Às onze da noite Fabíola chegou em casa, chegara mais cedo, pois não tinha feito hora extra, queria aproveitar a casa sozinha — a mãe ia à igreja naquela noite. Teria chegado ainda mais cedo, não fossem as chuvas de verão; São Paulo inteira estava debaixo d’água e o bairro onde moravam possuía um esgoto à céu aberto que sempre alagava. Como se não bastasse o trânsito nas avenidas, Fabíola teve de dar a volta, pela entrada de outro bairro, para chegar em casa. E foi surpreendida com a presença da mãe. Deixou escapar o ar certamente protestante, afinal, tinha planos, mais precisamente o plano de chegar e ir direto ao quarto sem precisar olhar para a velha senhora sentada no sofá de frente para a televisão.
— Chegou cedo, não deveria estar na faculdade? — a mãe questionou.
— Não vou responder, você sabe muito bem a resposta — deixou a mãe lá e foi à cozinha procurar comida na geladeira. — Você não cozinhou hoje?
— Eu estava ocupada, tive que ajudar a arrumar a igreja para a festividade amanhã.
Apoiada na última prateleira da geladeira, agachada, Fabíola tentou segurar a irritação:
— E meu irmão comeu o que quando chegou em casa?
— Dei pão aos dois.
Fabíola queria morrer. Quer dizer que estava investindo o último pedaço de seu salário nas compras do mês e aquela velha não tinha nem a decência de preparar o arroz? Fabíola escorou-se no mármore da pia, enfim percebeu:
— Dois? — gritou e foi até a mãe. — O que você quis dizer com dois?
— Para de se fazer, menina.
— Não estou me fazendo, como assim dois? Eu tenho um irmão perdido!?
A mãe gargalhou jogando a cabeça para trás, depois perguntou se Fabíola tinha lido sua mensagem.
— Não, mãe, eu fiquei o dia todo sem mexer em nenhuma rede social. Não queria ter de explicar pro pessoal porque não fui à faculdade hoje.
— Então, poupe meu tempo. Leia.
Fabíola pegou o celular com a bateria praticamente cheia, leu a mensagem:
“Filha, lembra daquela minha irmã da igreja, a Marta? Que morava na beirada do córrego num barracão de madeira? Então, com essas chuvas de verão tá dando enchente quase todo o dia e o filhinho dela, Caique, tá muito doentinho, eu vi ele ontem, tá extremamente magro. Então, filha, ela me pediu pra ficar com ele um tempinho, tadinho, eles estão sem dinheiro e estão procurando outro lugar pra ficar.”
De uma hora para outra, a irritabilidade de Fabíola se foi.
— Caramba, mãe, por que você não me ligou?
— Tá com raiva?
— Como eu posso ficar com raiva disso? — Fabíola sentou ao lado da mãe. — O que sua amiga vai fazer agora?
— Ela é catadora e o marido pedreiro. Ela vai dormir na cozinha do ferro-velho, agora ele; não faço ideia.
— Mas e o barracão?
— Provavelmente eles e a galera do córrego vão procurar outro lugar pra invadir. Eles estão em situação de rua.
— Eles não podem arrumar um emprego melhor?
A mãe riu:
— Eles são analfabetos, filha, só têm até a terceira série.
Neste instante, um garotinho, de aparentemente uns oito anos, apareceu atrás do sofá, no último degrau da escada. Ele estava molhado e envolto numa toalha, marcavam a pele seus ossos do ombro, costelas e braços. Seus olhinhos tinham olheiras profundas, não por cansaço — isso era coisa de adulto —, sim por desnutrição. Por todo o corpo, num adorno cruel à fome, Caíque tinha grandes inflamações, pareciam espinhas gigantes; estavam na barriga, nos braços, nas pernas e costas, estavam também no pescoço, nas axilas e pés.
— Dona Maria, já tomei banho — ele avisou.
— Caíque — a mãe estava incomodada —, você precisa se enxugar antes de sair do banheiro, molhou o chão todo.
Fabíola levantou, avisou à mãe que ela mesma o ajudaria.
— Tem uma mochilinha dele no seu quarto — gritou a mãe, enquanto subiam.
Fabíola se apresentava. Ela estava chocada: Caíque tinha o rosto terrivelmente marcado, seu queixo era um V pontudo e as suas bochechas, pela fome, contraiam-se para dentro de forma que suas orelhas inclinavam-se para frente.
— Ei, Caíque. Onde você morava? E com quem?
— Eu morava com minha mãe e meu pai, lá no esgoto.
Fabíola desceu ao nível dele, pousou as mãos nos ombros dele e o olhou nos olhos:
— Não fale assim, Caíque. Falar desse jeito é ruim: diga sempre que morava numa casa. Okay? — Ela fez um carinho na cabeça dele e lhe beijou a testa. — E o que você mais gosta de fazer?
Ela não continuou à caminho do quarto, ficou ali olhando-o nos olhos e prosseguindo com a investigação que tinha aprendido.
