O Mandacaru
O Mandacaru
Por: Lucas Serafim
I

Uma vez irritada tudo a irrita mais, inclusive o som oco do mandacaru batendo em sua janela. Não era a primeira vez a acontecer, dia e noite o mandacaru ia com força contra o vidro quando lhe tocava o vento. Embora grande fosse a tentação de cortar alguns gomos, Fabíola sempre tinha pena; estavam tão belas as flores vermelhas cujos botões abriam todas as noites. Naquela tarde nublada, tanto nervosismo, ansiedade, tristeza vinham em bruma translúcida pelos olhos e escorriam salobras pela face de Fabíola — cegavam não apenas à visão. Fabíola largou a calculadora ao chão, pegou uma tesoura de costura e abriu a janela. Extravasou tudo a lhe ocorrer no pobre mandacaru, mas a planta era tão forte que a perda fora imperceptível.

    Fabíola largou a tesoura, deixando-a cair ao lado do tronco do mandacaru, fincando sua ponta afiada na terra.

    A que nível chegara sua situação, normalmente ficava alegre ao ler as redações das crianças, as cartinhas e desenhos cheios de carinho “te amo, professora”, “te adoro”, “quero ser como você quando crescer.” Ver toda sua trajetória ruir sem poder fazer nada, a irritava.

    Sentou-se na beirada da cama, ainda abalada, tremendo todo o corpo. Pegou a calculadora, as cartas de cobrança e os boletos recém emitidos, sentou à escrivaninha e iniciou a ação de calcular minuciosamente; conta de água, conta de luz, financiamento de imóvel, a faculdade e o mundo de dívidas carentes de pagamento e os juros correndo! Teria que arranjar um bico, não tinha jeito. Teria de conversar com a mãe, e os juros correndo, não conseguiria convencê-la, estava ciente disso porque não seria a primeira vez, e os juros correndo.

    O mandacaru tornou a bater na janela com mais força ainda, a chuva ficara mais forte.

    — Fala sério, que saco! — protestou. O celular vibrou no instante que levantaria para tentar controlar a planta, ela o desbloqueou; era uma mensagem de Carla:

    Vai pra aula hj? Perguntava com um ponto de interrogação vermelho. Fabíola olhou para a escrivaninha, viu as contas e respirou fundo. Já estava feito, ainda bem, pois se não tivesse feito ela teria voltado atrás naquele momento. Deu uma última olhada na foto de perfil da amiga de faculdade e bloqueou a tela, sem se dar ao trabalho de responder.

    Depois de feito os cálculos, Fabíola ficou horrorizada, era mais do que seu salário podia pagar. Ela largou tudo que tinha nas mãos, aquela bruma colada à visão, queria se debulhar outra vez, chovia bem forte e como o telhado era de fibrocimento, o barulho camuflaria o som do choro.

    — Fabí — ouviu lhe chamar. Era seu irmão mais novo.

    — André — ele estava ao abrigo do batente —, já falei pra bater na porta.

    — Mas a porta tava aberta — a testa dele estava franzida e os lábios num arco para baixo, Fabíola não gostou daquilo.

    — O que aconteceu?

    — Ela tá louca de novo!

    Fabíola sabia bem do que se tratava. Ela levantou num pulo e correu para baixo, chegou à sala e viu os porta retratos e os enfeites do hack revirados, uma voz vociferava na cozinha. Fabíola foi até lá, sua mãe orava fervorosamente:

    — Oh, meu senhor, afasta toda a potestade e queima! — Ela batia com força nos móveis da casa, como se a intenção fosse quebrá-los.

    — Mãe, o que você tá fazendo?! — Fabíola se aproximou e levou um tapa no peito.

    — Falei mil vezes pra não atrapalhar minha oração, vagabunda.

    Fabíola acariciou o peito, tinha doido:

    — Acontece que você tá destruindo a casa, mãe — ela pronunciou o vocativo como se tivesse aversão a palavra.

