Três sujeitos continuaram a me observar enquanto Garpot se mantinha afastado, de costas para todos, vigiando a fenda através da câmara ligada ao aposento onde nos encontrávamos. Nada indicava que havia prestado atenção alguma aos eventos que sucederam, parecendo totalmente absorto na ocupação. Os outros reagiram com ares de estranheza que lembravam os jovens murgons da floresta, dias antes. Siley, circulando o olhar atônito à procura de respostas que explicassem o comportamento estranho dos companheiros. Dehvorak, surpreso e embaraçado diante da declaração final do rato: o único a demostrar contentamento pelo que ocorreu, admirando a situação como uma obra de arte. Sua obra de arte. Quantas outras existiriam nessa sombria coleção?
Encarei Dehvorak primeiro, procurando ignorar a presença do homem das adagas.
– Nem sei dizer o quanto sou grato pelo que fez. Não fosse sua intervenção em inúmeras situações, e eu nem estaria aqui a falar agora.
– Guarde os agradecimentos para mais tarde! Diga-me apenas seu nome, por favor!
Titubeei no momento de responder, sem saber o que pronunciar, soltando a primeira palavra que me veio.
– Er... ti... Tirenat. Valit Tirenat.
– Tirenat?Que estranho... é parente do barão?
– Como disse? Co... conhece o barão? – indaguei afobado, mal acreditando no que acabara de ouvir.
– Só de nome. Nunca vi o sujeito. Mas... ainda não me respondeu a pergunta. É parente dele? – percebendo meu espanto, a curiosidade da caveira só aumentou.
– Bom... é que... na verdade...
– Puxa vida! Quase matei um Tirenat! – o rato sorriu. – Mas que diabos um nobre estaria fazendo num calabouço murgon? Interceptaram sua caravana ou puxaram-lhe o pé durante a noite?
– Bem... eu estava... perdido e...
– Droga! Não acredito! – resmungou Siley, interrompendo minhas confusas palavras.
– Algum problema com a identidade dele, parceiro? – indagou Dehvorak.
Seu colega, entretanto, permanecia mudo, mantendo o olhar fixo na direção de uma parede. Viramos nossos rostos e percebemos que havíamos cometido um erro. Dehvorak encarregara Garpot de vigiar a fenda, esquecendo-se da porta aberta que deixamos de explorar em virtude da chegada do rato. Garpot ficara incumbido de observá-la inicialmente, mas as pedras o tiraram da função, e agora um par de olhos aparecia naquela passagem.
Era um murgon, claro. O coitado até quis fugir, mas uma adaga não permitiu, cravando-se provavelmente em suas costas, propiciando aquele grito que deve ter acordado boa parte da gruta. Enquanto agonizava de dor, a criatura enunciava uma frase repetidas vezes.
– Krudmani dunn Alkapot! Krudmani dunn Alkapot!
– Murgon maldito! Dehvorak, corte-lhe a cabeça antes que seja tarde!
– Lamento, amigo, mas acho que já é tarde! Conhece uma saída mais fácil desse lugar? Não creio que possamos deixar a gruta pelo mesmo caminho que entramos!
– Se não pretende matá-lo, deixe-me fazê-lo! – prontificou-se o rato enquanto Garpot voltava apressadamente ao aposento.
– Ele estar dando localização invasores! Este sala de Alkapot! – disse.
– E quem é Alkapot? – perguntei.
– Krudmani dunn Alkapot!Krudmani duuunnnaaaaaarghhhhhh!!!!! – o sangue do murgon inundou os trajes do rato.
– Vamos dar o fora daqui! Sigam-me! – exclamou o assassino da capa marrom.
– Conhece a saída? – indagou Dehvorak.
– Não sei! Acho que sim!
– Droga! Essa não! – Siley voltou a gritar.
Viramos os rostos novamente e notamos dois murgons que se aproximavam pela câmara das garrafas quebradas abandonada por Garpot. Eram os mesmos da situação das frutas, com a única diferença de que, naquele momento, estavam bem cientes de nossa presença, o que justificava as espadas empunhadas. Não haveria manobras evasivas desta vez.
