meu Harry.
O Harry dos meus sonhos.
O Harry que não é real.
Você finalmente enlouqueceu. Ele realmente existe ou estou sonhando de novo?
Meus joelhos estão tremendo, minhas mãos estão suando, minha garganta está seca e meu coração está batendo freneticamente. Ele está aqui, do meu lado, olhando para mim.
— Ok, então! vamos logo com isso! — A garota chata quebra o silêncio, levando-me a afastar meus olhos dele.
Sinto meu rosto esquentar e ele evita olhar para mim novamente.
Tudo bem, então não é uma miragem, acho. Mas talvez um clone. Porque não é possível que o nome dele seja na verdade...
— Harry — ouço a voz rouca dele ao se apresentar para o grupo, que espera que ele fale mais do que apenas o seu primeiro nome. Ele fica olhando fixamente para baixo, para as mãos, como se elas precisassem urgentemente da sua atenção.
— Meu nome é Kyle, tenho 19 anos. Sou de Seattle, mas eu tinha acabado de chegar em Londres, eu acho, não lembro direito, não sei se fui atacado no metrô... apaguei e acordei em um quarto daqui... — Disse o cara musculoso, franzindo a testa em pensamentos.
E o resto do grupo foi se apresentando: sete homens e oito mulheres. O que está acontecendo? O que é isso? Por que eu?
— Hey — Uma voz profunda e suave interrompe meus pensamentos. Percebi que todos estão esperando que eu me apresente e Harry está olhando para mim, esperando minha resposta.
Limpo a garganta e digo:
— Meu nome é Grace... Grace Heinz... tenho 18 anos e... — Paro, tentando lembrar o que aconteceu, ainda sentindo o aperto daquele homem no meu braço e o modo como tentei resistir. Mas parece uma lembrança tão distante, como se minha memória estivesse dormindo ainda. As imagens estão embaçadas.
— Vamos explorar a casa e ver se há alguma saída — sugere John.
— Não há, já verifiquei. As janelas estão fechadas, não podemos ver o que há lá fora e além dos quartos, só há essa sala e a cozinha ali, e, câmeras em todo lugar. — Devon aponta para a cozinha que fica à nossa direita.
Ficamos em silêncio novamente, abalados e confusos com tudo isso. Ainda não entendo... por que eu? E o que querem de nós?
Alguns minutos depois, a tela na parede é ligada, nos assustando. Nela, aparece um homem mascarado com uma voz modificada, causando arrepios pelo meu corpo. Isso não é bom.
— Ora, ora, ora o que temos aqui? Ótimos soldados, eu espero.
Todos ficam espantados com o riso assustador dele e algumas garotas começam a chorar novamente...
— O que você quer de nós?!? — Kyle grita.
— Por que estamos aqui? — Cornélia choraminga. O mascarado levanta as mãos em sinal de rendição, e ri de novo.
— Acalme-se aí, mocinha! É o seguinte: preciso de pessoas qualificadas para fazer o que eu quero, então resolvi criar essa base de treinamento. E vocês foram os sortudos! Parabéns! Vocês foram escolhidos com base nas suas aptidões: temos vigiado cada um que está aqui hoje. Antes que perguntem, amanhã terão um instrutor para treiná-los com lutas e armas. Só saberão o motivo disso quando passarem em todos os testes e verei se vocês são capacitados ou não...
— E se não? — pergunta um cara que ainda não sei o nome.
— Se não, acho que vocês irão descobrir. E se não querem morrer, acho bom se esforçarem.
Há suspiros e soluços na sala.
Meus olhos ardem, mas me recuso a chorar.
ObserveiHarry. Ele ficou em silêncio o tempo todo, com sobrancelhas franzidas e mordendoos lábios. Percebi que euestava assim também, e suandode nervosismo. Já não basta ser sequestrada por um psicopata maníaco, tenho que estarao lado de Harry! — O que vamos fazer agora? — pergunta a garota ruiva. Acho que nome dela é Irma. — Não sei, acho que devemos tentar descansar... ele disse que amanhã de manhã vamos ser treinados, então... — Kyle responde. Todos concordam com a cabeça e se levantam para ir, mas não consigo sair do meu lugar, parece que estou congelada. Ajeito uma mecha do meu cabelo atrás da orelha enquanto tento organizar as ideias e lembrar que fui raptada e que provavelmente serei morta, mas... não consigo. Não seja esquisita, não seja esquisita, repito para mim mesma ao mover meus pés e parar na frente dele. Há milhares de possíveis frases passando pela minha cabeça. Harry vai
Quando estamos terminando de comer, ouvimos um clique na porta de entrada, que abre automaticamente. Então as grades, que fechavam as janelas e portas, sobem, trazendo a luz do sol, e vejo que estamos em uma casa de campo, só há árvores e montanhas à nossa volta, um lindo gramado na frente e, da janela da cozinha, vejo um campo que parece ser de treinamento, com vários equipamentos, e um ginásio ao lado. Sinto um nó no estômago. Nunca fui boa nesse tipo de coisas.Alguns levantam para olhar à nossa volta e quandoNatancorre para a porta, um homem alto, bonito e musculoso aparece, vestindo calçapreta e uma camiseta preta, os braços cruzados ao olhar para nós seriamente. —Bom dia, sou oWill, e serei o instrutor de vocês. —Podemos saber por quê? Por que seremos treinados? —indagaAlex. —Sinto muito, mas estou como vocês. Fui capturado e obrigado a seguir asordens deles, caso contr