— Eu gosto de empinar pipa — agora ele parecia mais espontâneo, estavam chegando lá.
— Mentira! Meu irmão também gosta bastante, o André. Você brincou com ele?
— Sim, mas ele já dormiu.
Fabíola aproximou o rosto, como se fosse contar um segredo para Caíque:
— Ele é preguiçoso, gosta de fingir que tá dormindo pra não fazer nada, embora ontem, segundo ele, tenha dormido cedo… — Caíque riu, Fabíola gostou, estava indo bem, graças a Deus, pois no estágio ela nunca fora tão boa nisso. — Você comeu hoje, Caíque?
— Eu comi na escola e comi dois pães aqui que a tia deu!
— Nossa, dois pães, que menino comilão.
A barriga de Caíque roncou alto.
— Dois pães não foram o suficiente, né? — Fabíola sentiu um aperto no coração.
— Na verdade ainda tô com fome.
Fabíola riu:
— Eu vou fazer um arroz com carne pra gente, antes de dormir. Que tal?
Caíque concordou com um sorriso.
Fabíola pegou na mão dele e o guiou até seu quarto, abriu a porta e sentiu a brisa fria da chuva entrando pelo buraco no vidro. Fabíola soltou a mão de Caíque e se abraçou, batendo os dentes. O mandacaru acertava a janela com mais força que o normal.
— Eu só me lasco — murmurou Fabíola — e agora pra dormir no frio e com barulho? Vem, Caíque.
Mas Caíque não foi, ele ficou parado na frente da porta, do lado de fora. Ele estava pálido, os olhos cerrados e a respiração tensa. Ele encarava o mandacaru. Fabíola o chamou outra vez, mas ele negou entrar. Ela foi até ele e o pegou pelo pulso, tentou fazê-lo entrar gentilmente, mas ele se segurava para não ir, até que em certo momento ele chorou.
— O que foi? Eu te machuquei? — quis saber Fabíola, envolvendo Caíque nos braços. Ela secou as lágrimas dele e percebeu seu olhar enfrentando o mandacaru. — Tá com medo do jamacaru?
Caíque balançou a cabeça em afirmativa.
— Mas é só uma planta, bobo.
Caíque negou mudamente.
— Por que está com medo do jamacaru?
— Ela come isso — Caíque respondeu bem baixinho, apontando para a espinha gigante avermelhada e cheia de pus em seu peito.
Fabíola estudou licenciatura em pedagogia, leu o suficiente do conteúdo para saber que não deveria rir e segurou o máximo, porém, na tentativa de fazer mais uma pergunta, deixou escapar a gargalhada num misto com gotículas de saliva que formaram uma nuvem que se dissipou no ar.
— Ai, Caíque, desculpa — beijou a bochecha dele —, eu não consegui. Como assim ela come espinhas? Ela quem?
— Na minha casa ela vinha quando eu tava dormindo e comia — explicou ainda chorando.
Fabíola pegou ele no colo e o sentou na cama. Puxou a mochilinha dele e a abriu.
— E você fazia o quê? — continuou investigando.
— Nada, eu não conseguia me mexer.
— Por que você não conseguia se mexer, Caíque? Ela não deixava?
— Não, eu só não conseguia me mexer e nem falar.
Fabíola fez um carinho na nuca dele:
— Caíque, isso foi só um sonho. É normal a gente ter pesadelos que não conseguimos nos mexer. Essa não — falou Fabíola pegando as roupinhas de Caíque na mochila. — Todas as suas roupas estão sujas e encardidas. Não dá pra você usar isso, vou ter que pegar umas do André…
Ela saiu do quarto, mas Caíque grudou nela.
— Pode me esperar aí, eu vou no quarto do meu irmão.
Caíque retornou o olhar para o mandacaru batendo à janela.
