Uma vez irritada tudo a irrita mais, inclusive o som oco do mandacaru batendo em sua janela. Não era a primeira vez a acontecer, dia e noite o mandacaru ia com força contra o vidro quando lhe tocava o vento. Embora grande fosse a tentação de cortar alguns gomos, Fabíola sempre tinha pena; estavam tão belas as flores vermelhas cujos botões abriam todas as noites. Naquela tarde nublada, tanto nervosismo, ansiedade, tristeza vinham em bruma translúcida pelos olhos e escorriam salobras pela face de Fabíola — cegavam não apenas à visão. Fabíola largou a calculadora ao chão, pegou uma tesoura de costura e abriu a janela. Extravasou tudo a lhe ocorrer no pobre mandacaru, mas a planta era tão forte que a perda fora imperceptível.
Fabíola largou a tesoura, deixando-a cair ao lado do tronco do mandacaru, fincando sua ponta afiada na terra.
A que nível chegara sua situação, normalmente ficava alegre ao ler as redações das crianças, as cartinhas e desenhos cheios de carinho “te amo, professora”, “te adoro”, “quero ser como você quando crescer.” Ver toda sua trajetória ruir sem poder fazer nada, a irritava.
Sentou-se na beirada da cama, ainda abalada, tremendo todo o corpo. Pegou a calculadora, as cartas de cobrança e os boletos recém emitidos, sentou à escrivaninha e iniciou a ação de calcular minuciosamente; conta de água, conta de luz, financiamento de imóvel, a faculdade e o mundo de dívidas carentes de pagamento e os juros correndo! Teria que arranjar um bico, não tinha jeito. Teria de conversar com a mãe, e os juros correndo, não conseguiria convencê-la, estava ciente disso porque não seria a primeira vez, e os juros correndo.
O mandacaru tornou a bater na janela com mais força ainda, a chuva ficara mais forte.
— Fala sério, que saco! — protestou. O celular vibrou no instante que levantaria para tentar controlar a planta, ela o desbloqueou; era uma mensagem de Carla:
Vai pra aula hj? Perguntava com um ponto de interrogação vermelho. Fabíola olhou para a escrivaninha, viu as contas e respirou fundo. Já estava feito, ainda bem, pois se não tivesse feito ela teria voltado atrás naquele momento. Deu uma última olhada na foto de perfil da amiga de faculdade e bloqueou a tela, sem se dar ao trabalho de responder.
Depois de feito os cálculos, Fabíola ficou horrorizada, era mais do que seu salário podia pagar. Ela largou tudo que tinha nas mãos, aquela bruma colada à visão, queria se debulhar outra vez, chovia bem forte e como o telhado era de fibrocimento, o barulho camuflaria o som do choro.
— Fabí — ouviu lhe chamar. Era seu irmão mais novo.
— André — ele estava ao abrigo do batente —, já falei pra bater na porta.
— Mas a porta tava aberta — a testa dele estava franzida e os lábios num arco para baixo, Fabíola não gostou daquilo.
— O que aconteceu?
— Ela tá louca de novo!
Fabíola sabia bem do que se tratava. Ela levantou num pulo e correu para baixo, chegou à sala e viu os porta retratos e os enfeites do hack revirados, uma voz vociferava na cozinha. Fabíola foi até lá, sua mãe orava fervorosamente:
— Oh, meu senhor, afasta toda a potestade e queima! — Ela batia com força nos móveis da casa, como se a intenção fosse quebrá-los.
— Mãe, o que você tá fazendo?! — Fabíola se aproximou e levou um tapa no peito.
— Falei mil vezes pra não atrapalhar minha oração, vagabunda.
Fabíola acariciou o peito, tinha doido:
— Acontece que você tá destruindo a casa, mãe — ela pronunciou o vocativo como se tivesse aversão a palavra.
— Quebrando? Eu tô abençoando — a mãe falava num tom cantado, ela parecia orgulhosa —, o pastor disse ontem, na vigília, que o inimigo está tentando acabar com a minha vida. Daí ele ungiu minha mão e disse pra eu ir orando e batendo em tudo com a minha mão abençoada, que é pro inimigo cair por terra!
Fabíola escondeu os olhos atrás da mão, quanto mais a mãe explicava, mais envergonhada ela ficava. No meio do falatório da mãe, Fabíola percebeu:
— Vigília? Ontem? Mãe, vigília não é quando você vira a noite na igreja? — A mãe concordou — mãe, ontem eu cheguei do trabalho às uma da manhã. Que horas você foi pra isso?
