II

Às onze da noite Fabíola chegou em casa, chegara mais cedo, pois não tinha feito hora extra, queria aproveitar a casa sozinha — a mãe ia à igreja naquela noite. Teria chegado ainda mais cedo, não fossem as chuvas de verão; São Paulo inteira estava debaixo d’água e o bairro onde moravam possuía um esgoto à céu aberto que sempre alagava. Como se não bastasse o trânsito nas avenidas, Fabíola teve de dar a volta, pela entrada de outro bairro, para chegar em casa. E foi surpreendida com a presença da mãe. Deixou escapar o ar certamente protestante, afinal, tinha planos, mais precisamente o plano de chegar e ir direto ao quarto sem precisar olhar para a velha senhora sentada no sofá de frente para a televisão.

    — Chegou cedo, não deveria estar na faculdade? — a mãe questionou.

    — Não vou responder, você sabe muito bem a resposta — deixou a mãe lá e foi à cozinha procurar comida na geladeira. — Você não cozinhou hoje?

    — Eu estava ocupada, tive que ajudar a arrumar a igreja para a festividade amanhã.

    Apoiada na última prateleira da geladeira, agachada, Fabíola tentou segurar a irritação:

    — E meu irmão comeu o que quando chegou em casa?

    — Dei pão aos dois.

    Fabíola queria morrer. Quer dizer que estava investindo o último pedaço de seu salário nas compras do mês e aquela velha não tinha nem a decência de preparar o arroz? Fabíola escorou-se no mármore da pia, enfim percebeu:

    — Dois? — gritou e foi até a mãe. — O que você quis dizer com dois?

    — Para de se fazer, menina.

    — Não estou me fazendo, como assim dois? Eu tenho um irmão perdido!?

    A mãe gargalhou jogando a cabeça para trás, depois perguntou se Fabíola tinha lido sua mensagem.

    — Não, mãe, eu fiquei o dia todo sem mexer em nenhuma rede social. Não queria ter de explicar pro pessoal porque não fui à faculdade hoje.

    — Então, poupe meu tempo. Leia.

    Fabíola pegou o celular com a bateria praticamente cheia, leu a mensagem:

    “Filha, lembra daquela minha irmã da igreja, a Marta? Que morava na beirada do córrego num barracão de madeira? Então, com essas chuvas de verão tá dando enchente quase todo o dia e o filhinho dela, Caique, tá muito doentinho, eu vi ele ontem, tá extremamente magro. Então, filha, ela me pediu pra ficar com ele um tempinho, tadinho, eles estão sem dinheiro e estão procurando outro lugar pra ficar.”

    De uma hora para outra, a irritabilidade de Fabíola se foi.

    — Caramba, mãe, por que você não me ligou?

    — Tá com raiva?

    — Como eu posso ficar com raiva disso? — Fabíola sentou ao lado da mãe. — O que sua amiga vai fazer agora?

    — Ela é catadora e o marido pedreiro. Ela vai dormir na cozinha do ferro-velho, agora ele; não faço ideia.

    — Mas e o barracão?

    — Provavelmente eles e a galera do córrego vão procurar outro lugar pra invadir. Eles estão em situação de rua.

    — Eles não podem arrumar um emprego melhor?

    A mãe riu:

    — Eles são analfabetos, filha, só têm até a terceira série.

    Neste instante, um garotinho, de aparentemente uns oito anos, apareceu atrás do sofá, no último degrau da escada. Ele estava molhado e envolto numa toalha, marcavam a pele seus ossos do ombro, costelas e braços. Seus olhinhos tinham olheiras profundas, não por cansaço — isso era coisa de adulto —, sim por desnutrição. Por todo o corpo, num adorno cruel à fome, Caíque tinha grandes inflamações, pareciam espinhas gigantes; estavam na barriga, nos braços, nas pernas e costas, estavam também no pescoço, nas axilas e pés.

    — Dona Maria, já tomei banho — ele avisou.

    —  Caíque — a mãe estava incomodada —, você precisa se enxugar antes de sair do banheiro, molhou o chão todo.

    Fabíola levantou, avisou à mãe que ela mesma o ajudaria.

    — Tem uma mochilinha dele no seu quarto — gritou a mãe, enquanto subiam.

Fabíola se apresentava. Ela estava chocada: Caíque tinha o rosto terrivelmente marcado, seu queixo era um V pontudo e as suas bochechas, pela fome, contraiam-se para dentro de forma que suas orelhas inclinavam-se para frente.

