Com o peso de Fabíola acima do tronco, Beto arquejava, mas de forma alguma era ruim. O peso era delicado, cheirava a rosas e o esquentava. Fabíola brincava passando o queixo nos pelos do peito de Beto, fazia tempo que não o tinha daquele jeito. Mas estava na hora dele ir.
— Esse cacto ficou o tempo todo batendo na janela, isso não te irrita? — perguntou Beto, levantando da cama.
Fabíola deitou de costas, o corpo nu exposto sem pudores, olhou para a janela:
— Pra ser bem sincera, nunca foi assim. Acho que ele bate desse jeito por causa do vento das chuvas. Aliás, é um jamacaru.
— Talvez a água tenha o inchado, o peso deve fazê-lo balançar.
— O peso? — Fabíola vestiu a calcinha cor-de-rosa, ainda deitada — eu nunca pensei assim.
Roberto já tinha vestido a camiseta, cueca e short, sentou na cama para calçar os tênis:
— É, o peso, o tronco dele é fino e ele tem esses braços tipo candelabro — ele levantou os braços abertos, para simbolizar um candelabro; Fabíola riu da mímica.
Ela se levantou e vestiu o sutiã e a calça, depois foi até a janela:
— Você acredita que eu perdi uma tesoura por causa dele? — Fabíola encostou o nariz na janela, ia brincar pressionando-o contra o vidro. De súbito, o que viu através dos braços do mandacaru, a assustou. Ela ficou pálida, fechou a cara. Havia a um rosto ali, a observando com os olhos em fúria; a fronte estava marcada pela idade, suas linhas de expressão e rugas eram as mais profundas que Fabíola já viu, seus olhos, na pouca luz, ganhavam uma tonalidade amarela e ela não tirava os olhos de Fabíola.
— É uma pena eu ter que ir, gostaria de aproveitar a noite toda contigo — falou Roberto, alheio ao que estava acontecendo.
Fabíola se afastou da janela, tentou disfarçar; respondeu Roberto, o beijou, o abraçou e o guiou até a saída. Ela queria entrar no carro com ele e partir, sumir daquela casa, passar no mínimo uma noite longe dos problemas. Ela não podia fazer o que queria; se não ela, seria a mãe e o irmão, sobraria até para Caíque. Ela puxou o pouco de coragem que tinha, estufou o peito e soltou a mão de Roberto, não sem antes abraçá-lo.
— Eu vou arrumar o trampo pra você — confirmou Beto pela janela do carro.
Ela agradeceu e acenou. Ele deu a partida e se foi.
Fabíola mapeou a rua com o olhar, procurou por eles; Ele estava ali, do outro lado da rua, escondido à sombra de uma casa, veio pessoalmente, mas tinha dois capangas a tiracolo.
Os capangas correram atrás dela; Fabíola entrou na casa, ia lutar, contudo, eles eram mais rápidos. Um a pegou pelo braço esquerdo, o outro, pelo braço direito e pelo cabelo, forçaram-na a ajoelhar.
Compassadamente, Ele entrou na casa, estava mais jovem do que aparentava quando visto através do mandacaru. Ele tinha o cabelo raspado e barba bem feita, usava uma Pollo lilás, tênis Olympikus e o cheiro de sua colônia de alfazema podia ser sentido de longe.
— Por que mesmo com tanto dinheiro algumas pessoas insistem em usar perfume barato? — afrontou-o Fabíola. O capanga que segurava o cabelo dela, puxou-o com toda a força, ela tentou não gritar.
Ele deu dois passos, ficou perto dela. Na posição serventia que Fabíola se encontrava, olhar para Ele era como estar aos pés do Cristo Redentor, no Rio — grandioso, inalcançável, imbatível. Ele desferiu um tapa com as costas da mão no rosto dela. Não era como o tapa da mãe, era mais forte, mais grave, logo ela já sentia a bochecha inchando.
Ainda sem dizer nada, Ele foi até a cozinha, pegou uma cadeira e a arrastou até a sala; colocou a cadeira na frente dela e sentou de pernas abertas.
— Eu quero te contar uma história engraçada, Fabí. Mês passado, no quinto dia útil, uma mocinha muito bonita e inteligente, até demais, foi até um dos meus “colegas” entregar um envelope, com uma parcela do dinheiro que a mamãe dela me devia. Meu colega, confiando nela, aceitou sem nem conferir o dinheiro. Quando eu peguei o envelope e o abri, só tinha metade da parcela… não, mas eu sou uma boa pessoa, meu pai me ensinou a ser paciente e respeitador com as mulheres; as bonitas, porque as feias a gente espanta — os três riram da piada, Fabíola estava quase chorando. — Fabíola — Ele colocou o indicador sob o queixo dela —, você tem noção do mau exemplo que eu tô passando, te dando essa colher de chá? Eu tô esperando, desde o quinto dia útil do mês passado, você me dar o restante do dinheiro… você sabe que dia é hoje? Hoje é o sexto dia útil e até agora eu não vi nem a metade faltante da parcela passada e nem a parcela desse mês.