    — Quebrando? Eu tô abençoando — a mãe falava num tom cantado, ela parecia orgulhosa —, o pastor disse ontem, na vigília, que o inimigo está tentando acabar com a minha vida. Daí ele ungiu minha mão e disse pra eu ir orando e batendo em tudo com a minha mão abençoada, que é pro inimigo cair por terra!

    Fabíola escondeu os olhos atrás da mão, quanto mais a mãe explicava, mais envergonhada ela ficava. No meio do falatório da mãe, Fabíola percebeu:

    — Vigília? Ontem? Mãe, vigília não é quando você vira a noite na igreja? — A mãe concordou — mãe, ontem eu cheguei do trabalho às uma da manhã. Que horas você foi pra isso?

    — Eu saí era dez horas, cheguei quase agora.

    Fabíola arregalou os olhos:

    — E quem ficou com o André?

    — Eu deixei ele aí.

    — E quem deu janta pra ele?

    — Eu falei pra ele comer o que tinha aí.

    — Mãe, você fez comida ontem? Porque eu não fiz.

    O sorriso orgulhoso da mãe caiu por terra mais rápido que o suposto inimigo. Ambas olharam para o pequeno André que não queria que brigassem por causa dele, outra vez, e ficou quieto, porém, assim que os olhos delas caíram sobre ele, sua barriga roncou audível para todos.

    — Você é louca, qual é o seu problema? — Fabíola gritou e correu até os ganchos atrás da porta, os quais seguravam sua jaqueta impermeável.

    — Eu não sabia, sem falar que eu chamei ele pra ir comigo.

    — O André tem oito anos, mãe, você não deveria nem ter deixado ele sozinho, pra começo de conversa.

    — Ele já tem dez anos!

    — Na verdade eu tenho nove — André sussurrou numa altura que só ele ouviu.

    — Onde você vai? — quis saber a mãe, ao ver Fabíola vestir a jaqueta.

    — Eu tô saindo pra comprar pão, pro André tomar um café reforçado, já que você deixou ele com fome a noite toda.

Deitada de barriga para cima pensava numa forma de levantar dinheiro. A situação estava séria, quando Ele vier cobrar a prestação do financiamento do imóvel, pensava, vou ter que usar o cartão, eu não queria, mas é o jeito. Olhou para sua prateleira, ao acaso, perfeito. Ela começou a tirar todos os livros didáticos do lugar, os agrupou no chão. Depois de separados, ela correu até o corredor. O primeiro andar da casa era organizado da seguinte forma: perto da escada o primeiro quarto era de André, do lado vinha o banheiro, depois o quarto desocupado, onde guardavam as tralhas que não usavam, em penúltimo vinha o quarto de Fabíola, o último era da mãe. No quarto desocupado encontrou um carrinho de feira, era o que precisava.

Com os livros no carrinho, ela começou a puxá-lo pelo até a escada, onde teve dificuldade de descer os degraus com o peso do papel, aproveitou que o quarto do irmão mais novo ficava antes da escada e pediu ajuda. André a auxiliou.

— Comeu o pão que eu comprei?

— Comi sim — falou virado para Fabíola, enquanto descia a escada de costas, pois segurava o carrinho numa ponta. Quando terminaram, Fabíola chegou perto dele, estendeu a mão e acariciou a cabeça de André, com todo o carinho do mundo.

— Por que não me falou que estava com fome?

— Você tava ocupada.

— Eu tô falando de ontem à noite, André. Por quê?

— Eu tava dormindo.

— André, eu sei que você demora pra pegar no sono.

André se livrou do carinho de Fabíola para se defender:

— É sério! Ontem eu peguei no sono cedo, eu até tive um daqueles sonhos que não dá pra acordar.

Fabíola achou estranho:

— E o que seria isso?

— É quando você quer acordar e não consegue se mexer.

— Ah, sim, isso é bizarro — a conversa foi interrompida pelo barulho alto que vinha do quarto de Fabíola, ela e André, assustados, foram averiguar. Era a janela, o mandacaru tinha quebrado um pedaço do vidro. — Só pode ser brincadeira! Esse jamacaru tem quinze anos, há pelo menos dez anos ele bate nessa janela e ela nunca quebrou. Fazer isso logo agora é sacanagem.