— Eu saí era dez horas, cheguei quase agora.
Fabíola arregalou os olhos:
— E quem ficou com o André?
— Eu deixei ele aí.
— E quem deu janta pra ele?
— Eu falei pra ele comer o que tinha aí.
— Mãe, você fez comida ontem? Porque eu não fiz.
O sorriso orgulhoso da mãe caiu por terra mais rápido que o suposto inimigo. Ambas olharam para o pequeno André que não queria que brigassem por causa dele, outra vez, e ficou quieto, porém, assim que os olhos delas caíram sobre ele, sua barriga roncou audível para todos.
— Você é louca, qual é o seu problema? — Fabíola gritou e correu até os ganchos atrás da porta, os quais seguravam sua jaqueta impermeável.
— Eu não sabia, sem falar que eu chamei ele pra ir comigo.
— O André tem oito anos, mãe, você não deveria nem ter deixado ele sozinho, pra começo de conversa.
— Ele já tem dez anos!
— Na verdade eu tenho nove — André sussurrou numa altura que só ele ouviu.
— Onde você vai? — quis saber a mãe, ao ver Fabíola vestir a jaqueta.
— Eu tô saindo pra comprar pão, pro André tomar um café reforçado, já que você deixou ele com fome a noite toda.
Deitada de barriga para cima pensava numa forma de levantar dinheiro. A situação estava séria, quando Ele vier cobrar a prestação do financiamento do imóvel, pensava, vou ter que usar o cartão, eu não queria, mas é o jeito. Olhou para sua prateleira, ao acaso, perfeito. Ela começou a tirar todos os livros didáticos do lugar, os agrupou no chão. Depois de separados, ela correu até o corredor. O primeiro andar da casa era organizado da seguinte forma: perto da escada o primeiro quarto era de André, do lado vinha o banheiro, depois o quarto desocupado, onde guardavam as tralhas que não usavam, em penúltimo vinha o quarto de Fabíola, o último era da mãe. No quarto desocupado encontrou um carrinho de feira, era o que precisava.
Com os livros no carrinho, ela começou a puxá-lo pelo até a escada, onde teve dificuldade de descer os degraus com o peso do papel, aproveitou que o quarto do irmão mais novo ficava antes da escada e pediu ajuda. André a auxiliou.
— Comeu o pão que eu comprei?
— Comi sim — falou virado para Fabíola, enquanto descia a escada de costas, pois segurava o carrinho numa ponta. Quando terminaram, Fabíola chegou perto dele, estendeu a mão e acariciou a cabeça de André, com todo o carinho do mundo.
— Por que não me falou que estava com fome?
— Você tava ocupada.
— Eu tô falando de ontem à noite, André. Por quê?
— Eu tava dormindo.
— André, eu sei que você demora pra pegar no sono.André se livrou do carinho de Fabíola para se defender:
— É sério! Ontem eu peguei no sono cedo, eu até tive um daqueles sonhos que não dá pra acordar.
Fabíola achou estranho:
— E o que seria isso?
— É quando você quer acordar e não consegue se mexer.
— Ah, sim, isso é bizarro — a conversa foi interrompida pelo barulho alto que vinha do quarto de Fabíola, ela e André, assustados, foram averiguar. Era a janela, o mandacaru tinha quebrado um pedaço do vidro. — Só pode ser brincadeira! Esse jamacaru tem quinze anos, há pelo menos dez anos ele bate nessa janela e ela nunca quebrou. Fazer isso logo agora é sacanagem.
Na cozinha a mãe usava o celular. Gargalhava histericamente.
— Mãe — chamou Fabíola —, ainda não fez o café? Daqui a pouco eu vou trabalhar.
A mãe levantou da mesa:
— Se está incomodada, venha você preparar o café.
Sem dar uma resposta, Fabíola começou pegando um bule.
— A propósito — lembrou a mãe —, antes de sair para o trabalho preciso que me envie o dinheiro que eu te pedi.
— Mas eu já paguei a conta de luz.
— Eu não tô falando de conta de luz, garota — respondeu a mãe, rispidamente — tô falando da dívida com a Vanir.
Fabíola quase deixou o bule cair no chão, porém, conseguiu se recompor, acender a chama do fogão e indagar:
— Dívida? Que dívida? Quem é Vanir?
— É a dona daquela barraquinha de tênis na feira, tive que comprar tênis novos pro seu irmão.
— Mãe, eu já te disse pra parar de comprar coisas fiadas! Já disse que quando eu tiver dinheiro eu compro.
