Portas...
Cercam-me, olham-me, esperam-me.
Cinco.
Todas enumeradas. Pesadas portas de ferro diferentes das da caverna que deixei anteontem. Não há saída a não ser por uma delas e todas me chamam, principalmente a mais próxima.
Promete coisas... revelações... segredos... só precisarei abri-la. As outras apenas sussurram. Devo esperar e refletir.
Lembranças me possuem... me levam... de volta à caverna... dois dias atrás...
--------------------------------------------------Após um breve período de louvor e admiração àqueles minerais tão almejados, meus quatro companheiros trataram de dividi-los entre si, ficando cada um com três unidades, à exceção do rato que levou uma extra. Observei as relíquias discretamente e asseguro que para o observador incauto não passam de pedras comuns, à exceção dos brilhos esparsos que emitem quando são manipuladas. De acordo com o quarteto, pode-se identificá-las em contato com o fogo, pois geram fachos de luz azulada; o rato até me demonstrou. Estranho mesmo foi o modo como este indivíduo passou a falar comigo após o fim do tenso debate. Agiu como se nada tivesse acontecido, dando-me impressões de ter adquirido nova personalidade, assemelhando-se a uma criança que, aprontada a peraltice, muda de atividade assumindo outra postura, sem qualquer remorso ou ressentimento pelo que fez. Nem mesmo se importou em me lembrar dos pedidos de desculpa sugeridos por Dehvorak. Diante desse contexto, optei por permanecer bem atento a seus movimentos.
O resto da equipe mal conseguia disfarçar a alegria, mesmo com os véus e as máscaras. Apenas Dehvorak tinha sua face completamente oculta e Garpot era o único com todas as feições expostas. Ademais, expressões corporais periclitantes e exaltações verbais repletas de jovialidade demonstravam, sem sombra de dúvida, o significado singular daquele momento. Passada a ansiedade diante do achado, Dehvorak se prontificou a fazer mais perguntas importantes ao enigmático parceiro.
– Está dizendo que seguíamos um caminho errado esse tempo todo? Se não era pela fenda das vozes, por onde era então?
– Lembra-se do monte de palha naquele compartimento com os sacos de pedra? Um alçapão se escondia bem embaixo. Vi um murgon entrando por ele.
– Impossível! Mexemos na palha e nada encontramos, esqueceu?
– Chutamos a palha, só isso! Ao notar terra por baixo, desistimos. Estamos ficando relapsos, Dehvorak! Isso não é bom!
– Mas... Por que um alçapão escondido? Pensei que os malditos julgassem impossível a chegada de invasores.
– Não sei dizer ao certo, mas creio que existam outras criaturas da floresta que possam vir a encontrar a gruta por acidente. Há milhões de possibilidades e esses murgons são cuidadosos quando lidam com assuntos importantes. O alçapão dá acesso a uma série de câmaras sagradas, incluindo um santuário e uma sala de tesouros.
– Mas não encontrou guardas?
– Só dois. Um deles me deu essa espada – exibiu o objeto ainda no cinto. – Bonita, não?
– Ele lhe deu a espada?
– Ah, homem! Você entende!
Nesse momento, Siley resolveu se intrometer.
– Ei, Rato! Por acaso ouvi mal ou falou em “sala do tesouro”? Se encontrou tesouros por que não os compartilha conosco?
– Porque fui sozinho, apanhei as pedras sozinho e arrisquei minha vida sozinho. As relíquias que acabamos de dividir, com as quais eu poderia ter fugido, não são o suficiente para você?
– O homem tem razão. Deixe seus tesouros em paz – advertiu Dehvorak.
– Gostaria de saber mais uma coisa. Que diabos os monstrinhos faziam reunidos aqui, já que o santuário e os lugares importantes ficam do outro lado?
– Você continuar falando “monstrinhos” e monstrinho enfiar espada em seu goela, monstrinho! – intercedeu Garpot, furioso.
– Desculpe-me, Garpot! Não sabia que isso o ofendia tanto!
– Tenha mais respeito por nosso parceiro, Siley. Sem ele não estaríamos aqui e muito menos com as pedras.
– Obrigado, amigo Dehvorak – agradeceu o murgon.
– Que lindo, vocês dois! Já marcaram a data do casório?
– Cale-se, Rato!
Por um instante baixei a guarda com o mestre das adagas, rindo de seu comentário, até que subitamente uma mão interceptou minha boca enquanto um pé me surrupiava o equilíbrio. Nem tive tempo de piscar e já estava no chão, sem poder gritar, com uma adaga encostada no pescoço. Os outros permaneceram mudos e estatelados diante da mudança instantânea dos acontecimentos. Por trás do pano sujo, os olhos do rato fervilhavam de excitação.