O primeiro partiu em direção a Siley que teve tempo de desembainhar sua espada para se defender. O outro atacou Dehvorak, mas acertou apenas a parede do quarto. Garpot, que esperava sorrateiro num canto, pegou-o de surpresa, rasgando-lhe as costas com a lâmina da arma que carregava. O talho de misericórdia ficou por conta da caveira.
Siley permaneceu bloqueando uns três ataques de seu oponente até resolver atingi-lo. Girou a espada no ar mas errou o golpe. O embate permaneceu acirrado até uma adaga se cravar no pescoço da criatura verde que caiu de joelhos. Corri para o adversário trucidado por Dehvorak, roubando-lhe o instrumento cortante. Sinais feitos pelo rato, após este recolher o próprio arsenal manchado de sangue, nos levaram a sair desembestadamente em direção a fenda, sob sua liderança. Ninguém questionou.
Iniciamos então uma louca correria pelos túneis escuros, utilizando apenas a luz das lamparinas como referência. À minha frente estava Dehvorak, com Siley encerrando nossa fila. Invadíamos câmaras e mais câmaras à espera de novos adversários que podiam surgir de qualquer canto. E assim se deu quando Dehvorak percebeu o murgon coberto por uma estalagmite e o atacou, deixando-me bastante vulnerável. Afastei-me dos combatentes a ponto de notar uma fêmea me apontando sua pequena besta na escuridão. Rolei no chão e escapei do disparo, largando a lamparina no caminho.
Siley, por sua vez, avançou em direção à criatura com um grito rouco saindo da garganta, mas notou que ela repentinamente sumira. Voltei-me no sentido oposto e lá estava a maldita, com aquela arma em mãos, pronta a atirar de novo. Siley também se virou e recebeu o virote na altura do peito. Havia sangue em sua camisa quando começou a gritar por ajuda. Peguei-o pelo braço, levei-o a um buraco que julgava seguro e senti um zumbido no ouvido depois. Virote rente à cabeça. Comecei a berrar.
– “Rato do mato”! Onde está você? Precisamos de ajuda! Siley está ferido!
– Verme idiota! Não fosse por ele e já teríamos deixado essa caverna! – esbravejava o colega antes de começar a tossir.
– Acalme-se, vamos sair daqui logo! Não se preocupe!
Mas um grito ecoou em nossa direção, trazendo a criatura que corria alucinadamente erguendo uma cimitarra. Seu alvo não cairia sem luta, por isso segurei firmemente o punho de minha espada a espera do golpe inimigo.
A força que recebi, no entanto, superou minhas expectativas e por pouco não larguei a arma, permanecendo desequilibrado por alguns instantes, deixando a guarda aberta. O adversário aproveitou essa chance, desferindo-me um ataque lateral que passou muito próximo. Felizmente consegui readquirir o equilíbrio e encará-lo retesado. Novo golpe da cimitarra que defendi, contra-atacando a seguir, errando o alvo. De repente, outro berro.
– Aaaaargh! Tirenat, me ajudeeeee! – dois murgons agarravam Siley por trás.
Fiz menção de socorrê-lo, mas a cimitarra me impediu: tive de evitá-la. Mais um golpe. Dessa vez fui capaz de rebatê-lo com força a ponto de jogar a arma do oponente no chão e ao invés de matá-lo, preferi seguir na direção do colega, infelizmente tarde demais. A adaga do murgon já atravessava seu delicado pescoço, fazendo jorrar sangue por todo canto. Siley agonizou em berros ensurdecedores. Atrás dele e dos murgons estava a fêmea segurando sua besta, apontando-a para mim e disparando o virote que foi atingir o assassino de meu companheiro pelas costas. Do outro lado, o dono da cimitarra tentava me fazer um ataque surpresa, sem esperar pela súbita virada que empreendi sucedida de um golpe lateral certeiro, quase na altura do abdômen. Tratei de aproveitar a fraqueza do inimigo para atingi-lo novamente, e de maneira fatal.
Foram apenas alguns instantes, mas a luta me fez sentir algo novo, excitante. Manipulara a espada de lâmina curta com destreza surpreendente, sentindo-me capaz de outras proezas com diferentes armas. Recordações me vieram à mente durante o combate, empunhando espadas maiores contra inimigos maiores. Em seguida, tudo se misturara a imagens de feitiços, salas escuras e corredores soturnos.