— Não é culpa minha se a vaca da diretora do colégio não deixa o menino entrar de chinelo! Eu tive que comprar tênis pra ele estudar.
André estava à mesa, calado.
— Então, por que não pediu dinheiro pro meu pai?
A mãe bateu na mesa para intimidar; Fabíola tinha tocado no assunto proibido.
— Eu já falei mil vezes que não vou pedir nada praquele homem. Fim.
— Fim nada. Eu já tava querendo conversar sobre isso com a senhora. Mãe: passou da hora de cobrar a pensão que ele deve. Processo nele, se ele se recusar.
— Polícia. Você quer que eu vá na polícia pro seu próprio pai?!
— Mãe, eu não vou conseguir sustentar a gente e pagar aquela dívida, eu posso até deixar alguns boletos atrasarem, mais do que já estão atrasados, mas aquela dívida não tem jeito.
A mãe encarou Fabíola de canto de rosto:
— Que dívida?
— O “financiamento do imóvel.”
— Que financiamento, ficou louca?
— Eu tô falando do dinheiro que você pegou pra comprar a casa quando meu pai foi embora. Você sabe que a gente não pode deixar passar essa, Ele vem cobrar pessoalmente… Joga logo o meu pai na justiça!
— Ele é seu pai, o que seu irmão vai pensar se ele for preso?
A mãe ficava irritadíssima com esse assunto, todas as vezes, mas, naquele momento, a conversa tinha tomado um rumo inesperado:
— E por que meu pai seria preso?
A água começou a ferver no bule sobre o fogo.
— Seu pai é um homem difícil de lidar — a mãe começou a suar e tremer —, eu coloco o nome dele nas mãos de Deus.
Fabíola contraiu os lábios:
— Tá, você vai orar por ele, mas, e se, você for conversar com ele?
A mãe ficou quieta. Fabíola se virou para fazer o bule parar de apitar, entretanto, não o tocou; a conversa não podia acabar assim:
— Por que meu pai seria preso?
— Sua… Você sabe que ele nunca pagaria pensão — a mãe desviou do assunto.
— Tá, ele nunca vai pagar pensão, daí sou eu que tenho que abrir mão da minha vida e bem estar para sustentar você e meu irmão?!
Raivosa, a mãe jogou o celular na mesa, a tela do aparelho rachou e o impacto fez um barulho tão alto quanto o bule. André começou a chorar.
— Você acha que me sustenta, sua vaca?
— A única que sai pra trabalhar aqui sou eu. Enquanto você fica de pernas pro alto em casa, dando a merda do meu dinheiro pra sua igrejinha de garagem!
Com um movimento rápido, Fabíola foi estapeada pela mãe.
— Termina esse café logo, tá gastando meu gás. E quando for trabalhar, aproveita a viagem e leva seu irmão pra escola — e saiu ofegante.
Fabíola estava agachada, com a mão na bochecha que fora estapeada, enquanto sussurrava:
— Só que fui eu que comprei o botijão.
Às onze da noite Fabíola chegou em casa, chegara mais cedo, pois não tinha feito hora extra, queria aproveitar a casa sozinha — a mãe ia à igreja naquela noite. Teria chegado ainda mais cedo, não fossem as chuvas de verão; São Paulo inteira estava debaixo d’água e o bairro onde moravam possuía um esgoto à céu aberto que sempre alagava. Como se não bastasse o trânsito nas avenidas, Fabíola teve de dar a volta, pela entrada de outro bairro, para chegar em casa. E foi surpreendida com a presença da mãe. Deixou escapar o ar certamente protestante, afinal, tinha planos, mais precisamente o plano de chegar e ir direto ao quarto sem precisar olhar para a velha senhora sentada no sofá de frente para a televisão. — Chegou cedo, não deveria estar na faculdade? — a mãe questionou. &n
Fabíola entrou na sala de aula, sentou à carteira e estava felicíssima, finalmente retornou aos estudos. Pegou seu caderno e abriu na matéria favorita, Políticas Públicas da Educação, ela adorava estudar as leis acerca de sua área de atuação e debatê-las com a amiga Carla, elas eram boas naquela matéria e passavam quase todo o tempo livre debruçadas em casos nos quais as leis não foram colocadas em prática, debruçadas nas falhas do Estado, no sucateamento da escola pública. Vale dizer, as duas foram as primeiras a se revoltar com o congelamento da entrada de grande parte de dinheiro público na educação, após a aprovação da PEC do Teto de Gastos, ao ponto de tentar organizar um protesto. O Movimento Estudantil se mobilizou, as duas foram à luta com seu grupo comunista, inspiradas pelos seus ideais e sonhos. Infelizmente, não houve luta comunista ou ataque anarquista que impedisse a aprovação