– Pensei que tivesse desistido dele. Ainda pretende matá-lo? – indagou Dehvorak timidamente, surpreso com a atitude do colega.
– Francamente, não sei. Estou me decidindo. Se minhas mãos estivessem livres eu jogaria um gúblio! Pode fazer isso por mim?
– Não tenho moedas comigo, só pedras!
– Siley!
– Desculpe! Não quero interferir.
– Garpot!
– Você começar, você terminar!
– Covardes! Ao menos poderiam assumir uma posição! Todos que forem contra o falecimento desse infeliz manifestem-se agora ou calem-se para sempre!
Estava difícil até para respirar sob o corpo do rato, que apertava minha boca com a mão esquerda e meu estômago com o joelho direito. Semelhantemente àqueles murgons da floresta, a aparência do infeliz escondia sua força, que não ultrapassava a minha, mas tinha o apoio da arma que empunhava. Alguém deveria dar fim àquela loucura antes que fosse tarde. Minha grande esperança estava nas baboseiras preliminares, pois uma vez que desistisse delas, a adaga terminaria o serviço.
– Hum...! Parece que ninguém se pronunciou! Infelizmente seus colegas não o amam tanto para deixá-lo viver, que pena! Foi muito bom conhecê-lo!
– Não quer matá-lo realmente, quer? – perguntou Dehvorak, para meu alívio.
– Duvida?
– Francamente sim. Acho que deseja brincar conosco.
– É possível.
– Mais precisamente, comigo. Acertei?
– Talvez.
– Vá em frente! O que quer? Vamos, diga!
– Por que não tenta adivinhar?
– Parar com isso, sair daqui logo, murgons aparecer, vamos!
– Fique de olho então, Garpot! Cuide de nós enquanto cuidamos do pobre homem.
– Certo, amigo Dehvorak!
– Puxa! Adoro quando ele diz isso! Aposto que o ama! Concorda comigo? – O rato era uma criança no dia mais divertido da existência.
– Garpot me respeita porque eu o respeito, assim como também respeito esse homem, que nada lhe fez.
– Errado, caveirinha! Quem disse que o respeita? Você o ama! Ama Garpot e esse pobre infeliz, mas não tem coragem de admitir. Diga-me... Como pode estar apaixonado por alguém que nem conhece? Seriam esses belos olhos ou a barba infestada de formigas? Mal vê um homem nu e se perde de paixão? Pobrezinho! Quanta carência!
– Está ficando louco? Pare já com essa maluquice! Não vê a insanidade em suas atitudes? Largue-o imediatamente! – Dehvorak se exaltou, para deleite do companheiro.
– Louco? Como pode me achar louco? Não fui eu quem perdeu a compostura por causa de um traste humano, oriundo de uma cela suja, cujo nome jamais ouvimos!
– Ei, Rato! Por que não o mata logo e acaba com isso? – perguntou Siley, que nem precisava se intrometer. – Temos de sair daqui!
– Hum... um voto para que ele morra. Com Siley são dois. Garpot dará o veredicto final.
O murgon estava longe e mal pôde escutá-lo.
– Rato! Pare já com isso! – impôs Dehvorak.
– Só se admitir que o ama!
– Eu não o amo!
– Então terei de matá-lo! Adeus, prisioneiro! – Ele começou a pressionar a adaga contra meu pescoço. Desesperei. Tentei empurrá-lo, mas estava difícil pela posição em que se encontrava, conseguindo travar boa parte de meus movimentos. Dessa vez não haveria brilho para me dar forças. Fechei os olhos e esperei pela dor.
– Está bem, Rato! Você venceu! Eu o amo!
– Não acredito, Dehvorak! Não pode amar esse homem! – exclamou Siley.
– Pobre Garpot! – continuou o rato. – Seu coração não aguentará esse baque.
– Já fiz o que queria, solte-o!
– Como pode dizer isto se nem sabe o que quero?
– Fiz o que pediu. Cumpra sua parte e liberte-o!
– Ele tem razão, Rato! Liberte-o! – completou Siley.
– Não foi sincero em sua declaração. Quero que admita que o ama do fundo da alma para que ele saiba!
– Droga, Rato! Precisamos sair daqui!
– Posso matá-lo e acabar com isso agora se assim desejar.
– Isso mesmo, mate-o logo! Temos de ir embora! – As opiniões de Siley oscilavam junto a sua indecisão.
– Cale-se, idiota! Deixe-me cuidar disso! – repreendeu Dehvorak.
Mas Siley continuou.
– Por que defende tanto a vida desse homem? É só um prisioneiro! Imagino que esteja disputando com o rato novamente.
– Não estou! Ele está!
– Todos estamos, caveirinha! O tempo inteiro; é a luta pela vida. Quer continuar?
– Afinal, o que deseja? Ver-me de joelhos a beijar os pés do homem?