    Na cozinha a mãe usava o celular. Gargalhava histericamente.

    — Mãe — chamou Fabíola —, ainda não fez o café? Daqui a pouco eu vou trabalhar.

    A mãe levantou da mesa:

    — Se está incomodada, venha você preparar o café.

    Sem dar uma resposta, Fabíola começou pegando um bule.

    — A propósito — lembrou a mãe —, antes de sair para o trabalho preciso que me envie o dinheiro que eu te pedi.

    — Mas eu já paguei a conta de luz.

    — Eu não tô falando de conta de luz, garota — respondeu a mãe, rispidamente — tô falando da dívida com a Vanir.

    Fabíola quase deixou o bule cair no chão, porém, conseguiu se recompor, acender a chama do fogão e indagar:

    — Dívida? Que dívida? Quem é Vanir?

    — É a dona daquela barraquinha de tênis na feira, tive que comprar tênis novos pro seu irmão.

    — Mãe, eu já te disse pra parar de comprar coisas fiadas! Já disse que quando eu tiver dinheiro eu compro.

    — Não é culpa minha se a vaca da diretora do colégio não deixa o menino entrar de chinelo! Eu tive que comprar tênis pra ele estudar.

    André estava à mesa, calado.

    — Então, por que não pediu dinheiro pro meu pai?

A mãe bateu na mesa para intimidar; Fabíola tinha tocado no assunto proibido.

— Eu já falei mil vezes que não vou pedir nada praquele homem. Fim.

— Fim nada. Eu já tava querendo conversar sobre isso com a senhora. Mãe: passou da hora de cobrar a pensão que ele deve. Processo nele, se ele se recusar.

— Polícia. Você quer que eu vá na polícia pro seu próprio pai?!

— Mãe, eu não vou conseguir sustentar a gente e pagar aquela dívida, eu posso até deixar alguns boletos atrasarem, mais do que já estão atrasados, mas aquela dívida não tem jeito.

A mãe encarou Fabíola de canto de rosto:

— Que dívida?

— O “financiamento do imóvel.”

— Que financiamento, ficou louca?

— Eu tô falando do dinheiro que você pegou pra comprar a casa quando meu pai foi embora. Você sabe que a gente não pode deixar passar essa, Ele vem cobrar pessoalmente… Joga logo o meu pai na justiça!

    — Ele é seu pai, o que seu irmão vai pensar se ele for preso?

A mãe ficava irritadíssima com esse assunto, todas as vezes, mas, naquele momento, a conversa tinha tomado um rumo inesperado:

    — E por que meu pai seria preso?

    A água começou a ferver no bule sobre o fogo.

— Seu pai é um homem difícil de lidar — a mãe começou a suar e tremer —, eu coloco o nome dele nas mãos de Deus.

Fabíola contraiu os lábios:

— Tá, você vai orar por ele, mas, e se, você for conversar com ele?

A mãe ficou quieta. Fabíola se virou para fazer o bule parar de apitar, entretanto, não o tocou; a conversa não podia acabar assim:

— Por que meu pai seria preso?

    — Sua… Você sabe que ele nunca pagaria pensão — a mãe desviou do assunto.

    — Tá, ele nunca vai pagar pensão, daí sou eu que tenho que abrir mão da minha vida e bem estar para sustentar você e meu irmão?!

    Raivosa, a mãe jogou o celular na mesa, a tela do aparelho rachou e o impacto fez um barulho tão alto quanto o bule. André começou a chorar.

    — Você acha que me sustenta, sua vaca?

    — A única que sai pra trabalhar aqui sou eu. Enquanto você fica de pernas pro alto em casa, dando a merda do meu dinheiro pra sua igrejinha de garagem!

    Com um movimento rápido, Fabíola foi estapeada pela mãe.

    — Termina esse café logo, tá gastando meu gás. E quando for trabalhar, aproveita a viagem e leva seu irmão pra escola — e saiu ofegante.

    Fabíola estava agachada, com a mão na bochecha que fora estapeada, enquanto sussurrava:

— Só que fui eu que comprei o botijão.

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