Três vezes ligou e o telefone apenas chamou, na quarta, por qualquer motivo, provavelmente por intuição, sentiu que o pai tinha encerrado a ligação sem nem atender. Ele trabalhava cedo, já estava acordado às cinco. O tempo estava correndo, ela precisava ser rápida! Iria ao próximo, ligou para Roberto. Era um tanto vergonhoso ter que pedir dinheiro um dia após uma transa, realizada depois de uma semana dando vácuo no pobre Beto.
— Fabíola, me ligou cedo — a voz dele estava sonolenta, óbvio, era domingo.
— Desculpa ter te ligado assim. Tá tudo bem contigo? Hum, que bom… ouça, Beto: eu sei como isso é chato e eu estou morrendo de vergonha, mas, assim, será que você não teria, assim,
Apesar da amizade forte, Carla visitou Fabíola uma única vez, há dois anos e não era de fato uma visita, de fato não era aquela coisa de almoço de fim de semana ou de visita pelo simples prazer de ter a amiga por perto; era só uma passada para fazer um trabalho. Gostavam mesmo de se ver em festas, baladas, bares, Carla era uma grande entusiasta da bebedeira iniciada na torre de chopp e finalizada no tilintar do gelo no fundo do copo plastico de caipirinha, sempre de morango e bem docinha, obrigada, passar bem! A primeira visita pelo prazer da conversa acompanhada de uma sacola com quatro latinhas, era como a manutenção de uma tradição.— Adoro duplo malte — Fabíola confessou após o primeiro gole.— Dois mil reais, no mí
Devia seis mil e cem reais, não só isso, a dívida era maior, aquele valor era só o exigido no momento. Tinha dois mil no cartão e agora receberia mil de Carla, ficariam faltando apenas três mil e cem para completar o valor exigido para não virar puta.— Amiga, foi bom te ver — Carla se espreguiçava, levantou do sofá —, mas eu já tenho que ir.— Tão rápido assim?— É, eu entrei num projeto de iniciação científica e tô fazendo um estágio, então, já viu, né? Tô atarefadíssima.Fabíola a acompanhou até a saída.
Subiu ao próximo andar desobedecendo sua própria regra de não correr nas escadas, entrou em seu quarto batendo a porta, abriu seu guarda roupas e pegou sua latinha de bombons — abriu-a. O cartão de crédito não estava ali, Fabíola gritou bestial com a cabeça erguida, os meninos se assustaram e correram até ela.— O que aconteceu? — Caíque quis saber.— Voltem pro quarto e não saiam, eu volto logo.Fabíola saiu de casa, subiu a rua 13 de maio, virou a esquina na Rua do Orador Cego e seguiu, ademais para o fim da rua, chegou no número cem, numa igreja evangélica. O local estava de portas abertas, apenas o pastor habitava ali em seu lugar no altar, de cabe&cc
Fabíola afastou a mesinha de centro e estendeu um lençol em cima do tapete, colocou as crianças deitadas lá, depois correu até a cozinha e pegou a maior faca e uma cadeira, que arrastou para a frente da escada e sentou-se. Pegou o celular e ligou para a polícia, sua ação foi tão impulsiva, motivada pelo medo, que sequer pensou nas consequências de pedir por esse auxílio, chegou a se arrepender, porém, já estavam a caminho.As autoridades chegaram faltando vinte minutos para às cinco horas da manhã e foram direto ao quarto, depois conferiram o restante da casa; não encontraram nenhum tipo de invasor. Fizeram todos os procedimentos, vasculharam as redondezas, pediram a descrição da invasora e avaliaram os sinais de agressão:
Ainda na rua, antes de sair de dentro do carro de Roberto pôde ver as janelas da cozinha e da sala num brilho dourado, saiu de casa com tanta pressa que esqueceu as lâmpadas acesas, embora jurasse tê-las apagado. Sua relutância de adentrar a moradia fora tão ou mais forte que a resistência de entrar na casa do pai. Poderia dizer: tudo bem, nada saltará para me devorar, entretanto, não devia, sabia que não era verdade. Restava-lhe assumir sua posição de adulta e, numa conduta madura, enfrentar o monstro, mesmo que com medo. Só assim as coisas se arrumariam, não podia esperar que os mais velhos viessem e resolvessem tudo, porque agora ela era o mais velho com pessoas indefesas acreditando em seu discernimento.Como já esperava ser surpreendida, não sobressaltou com o estado da casa quando entrou.
Ela bebeu um litro inteiro de chá de camomila, depois subiram para o primeiro andar. Frente a porta, Fabíola parou, com a mão envolvendo a maçaneta, respirou fundo; estava tremendo.— Deixa que eu faço — Roberto prontificou-se.— Não, eu faço. Preciso fazer — empurrou a porta com a força bruta necessária para assustar a invasora. Viu, na pouca luz amarelada dos postes da rua, sua mãe com a cabeça e braços pendurados na guarnição de alumínio, o tronco no vão entre a janela e o mandacaru, as pernas entrando entre os gomos espinhosos e aquela criatura horrenda com seus pés enormes sobre a barriga e peito de Maria. — Mãe! — estrondou. Roberto levou Maria até seu quarto e a deitou, ela respirava, no entanto não acordava. Fabíola pegou um rolo de papel higiênico, um pano, um pote com água, uma barra de sabão e uma toalha de rosto limpa.— Me ajuda a despir ela — Fabíola pediu. O sangue de Maria encharcou a cama inteira.— Temos que chamar uma ambulância.— Temos, mas não devemos; como vamos explicar isso! Vão achar que torturamos ela.Com a mãe vergonhosamente só em lingerie, Fabíola começou a limpar suas feridas com a toalha e o sabão. Era verdade, poucos vestígios de admiração sagrada sobraram em Fab&XIV
— Desgraçada! — Fabíola agarrou o abajur e ao saltar da cama acertou a coisa.A criatura ficou contra a porta do quarto, trancada. Roberto acordou imediatamente, levantou numa rapidez que lhe deu tonturas, uma enorme espinha já crescia em seu pescoço:— Que droga — sussurrou.— A corda — Fabíola ordenou.Roberto pegou a corda dentro do guarda roupa; encarou a criatura. Aquela coisa estranha se posicionava como um animal preparando o ataque, de gatinhas, os olhos fixados no inimigo.Roberto avançou. Ela se esquivou num salto, fincou as garras no teto, se pendurando por instantes, l