– Pode fazer isso se quiser, mas não precisará tanto. Apenas declare seu amor por ele.
– Esta bem! – Virou-se para mim visivelmente embaraçado, pude perceber pelos gestos; insinuou dizer algo, mas foi interrompido pelo mestre das adagas.
– Ei, Dehvorak! Pretende se declarar sem que o infeliz conheça seu rosto? Retire a máscara e mostre essa beleza ao mundo!
Já me irritava profundamente, o rato. Siley interveio de novo.
– Vai realmente fazer isso? Não consigo acreditar, Dehvorak! O que deu em você? Permitirá que o rato lhe apronte essa? Não precisamos desse homem para coisa alguma! Deixe-o morrer! Que diferença faz?
– Você não entende, Siley! – intercedeu meu algoz. – Dehvorak jamais deixaria essa criatura morrer. Ele tem um código de honra. Com todos os seres patéticos desse plano. Uma vez patético e a caveira cuidará de ti eternamente, esse é o código! Especialmente se estiver apaixonada!
– Francamente não o entendo, Rato! Por que põe em risco o companheirismo e a amizade de Dehvorak por esse infeliz? Ambos digladiam em torno de um prisioneiro, para nada! Temos as pedras, temos futuro, temos nossa companhia! Do que mais precisamos?
– Não sei, Siley! – respondeu a caveira. – Acho que ele está com ciúmes – pelo tom de voz, um sorriso devia estar nascendo em sua boca.
– Ciúmes? Que tipo de ciúmes? – perguntou o rato debochadamente.
– Preciso dizer? Ciúmes do meu amor por esses dois. Talvez o queira para si, acertei? Está com ciúmes por me conhecer há anos sem receber tal afeição e não compreende por quê. Nutre uma paixão não correspondida por mim, odiando qualquer sentimento positivo que eu venha a desenvolver por outrem!
– Que loucura é essa, Dehvorak? O que há com vocês dois? Que conversa mais imbecil, parem com isso! Os murgons vão aparecer, esqueçam esse monte de idiotice!
Enquanto Siley se exaltava, levantando ligeiramente a voz, notei que o peso exercido sobre mim pelo rato diminuíra, assim como sua empolgação.
– Parabéns, Dehvorak! Fico feliz por ter aprendido a “jogar” depois de tanto tempo. Talvez eu até passe a apreciá-lo realmente depois do que disse. Tão profundo! Tão brilhante! Tão espirituoso! Confesso que neste momento desejaria estar no lugar do pobre infeliz que quase matei. Não creio que um dia alguém tenha me feito algo tão nobre, tão heroico! Deve achá-lo especial em sua fraqueza e inocência. Desta vez admitirei do fundo da alma que venceste.
– Então irá libertá-lo, certo?
– Por favor, não estrague tudo com perguntas idiotas! É claro que o libertarei! – Virou-se para mim em seguida. – Preste atenção, verme! Tirarei a mão de sua boca, mas se gritar ou tentar algum ato de vingança no futuro, não terei clemência, entendeu? Seremos parceiros a partir de agora, embora mal gostemos um do outro. Se Dehvorak o ama tanto é porque viu algo interessante em você; agradeça-o eternamente pelo que fez e não apronte idiotices. Talvez um dia eu até venha a apreciá-lo também, embora essa hipótese seja praticamente inviável. Lembre-se: se está vivo é graças a mim. E à caveira também, evidentemente! – Afastou a adaga de meu pescoço e se levantou, deixando-me em condições de respirar mais suavemente. Coloquei-me então de pé, batendo nas roupas a fim de retirar a poeira.
Alívio. Mesmo após ter sido humilhado fui incapaz de conter certo júbilo em saber que continuaria respirando. A iniciativa de Dehvorak demonstrou que nem todos ali me repudiavam por completo. Pensei se seria apenas uma questão de tempo até que eu finalmente os conquistasse, tornando-os meus aliados, fazendo-os até me ajudar na busca pelas tais lembranças perdidas, incluindo o rato do mato. Vislumbrei o teto pouco iluminado daquele aposento, desejando saber o quanto demoraria até que o sol nos iluminasse novamente, e quantos de nós gozariam esse privilégio. Em breve eu teria uma resposta.