Ficaram em silêncio, Ele acendeu um cigarro, puxou um trago e soltou no rosto dela:
— Tô esperando você responder.
— Eu, é. Eu tive, umas, contas — as primeiras lágrimas desceram.
— Contas?! — bradou Ele e apertou o pescoço dela, os capangas a soltaram —, que outras dívidas são mais importantes que essa?
Ele a largou.
— Eu fiquei sem dinheiro — Fabíola continuou se justificando, enquanto Ele quebrava a cadeira aos chutes — eu até tranquei a faculdade.
— Tá sem dinheiro pra me pagar, porra, então não aceita a casa!
Fabíola estava com medo, mas também tinha raiva; como Ele era pilantra.
— Eu tenho uma parte do dinheiro — alegou Fabíola, ainda jogada ao chão — eu tenho dois mil, mas não tá comigo, tá no banco.
— Então, por que não pagou o capitão ainda? — um dos capangas a intimidou.
— É, se tem dois mil, por que não me pagou ainda?
— Só consegui essa grana hoje de manhã. Mas é verdade, eu juro — claro que não fora naquela manhã, mas ela precisa arrumar uma justificativa.
Ele desceu ao nível dela, a fitou profundamente, depois a olhou de cima a baixo. Quando satisfeito, agarrou os seios dela — nesse ponto ela já não conseguia mais segurar o choro.
— Olha, eu sou um homem bom, meu pai me ensinou, portanto, eu não vou te matar… eu não gosto de matar mulher. A gente vai fazer assim: se você conseguir me trazer a metade da parcela atrasada, mais a parcela desse mês, mais o adiantamento da parcela do próximo mês, até depois de amanhã; ficamos okay! Mas, se você não conseguir, aí não tem jeito; você vai virar puta no meu cabaré novo. Entendeu?
Fabíola relutou, não queria aquilo, mas quando ele reforçou a pergunta, não teve opção senão concordar.
Acordo feito, Ele ia embora. Ao agarrar a maçaneta, Ele percebeu que a fechadura estava quebrada:
— Conserte a porta, Fabí, é perigoso a porta aberta assim.
— Se fosse mais seguro com a porta trancada, seus pau-mandado não tinham invadido.
Ele se voltou para ela:
— Quem invadiu?
— Seus pau-mandado aí, você, entraram aqui quando não tinha ninguém e ficam me observando na janela.
Ele e seus capangas se entreolharam:
— Mas eu não mandei ninguém invadir, ou te observar. Meu estilo é assim: m****r logo a real. Deixa de ser louca.
— Então, quem era, na janela, me olhando?
— Não sei, não quero saber, isso é B. O. seu. Resolva sozinha.
Por quinze minutos Fabíola esteve imovel, ajoelhada ao chão. As pálpebras estavam abertas, mas nada os olhos enxergavam. A cabeça em nada pensava; por quinze minutos ela não existiu.O primeiro objeto que viu quando retornou à realidade, foi a cadeira diminuída a lixo. Entretanto, ela não pensou sobre aquilo e automática foi ao quarto, na gaveta da mesa de cabeceira, pegou um maço com dezenove cigarros que ela não via a cor há quatro meses.Na cozinha escura por preservar apagada a lâmpada, ligou a chama do fogão e acendeu um cigarro. Foi difícil para os lábios agarrar a bituca com a tremedeira incessante das mãos. Ela sentiu uma brisa e se arrepiou, percebeu, então, que não vestira uma camiseta, estava
Três vezes ligou e o telefone apenas chamou, na quarta, por qualquer motivo, provavelmente por intuição, sentiu que o pai tinha encerrado a ligação sem nem atender. Ele trabalhava cedo, já estava acordado às cinco. O tempo estava correndo, ela precisava ser rápida! Iria ao próximo, ligou para Roberto. Era um tanto vergonhoso ter que pedir dinheiro um dia após uma transa, realizada depois de uma semana dando vácuo no pobre Beto.— Fabíola, me ligou cedo — a voz dele estava sonolenta, óbvio, era domingo.— Desculpa ter te ligado assim. Tá tudo bem contigo? Hum, que bom… ouça, Beto: eu sei como isso é chato e eu estou morrendo de vergonha, mas, assim, será que você não teria, assim,