Maria estava estranha, pelo menos para Fabíola. Assim que entraram em casa, Maria se dispôs a fazer as compressas para os meninos, colocou o celular para tocar na hora de dar os remédios e cantarolava seus “louvores” — por motivos desconhecidos, era quase um pecado capital chamar música gospel de música, Fabíola odiava esse fato tanto quanto odiava música gospel louvores. Todo aquele “lá, lá, lá” proferido pela mãe assustava, de certa forma, apesar de deixar Fabíola confortável. Talvez, a descoberta de que os furúnculos causavam dor em Caíque tivesse amolecido o coração da velha.— Minha filha — ela chamou —, você pode dar uma olhada no quintal? V
Com o peso de Fabíola acima do tronco, Beto arquejava, mas de forma alguma era ruim. O peso era delicado, cheirava a rosas e o esquentava. Fabíola brincava passando o queixo nos pelos do peito de Beto, fazia tempo que não o tinha daquele jeito. Mas estava na hora dele ir.— Esse cacto ficou o tempo todo batendo na janela, isso não te irrita? — perguntou Beto, levantando da cama.Fabíola deitou de costas, o corpo nu exposto sem pudores, olhou para a janela:— Pra ser bem sincera, nunca foi assim. Acho que ele bate desse jeito por causa do vento das chuvas. Aliás, é um jamacaru.— Talvez a água tenha o inchado, o peso deve fazê-lo ba
Por quinze minutos Fabíola esteve imovel, ajoelhada ao chão. As pálpebras estavam abertas, mas nada os olhos enxergavam. A cabeça em nada pensava; por quinze minutos ela não existiu.O primeiro objeto que viu quando retornou à realidade, foi a cadeira diminuída a lixo. Entretanto, ela não pensou sobre aquilo e automática foi ao quarto, na gaveta da mesa de cabeceira, pegou um maço com dezenove cigarros que ela não via a cor há quatro meses.Na cozinha escura por preservar apagada a lâmpada, ligou a chama do fogão e acendeu um cigarro. Foi difícil para os lábios agarrar a bituca com a tremedeira incessante das mãos. Ela sentiu uma brisa e se arrepiou, percebeu, então, que não vestira uma camiseta, estava
Três vezes ligou e o telefone apenas chamou, na quarta, por qualquer motivo, provavelmente por intuição, sentiu que o pai tinha encerrado a ligação sem nem atender. Ele trabalhava cedo, já estava acordado às cinco. O tempo estava correndo, ela precisava ser rápida! Iria ao próximo, ligou para Roberto. Era um tanto vergonhoso ter que pedir dinheiro um dia após uma transa, realizada depois de uma semana dando vácuo no pobre Beto.— Fabíola, me ligou cedo — a voz dele estava sonolenta, óbvio, era domingo.— Desculpa ter te ligado assim. Tá tudo bem contigo? Hum, que bom… ouça, Beto: eu sei como isso é chato e eu estou morrendo de vergonha, mas, assim, será que você não teria, assim,
Apesar da amizade forte, Carla visitou Fabíola uma única vez, há dois anos e não era de fato uma visita, de fato não era aquela coisa de almoço de fim de semana ou de visita pelo simples prazer de ter a amiga por perto; era só uma passada para fazer um trabalho. Gostavam mesmo de se ver em festas, baladas, bares, Carla era uma grande entusiasta da bebedeira iniciada na torre de chopp e finalizada no tilintar do gelo no fundo do copo plastico de caipirinha, sempre de morango e bem docinha, obrigada, passar bem! A primeira visita pelo prazer da conversa acompanhada de uma sacola com quatro latinhas, era como a manutenção de uma tradição.— Adoro duplo malte — Fabíola confessou após o primeiro gole.— Dois mil reais, no mí
Devia seis mil e cem reais, não só isso, a dívida era maior, aquele valor era só o exigido no momento. Tinha dois mil no cartão e agora receberia mil de Carla, ficariam faltando apenas três mil e cem para completar o valor exigido para não virar puta.— Amiga, foi bom te ver — Carla se espreguiçava, levantou do sofá —, mas eu já tenho que ir.— Tão rápido assim?— É, eu entrei num projeto de iniciação científica e tô fazendo um estágio, então, já viu, né? Tô atarefadíssima.Fabíola a acompanhou até a saída.