Três sujeitos continuaram a me observar enquanto Garpot se mantinha afastado, de costas para todos, vigiando a fenda através da câmara ligada ao aposento onde nos encontrávamos. Nada indicava que havia prestado atenção alguma aos eventos que sucederam, parecendo totalmente absorto na ocupação. Os outros reagiram com ares de estranheza que lembravam os jovens murgons da floresta, dias antes. Siley, circulando o olhar atônito à procura de respostas que explicassem o comportamento estranho dos companheiros. Dehvorak, surpreso e embaraçado diante da declaração final do rato: o único a demostrar contentamento pelo que ocorreu, admirando a situação como uma obra de arte. Sua obra de arte. Quantas outras existiriam nessa sombria coleção? Lembranças reais.Dois dias atrás.Caverna sim... eles sim... aqui não... isso não... O que é real, afinal? Estou sonhando de novo?Anteontem era real, mas não agora, não aqui, não essas portas. Só um sonho... eu sei... Só um sonho. Porta. Grande... ferro... pesada.Me chama.Promete segredos... sinto-me leve... flutuando.Promete segredos... Devo resistir... Segredos...Sono.A sala circular onde me encontro não existe, a11
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Exato instante... já é noite. Ontem eu estava lá... hoje não... hoje aqui... no quarto... sozinho e pensativo ao som do bandolim que invade a madrugada trazendo vozes embriagadas daqueles que arriscam a vida pelo prazer. Dançam, pulam, beijam, abraçam, transam, apostam e roubam. Ontem, Dehvorak e o rato se embrenharam na cidade escura em busca de vítimas. Pelo acordo que selaram não podiam matá-las, apenas roubar. A caveira triunfou com larga vantagem. Seu adversário, no intento de tirar os méritos do oponente, alegaria ter sido derrotado pela própria embriaguez. Pelo que sei, o estado de espírito nunca serviu de diferencial entre os dois quando se tratou da atividade básica do ofício. O rato, apesar das excelentes aptidões, é um péssimo gatuno
Renascimento. De novo num quarto, mas desta vez sob a mais absoluta sobriedade, nada de portas misteriosas ou sonhos de óbito. Até quando? Perguntas inconscientes fluíam ininterruptamente enquanto um cavaleiro me observava da parede, congelado em sua vigília com escudo e lança em mãos. Um bonito quadro, sem dúvida, emoldurado em bronze, acompanhado de espadas, escudos e peles. Minha visão passeou devagar por cada brecha daquele aposento pouco mobiliado, sem ignorar o cesto de vime entupido de roupas no chão, a tina cheia d´água ao lado do amontoado de peles onde me deitava, a pequena abertura que denunciava o raiar do dia ou o homem de pé a minha frente trajando escamas e placas de metal. Seu dedo indicador procurou os lábios a fim de me fazer sinal de silêncio. Acatei a ordem, vendo-o virar as costa
Permaneci naquele cômodo o dia inteiro sob os cuidados da mulher de nome Edna. O desinteresse que li inicialmente em seus olhos provou-se uma impressão falsa, na verdade a enfermeira tinha certa dificuldade em deixar transparecer o que sentia de fato, pois era tímida. Com o tempo, entretanto, pude notar as qualidades sob sua máscara de indiferença e apreciá-la no cuidado mostrado enquanto lidava com minha dor. Além de cuidar desse corpo ferido, relatou-me experiências que vivenciou tratando de guerreiros mutilados em batalhas campais, expôs desilusões amorosas e falou do marido que jamais valorizou seu trabalho. Acabei também por revelar-lhe uma parte de meu drama, deixando-a bastante sensibilizada. Mencionei as loucuras do rato do mato, a cumplicidade em minha relação com Dehvorak, adquirida em tão p
Suspense. Tensão. Horas passavam, se estendendo através da noite. Edna bateu na porta em duas ocasiões, mas foi convencida a adiar sua aparição pelo novo dono da ausente capa dourada. A que usava agora era azul. De vez em quando meu retratista interrompia seu trabalho a fim de dar uma respirada, esticar-se e trocar palavras, retornando às atividades em seguida. Seu braço dançava, lenta ou rapidamente; movimentos frenéticos, contorções e paradas súbitas relacionadas a momentos de reflexão. A mão direita ficava boa parte do tempo escondida atrás da tela, exibindo-se ocasionalmente em suas novas cores preto e cinza, trabalhando de forma lépida. Na abertura a meu lado, pouco podia ser visto em virtude da escuridão. Os “homens invisíveis” talvez estivessem a par de meu novo esconderijo, já que atingiram os arredores do posto durante a caçada. Acordei sentindo um formigamento no rosto. Bom... tão logo o toquei, percebi que o termo formigamentonão era só uma metáfora. Tapas sucessivos espantaram e mataram os atrevidos insetos, deixando talvez uns poucos remanescentes. Fiquei feliz ao perceber o movimento de meu braço esquerdo, já curado. A dor oriunda das duas perseguições não havia cessado, mas ao menos diminuído. Andar se tornou mais fácil, por isso deixei aquele lugar desolado, agradecendo todos os deuses desconhecidos que outrora o habitaram.Estavam calmas, as ruas por onde trafegava. Poucas pessoas perambulavam a céu aberto na manhã que sucedeu a feira17