    — Ei, Caíque. Onde você morava? E com quem?

    — Eu morava com minha mãe e meu pai, lá no esgoto.

    Fabíola desceu ao nível dele, pousou as mãos nos ombros dele e o olhou nos olhos:

    — Não fale assim, Caíque. Falar desse jeito é ruim: diga sempre que morava numa casa. Okay? — Ela fez um carinho na cabeça dele e lhe beijou a testa. — E o que você mais gosta de fazer?

    Ela não continuou à caminho do quarto, ficou ali olhando-o nos olhos e prosseguindo com a investigação que tinha aprendido.

    — Eu gosto de empinar pipa — agora ele parecia mais espontâneo, estavam chegando lá.

    — Mentira! Meu irmão também gosta bastante, o André. Você brincou com ele?

    — Sim, mas ele já dormiu.

    Fabíola aproximou o rosto, como se fosse contar um segredo para Caíque:

    — Ele é preguiçoso, gosta de fingir que tá dormindo pra não fazer nada, embora ontem, segundo ele, tenha dormido cedo… — Caíque riu, Fabíola gostou, estava indo bem, graças a Deus, pois no estágio ela nunca fora tão boa nisso. — Você comeu hoje, Caíque?

    — Eu comi na escola e comi dois pães aqui que a tia deu!

    — Nossa, dois pães, que menino comilão.

    A barriga de Caíque roncou alto.

    — Dois pães não foram o suficiente, né? — Fabíola sentiu um aperto no coração.

    — Na verdade ainda tô com fome.

    Fabíola riu:

    — Eu vou fazer um arroz com carne pra gente, antes de dormir. Que tal?

    Caíque concordou com um sorriso.

    Fabíola pegou na mão dele e o guiou até seu quarto, abriu a porta e sentiu a brisa fria da chuva entrando pelo buraco no vidro. Fabíola soltou a mão de Caíque e se abraçou, batendo os dentes. O mandacaru acertava a janela com mais força que o normal.

    — Eu só me lasco — murmurou Fabíola — e agora pra dormir no frio e com barulho? Vem, Caíque.

    Mas Caíque não foi, ele ficou parado na frente da porta, do lado de fora. Ele estava pálido, os olhos cerrados e a respiração tensa. Ele encarava o mandacaru. Fabíola o chamou outra vez, mas ele negou entrar. Ela foi até ele e o pegou pelo pulso, tentou fazê-lo entrar gentilmente, mas ele se segurava para não ir, até que em certo momento ele chorou.

    — O que foi? Eu te machuquei? — quis saber Fabíola, envolvendo Caíque nos braços. Ela secou as lágrimas dele e percebeu seu olhar enfrentando o mandacaru. — Tá com medo do jamacaru?

    Caíque balançou a cabeça em afirmativa.

    — Mas é só uma planta, bobo.

    Caíque negou mudamente.

    — Por que está com medo do jamacaru?

    — Ela come isso — Caíque respondeu bem baixinho, apontando para a espinha gigante avermelhada e cheia de pus em seu peito.

    Fabíola estudou licenciatura em pedagogia, leu o suficiente do conteúdo para saber que não deveria rir e segurou o máximo, porém, na tentativa de fazer mais uma pergunta, deixou escapar a gargalhada num misto com gotículas de saliva que formaram uma nuvem que se dissipou no ar.

    — Ai, Caíque, desculpa — beijou a bochecha dele —, eu não consegui. Como assim ela come espinhas? Ela quem?

    — Na minha casa ela vinha quando eu tava dormindo e comia — explicou ainda chorando.

    Fabíola pegou ele no colo e o sentou na cama. Puxou a mochilinha dele e a abriu.

    — E você fazia o quê? — continuou investigando.

    — Nada, eu não conseguia me mexer.

    — Por que você não conseguia se mexer, Caíque? Ela não deixava?

    — Não, eu só não conseguia me mexer e nem falar.

    Fabíola fez um carinho na nuca dele:

    — Caíque, isso foi só um sonho. É normal a gente ter pesadelos que não conseguimos nos mexer. Essa não — falou Fabíola pegando as roupinhas de Caíque na mochila. — Todas as suas roupas estão sujas e encardidas. Não dá pra você usar isso, vou ter que pegar umas do André…

    Ela saiu do quarto, mas Caíque grudou nela.

    — Pode me esperar aí, eu vou no quarto do meu irmão.

    Caíque retornou o olhar para o mandacaru batendo à janela.

    — Aí, Caíque…

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