Lembranças reais.
Dois dias atrás.
Caverna sim... eles sim... aqui não... isso não...
O que é real, afinal? Estou sonhando de novo?
Anteontem era real, mas não agora, não aqui, não essas portas. Só um sonho... eu sei...
Só um sonho.
Porta. Grande... ferro... pesada.Me chama.Promete segredos... sinto-me leve... flutuando.Promete segredos... Devo resistir... Segredos...Sono.A sala circular onde me encontro não existe, a
Exato instante... já é noite. Ontem eu estava lá... hoje não... hoje aqui... no quarto... sozinho e pensativo ao som do bandolim que invade a madrugada trazendo vozes embriagadas daqueles que arriscam a vida pelo prazer. Dançam, pulam, beijam, abraçam, transam, apostam e roubam. Ontem, Dehvorak e o rato se embrenharam na cidade escura em busca de vítimas. Pelo acordo que selaram não podiam matá-las, apenas roubar. A caveira triunfou com larga vantagem. Seu adversário, no intento de tirar os méritos do oponente, alegaria ter sido derrotado pela própria embriaguez. Pelo que sei, o estado de espírito nunca serviu de diferencial entre os dois quando se tratou da atividade básica do ofício. O rato, apesar das excelentes aptidões, é um péssimo gatuno
Renascimento. De novo num quarto, mas desta vez sob a mais absoluta sobriedade, nada de portas misteriosas ou sonhos de óbito. Até quando? Perguntas inconscientes fluíam ininterruptamente enquanto um cavaleiro me observava da parede, congelado em sua vigília com escudo e lança em mãos. Um bonito quadro, sem dúvida, emoldurado em bronze, acompanhado de espadas, escudos e peles. Minha visão passeou devagar por cada brecha daquele aposento pouco mobiliado, sem ignorar o cesto de vime entupido de roupas no chão, a tina cheia d´água ao lado do amontoado de peles onde me deitava, a pequena abertura que denunciava o raiar do dia ou o homem de pé a minha frente trajando escamas e placas de metal. Seu dedo indicador procurou os lábios a fim de me fazer sinal de silêncio. Acatei a ordem, vendo-o virar as costa
Permaneci naquele cômodo o dia inteiro sob os cuidados da mulher de nome Edna. O desinteresse que li inicialmente em seus olhos provou-se uma impressão falsa, na verdade a enfermeira tinha certa dificuldade em deixar transparecer o que sentia de fato, pois era tímida. Com o tempo, entretanto, pude notar as qualidades sob sua máscara de indiferença e apreciá-la no cuidado mostrado enquanto lidava com minha dor. Além de cuidar desse corpo ferido, relatou-me experiências que vivenciou tratando de guerreiros mutilados em batalhas campais, expôs desilusões amorosas e falou do marido que jamais valorizou seu trabalho. Acabei também por revelar-lhe uma parte de meu drama, deixando-a bastante sensibilizada. Mencionei as loucuras do rato do mato, a cumplicidade em minha relação com Dehvorak, adquirida em tão p
Suspense. Tensão. Horas passavam, se estendendo através da noite. Edna bateu na porta em duas ocasiões, mas foi convencida a adiar sua aparição pelo novo dono da ausente capa dourada. A que usava agora era azul. De vez em quando meu retratista interrompia seu trabalho a fim de dar uma respirada, esticar-se e trocar palavras, retornando às atividades em seguida. Seu braço dançava, lenta ou rapidamente; movimentos frenéticos, contorções e paradas súbitas relacionadas a momentos de reflexão. A mão direita ficava boa parte do tempo escondida atrás da tela, exibindo-se ocasionalmente em suas novas cores preto e cinza, trabalhando de forma lépida. Na abertura a meu lado, pouco podia ser visto em virtude da escuridão. Os “homens invisíveis” talvez estivessem a par de meu novo esconderijo, já que atingiram os arredores do posto durante a caçada. Acordei sentindo um formigamento no rosto. Bom... tão logo o toquei, percebi que o termo formigamentonão era só uma metáfora. Tapas sucessivos espantaram e mataram os atrevidos insetos, deixando talvez uns poucos remanescentes. Fiquei feliz ao perceber o movimento de meu braço esquerdo, já curado. A dor oriunda das duas perseguições não havia cessado, mas ao menos diminuído. Andar se tornou mais fácil, por isso deixei aquele lugar desolado, agradecendo todos os deuses desconhecidos que outrora o habitaram.Estavam calmas, as ruas por onde trafegava. Poucas pessoas perambulavam a céu aberto na manhã que sucedeu a feira17
A primeira atitude que tomei após deixar o rato foi procurar aquele alcoice uma vez mais. Gastei tempo e saliva para achar o lugar espremido entre duas edificações de três andares. Do lado de fora estavam cinco prostitutas, incluindo a colega de Lívia que transou comigo. Fui a ela. Outros dois sujeitos dialogavam com as meretrizes na hora, mas nenhum com a tal mulher. Ela nem viu quando me aproximei e tomou um baita susto, virando-se contrariada. – Aiii! O que quer? Parece maluco! – Desejo pedir perdão pelos estranhos eventos daquela tarde. Diga-me apenas se Lívia está aí dentro. – Eu, hein? Est
Dehvorak foi até o cômodo onde devia estar o tal Icarus e de lá trouxe três novas velas para o castiçal. Acendeu-as, acompanhando a menina de pele escura e cabelos ondulados que também surgia daquele recinto. Elise fez um movimento manual e a caveira assentiu com a cabeça, ordenando que ela seguisse pela outra porta até as escadas, sendo prontamente obedecido. Rapskin recolocou sua flauta na mochila. Tinha observado bem os movimentos da garota. – Esperem só até ela crescer! – disse. Todos silenciaram à espera de mais um discurso do músico. O homem devia ser cheio de aptidões acadêmicas. As novas velas foram acesas com o auxílio das que