— Aí, Caíque…
Fabíola entrou na sala de aula, sentou à carteira e estava felicíssima, finalmente retornou aos estudos. Pegou seu caderno e abriu na matéria favorita, Políticas Públicas da Educação, ela adorava estudar as leis acerca de sua área de atuação e debatê-las com a amiga Carla, elas eram boas naquela matéria e passavam quase todo o tempo livre debruçadas em casos nos quais as leis não foram colocadas em prática, debruçadas nas falhas do Estado, no sucateamento da escola pública. Vale dizer, as duas foram as primeiras a se revoltar com o congelamento da entrada de grande parte de dinheiro público na educação, após a aprovação da PEC do Teto de Gastos, ao ponto de tentar organizar um protesto. O Movimento Estudantil se mobilizou, as duas foram à luta com seu grupo comunista, inspiradas pelos seus ideais e sonhos. Infelizmente, não houve luta comunista ou ataque anarquista que impedisse a aprovação
Maria estava estranha, pelo menos para Fabíola. Assim que entraram em casa, Maria se dispôs a fazer as compressas para os meninos, colocou o celular para tocar na hora de dar os remédios e cantarolava seus “louvores” — por motivos desconhecidos, era quase um pecado capital chamar música gospel de música, Fabíola odiava esse fato tanto quanto odiava música gospel louvores. Todo aquele “lá, lá, lá” proferido pela mãe assustava, de certa forma, apesar de deixar Fabíola confortável. Talvez, a descoberta de que os furúnculos causavam dor em Caíque tivesse amolecido o coração da velha.— Minha filha — ela chamou —, você pode dar uma olhada no quintal? V
Com o peso de Fabíola acima do tronco, Beto arquejava, mas de forma alguma era ruim. O peso era delicado, cheirava a rosas e o esquentava. Fabíola brincava passando o queixo nos pelos do peito de Beto, fazia tempo que não o tinha daquele jeito. Mas estava na hora dele ir.— Esse cacto ficou o tempo todo batendo na janela, isso não te irrita? — perguntou Beto, levantando da cama.Fabíola deitou de costas, o corpo nu exposto sem pudores, olhou para a janela:— Pra ser bem sincera, nunca foi assim. Acho que ele bate desse jeito por causa do vento das chuvas. Aliás, é um jamacaru.— Talvez a água tenha o inchado, o peso deve fazê-lo ba
Por quinze minutos Fabíola esteve imovel, ajoelhada ao chão. As pálpebras estavam abertas, mas nada os olhos enxergavam. A cabeça em nada pensava; por quinze minutos ela não existiu.O primeiro objeto que viu quando retornou à realidade, foi a cadeira diminuída a lixo. Entretanto, ela não pensou sobre aquilo e automática foi ao quarto, na gaveta da mesa de cabeceira, pegou um maço com dezenove cigarros que ela não via a cor há quatro meses.Na cozinha escura por preservar apagada a lâmpada, ligou a chama do fogão e acendeu um cigarro. Foi difícil para os lábios agarrar a bituca com a tremedeira incessante das mãos. Ela sentiu uma brisa e se arrepiou, percebeu, então, que não vestira uma camiseta, estava
Três vezes ligou e o telefone apenas chamou, na quarta, por qualquer motivo, provavelmente por intuição, sentiu que o pai tinha encerrado a ligação sem nem atender. Ele trabalhava cedo, já estava acordado às cinco. O tempo estava correndo, ela precisava ser rápida! Iria ao próximo, ligou para Roberto. Era um tanto vergonhoso ter que pedir dinheiro um dia após uma transa, realizada depois de uma semana dando vácuo no pobre Beto.— Fabíola, me ligou cedo — a voz dele estava sonolenta, óbvio, era domingo.— Desculpa ter te ligado assim. Tá tudo bem contigo? Hum, que bom… ouça, Beto: eu sei como isso é chato e eu estou morrendo de vergonha, mas, assim, será que você não teria, assim,
Apesar da amizade forte, Carla visitou Fabíola uma única vez, há dois anos e não era de fato uma visita, de fato não era aquela coisa de almoço de fim de semana ou de visita pelo simples prazer de ter a amiga por perto; era só uma passada para fazer um trabalho. Gostavam mesmo de se ver em festas, baladas, bares, Carla era uma grande entusiasta da bebedeira iniciada na torre de chopp e finalizada no tilintar do gelo no fundo do copo plastico de caipirinha, sempre de morango e bem docinha, obrigada, passar bem! A primeira visita pelo prazer da conversa acompanhada de uma sacola com quatro latinhas, era como a manutenção de uma tradição.— Adoro duplo malte — Fabíola confessou após o primeiro gole.— Dois mil reais, no mí
Devia seis mil e cem reais, não só isso, a dívida era maior, aquele valor era só o exigido no momento. Tinha dois mil no cartão e agora receberia mil de Carla, ficariam faltando apenas três mil e cem para completar o valor exigido para não virar puta.— Amiga, foi bom te ver — Carla se espreguiçava, levantou do sofá —, mas eu já tenho que ir.— Tão rápido assim?— É, eu entrei num projeto de iniciação científica e tô fazendo um estágio, então, já viu, né? Tô atarefadíssima.Fabíola a acompanhou até a saída.
Subiu ao próximo andar desobedecendo sua própria regra de não correr nas escadas, entrou em seu quarto batendo a porta, abriu seu guarda roupas e pegou sua latinha de bombons — abriu-a. O cartão de crédito não estava ali, Fabíola gritou bestial com a cabeça erguida, os meninos se assustaram e correram até ela.— O que aconteceu? — Caíque quis saber.— Voltem pro quarto e não saiam, eu volto logo.Fabíola saiu de casa, subiu a rua 13 de maio, virou a esquina na Rua do Orador Cego e seguiu, ademais para o fim da rua, chegou no número cem, numa igreja evangélica. O local estava de portas abertas, apenas o pastor habitava ali em seu lugar no altar, de cabe&cc