Julho de 2018 Tive pesadelos durante anoite. Eu me vi sozinha, afogando-me em águas paradas e profundas. Via as árvores me olharem, seus galhos se curvando para a superfície trêmula. Sentia a água tremer como se estivesse viva e depois perdia de vista as árvores e os galhos, tragada no líquido que me aspirava, cada vez mais fundo. Meus braços se estendiam dolorosamente para aquela luz, para aquele céu inacessível, apesar de meus esforços para soltar os pés e subir à tona para respirar. Acordo exausta e, encharcada de suor e trêmula por causa do sonho, caminho até o banheiro para tomar um banho e me trocar. Quando saio, a porta domeuquarto está aberta e alguém escreveu a palavra “puritana” em vermelho na porta. Onde conseguiram a tinta? A cama e o travesseiro estão manchados com a mesma tinta. Olho ao redor, com o coração batendo forte de raiva. Devon aparece na por
Eles cobrem meus olhos com uma faixa grossa, e amarram minhas mãos por trás. Com isso, o medo instintivo de não saber onde colocarei os pés, me trava. Me esforço para andar normalmente, mas tropeço a cada dois passos e sou levantada pelos guardas, avançando sem querer. Ouço alguns cliques e então o barulho de uma porta pesada se abre. Dentro do ambiente está gelado: ar condicionado. Ouço barulhos de pessoas trabalhando, como um escritório: papéis, teclado, bips. Escuto uma voz que parece estar no comando. Ele fala com alguém e tenho certeza de que não está contente. Tenho a impressão de ouvi-lo dizer "desse jeito você vai acabar com eles". Depois, há gritos e ordens sendo dadas. Muito depressa, os guardas me levam para a sala designada. Desamarram minhas mãos e a venda é retirada depois que a cortina da sala da enfermaria se fecha. Uma enfermeira está na minha frente, me olhando com pesar e compaixão. Quero falar, interrogá-la, mas nada me vem à mente. Ela me
Começo a subir e, quando já estou a alguns metros do chão, ele me segue. Move-se mais rápido do que eu, e logo suas mãos seguram o galho onde meus pés acabaram de pisar. A altura está me deixando tonta, minhas mãos doem de segurar os galhos e minhas pernas estão tremendo, mas não sei bem o motivo. Não é a altura que me assusta. De repente, percebo o que está me deixando tonta. É ele. Algo nele faz com que me sinta prestes a despencar. Ou derreter. Ou arder em chamas. Minha mão quase erra o galho seguinte. Uma rajada de vento bate contra o lado esquerdo do meu corpo, jogando o meu peso para a direita. Perco o fôlego, desequilibrando-me. A mão de Harry segura o lado do meu quadril, me ajuda a me equilibrar e me empurra suavemente para a esquerda. Agora eu é que não consigo respirar. Fico parada, olhando para as minhas mãos, com a boca seca. Sinto a presença de sua mão que já não encosta mais em mim, de seus dedos longos e estreitos. — Você e
Descobri o mundo da insônia desde que cheguei nesse local. Em uma dessas noites, escutei uma conversa cochichada dos guardas, como se estivessem muito próximos da minha janela. Ouvi um deles dizer que por um triz não tínhamos conseguido fugir. Que se fôssemos mais espertos, teríamos visto o portão logo atrás das árvores, que permaneceu aberto por alguns minutos, por conta de uma falha elétrica. Eu vi o portão. Quando subi naquela árvore, pude ver o que está ao nosso redor. É uma selva densa, não vi nada além de árvores e montanhas, mas avistei o enorme portão escondido entre elas. Então a conversa mudou de rumo... parei de ouvir depois disso. Deito-me olhando para o teto, no escuro do meu quarto. Por fim, acabo fechando os olhos e começo a cochilar. *** — Que bom ver você po
Uma semana de treinamentos depois, ainda estou com dificuldades e Harry voltou a me ignorar, fazendo de conta que eu não existo. Ainda não sei como me sinto sobre isso. Também tentei não pensar muito em Derek e no fato de que ele tem me observado. Não contei a ninguém o que houve naquele dia na enfermaria. Às quatro da tarde, duas vezes por semana, antes do pôr do sol, os guardas mascarados e armados entram na casa para repor os alimentos. Depois, eles se dirigem até o portão para trocar de turno. Eu seguia seus gestos com extremo interesse, tentando encontrar a falha do sistema que nos permitisse escapar. Porém, não podíamos falar sobre a fuga, eles iriam ouvir; então, aprendemos a nos comunicar com gestos e olhares. A fuga estava finalmente sendo planejada. *** Um
— Sobre a Companhia... É uma organização do governo? — Harry pergunta, desviando a atenção de Jason sobre mim. Ele parecia calmo, sentado no sofá, suas mãos descansavam em cima dos joelhos, mas seu corpo estava tenso. E, quando ele ajustou a sua posição, notei que a camiseta estava presa nas costas, dando acesso rápido e fácil à arma colocada ali. Nenhum de nós pode usar as armas quando não estamos em treinamento, ou sem a autorização de Will, e como ele tem uma? — Não, está além do governo. Mas eles são em grande parte financiados pelo governo, e existe um acordo mútuo entre eles. O governo deixa a Companhia fazer o que bem entender e, o que quer que desenvolvam, eles terão acesso a isso em primeira mão. — Jason responde. Isso me deixa enojada. Um peso cai sobre meu estômago. — Mas se o plano inicial deles era uma guerra invencível, e eles mudaram de ideia... o que eles querem, afinal? — Natan pergunta. — Eles querem vendê-los como uma