Apesar da amizade forte, Carla visitou Fabíola uma única vez, há dois anos e não era de fato uma visita, de fato não era aquela coisa de almoço de fim de semana ou de visita pelo simples prazer de ter a amiga por perto; era só uma passada para fazer um trabalho. Gostavam mesmo de se ver em festas, baladas, bares, Carla era uma grande entusiasta da bebedeira iniciada na torre de chopp e finalizada no tilintar do gelo no fundo do copo plastico de caipirinha, sempre de morango e bem docinha, obrigada, passar bem! A primeira visita pelo prazer da conversa acompanhada de uma sacola com quatro latinhas, era como a manutenção de uma tradição.— Adoro duplo malte — Fabíola confessou após o primeiro gole.— Dois mil reais, no mí
Devia seis mil e cem reais, não só isso, a dívida era maior, aquele valor era só o exigido no momento. Tinha dois mil no cartão e agora receberia mil de Carla, ficariam faltando apenas três mil e cem para completar o valor exigido para não virar puta.— Amiga, foi bom te ver — Carla se espreguiçava, levantou do sofá —, mas eu já tenho que ir.— Tão rápido assim?— É, eu entrei num projeto de iniciação científica e tô fazendo um estágio, então, já viu, né? Tô atarefadíssima.Fabíola a acompanhou até a saída.
Subiu ao próximo andar desobedecendo sua própria regra de não correr nas escadas, entrou em seu quarto batendo a porta, abriu seu guarda roupas e pegou sua latinha de bombons — abriu-a. O cartão de crédito não estava ali, Fabíola gritou bestial com a cabeça erguida, os meninos se assustaram e correram até ela.— O que aconteceu? — Caíque quis saber.— Voltem pro quarto e não saiam, eu volto logo.Fabíola saiu de casa, subiu a rua 13 de maio, virou a esquina na Rua do Orador Cego e seguiu, ademais para o fim da rua, chegou no número cem, numa igreja evangélica. O local estava de portas abertas, apenas o pastor habitava ali em seu lugar no altar, de cabe&cc
Fabíola afastou a mesinha de centro e estendeu um lençol em cima do tapete, colocou as crianças deitadas lá, depois correu até a cozinha e pegou a maior faca e uma cadeira, que arrastou para a frente da escada e sentou-se. Pegou o celular e ligou para a polícia, sua ação foi tão impulsiva, motivada pelo medo, que sequer pensou nas consequências de pedir por esse auxílio, chegou a se arrepender, porém, já estavam a caminho.As autoridades chegaram faltando vinte minutos para às cinco horas da manhã e foram direto ao quarto, depois conferiram o restante da casa; não encontraram nenhum tipo de invasor. Fizeram todos os procedimentos, vasculharam as redondezas, pediram a descrição da invasora e avaliaram os sinais de agressão:
Ainda na rua, antes de sair de dentro do carro de Roberto pôde ver as janelas da cozinha e da sala num brilho dourado, saiu de casa com tanta pressa que esqueceu as lâmpadas acesas, embora jurasse tê-las apagado. Sua relutância de adentrar a moradia fora tão ou mais forte que a resistência de entrar na casa do pai. Poderia dizer: tudo bem, nada saltará para me devorar, entretanto, não devia, sabia que não era verdade. Restava-lhe assumir sua posição de adulta e, numa conduta madura, enfrentar o monstro, mesmo que com medo. Só assim as coisas se arrumariam, não podia esperar que os mais velhos viessem e resolvessem tudo, porque agora ela era o mais velho com pessoas indefesas acreditando em seu discernimento.Como já esperava ser surpreendida, não sobressaltou com o estado da casa quando entrou.
Ela bebeu um litro inteiro de chá de camomila, depois subiram para o primeiro andar. Frente a porta, Fabíola parou, com a mão envolvendo a maçaneta, respirou fundo; estava tremendo.— Deixa que eu faço — Roberto prontificou-se.— Não, eu faço. Preciso fazer — empurrou a porta com a força bruta necessária para assustar a invasora. Viu, na pouca luz amarelada dos postes da rua, sua mãe com a cabeça e braços pendurados na guarnição de alumínio, o tronco no vão entre a janela e o mandacaru, as pernas entrando entre os gomos espinhosos e aquela criatura horrenda com seus pés enormes sobre a barriga e peito de Maria. — Mãe! — estrondou.Último capítulo