Dehvorak subitamente apareceu, indicando-me um corredor. Peguei minha lamparina de volta no instante em que a engenhoca da criatura esgueirada na estalagmite disparou. O alvo era a caveira. Felizmente, esse virote passou longe.
Enquanto isso, um habitante da gruta corria em minha direção com uma machadinha. Parou a alguns passos de onde eu estava e lançou-a rente a meu braço, fugindo em seguida. Fui atrás de Dehvorak, acompanhando sua lamparina.
Entrei no túnel apressadamente, atravessando os corredores como um alucinado, suando frio, esperando pelo pior a qualquer instante. Começava a bufar de cansaço e nervosismo, com meu medo se misturando a algum tipo de revigoramento espiritual decorrente do combate. Devia ter experimentado um bom número de lutas no passado e tudo indicava que haveria muitas pela frente, caso eu sobrevivesse para isso.
Após um tempo de corrida, Dehvorak parou; fiz o mesmo. Enquanto descansávamos no canto de uma galeria, para minha surpresa, o colega perguntou pelos outros.
– Não sabe onde estão Garpot e o rato do mato? – indaguei. – Pensei que os seguisse esse tempo todo. Isso significa que estamos perdidos. – Minhas palavras eram intercaladas pela respiração ofegante.
– Tem razão, amigo! O rato realmente entrou pela passagem que nos levou àqueles corredores, mas desapareceu em sua fuga. Às vezes é difícil acompanhá-lo. Quanto a Garpot e Siley, não sei dizer onde estão. Deu tudo errado! Pegamos as pedras, mas estamos perdidos! Se não desperdiçássemos tanto tempo com as baboseiras daquele verme, certamente deixaríamos a gruta sem maiores problemas. É provável que o desgraçado consiga sair e nós não.
– Pensei que já tivesse visto Siley! Ele... ele morreu.
– O que disse? – perguntou espantado.
– Lamento... Siley está morto.
– Como morto? Testemunhou alguma coisa?
– Eu o vi morrer. Cortaram-lhe o pescoço após o disparo que varou o peito dele.
– E você nada fez?
– Tentei, mas estava em combate. Cheguei a levá-lo a uma cratera aparentemente segura, mas não adiantou! Havia muitos murgons e o pessoal tinha sumido.
– Ah! Droga! Maldito rato! – colocou a cabeça sobre os joelhos em posição de choro, mas sem emitir qualquer som de lamento, permanecendo assim por um tempo. Levantou-se e começou a abrir sua mochila.
– Pretende deixar as pedras aqui?
– Não conte com isso, parceiro! – estava à procura de algo entre os pertences.
De repente, meus ouvidos captaram um ruído. Os de Dehvorak também, ou não teria parado tão subitamente o que fazia. Permanecemos sem mover um músculo até avistarmos um vulto se erguendo entre as rochas. A fêmea da besta... caminhando sorrateira enquanto Dehvorak retirava uma adaga da mochila em silêncio. Confesso que me sentiria mais confiante se tal ação fosse desempenhada pelo rato, mestre nesses artefatos.
A criatura parou, possivelmente percebendo que estávamos a par de sua presença. Dehvorak a aguardava paciente; espada na mão esquerda, adaga na direita, deixando a lamparina bem próxima de si. Movi o corpo para trás de uma das pedras a fim de protegê-lo de possíveis disparos. Do outro lado, novos ruídos, algo estava errado.
– Dehvorak, cuidado! – gritei. – É uma cilada!
Meu colega se virou para a direção oposta a tempo de ser atingido por trás. E a fêmea já preparava outro virote! Três murgons se encarregaram de avançar furiosamente até nós objetivando fechar o maldito cerco, dois deles com uma rede e o terceiro com um punhal. Este me atacou com toda sua bravura.
Quase nem pude acompanhar direito a situação de Dehvorak, embora notasse que, apesar de machucado, ele persistia lutando para escapar daquela rede. Esperei pelo inimigo e acertei-lhe o pulso sem piedade, arrancando-lhe a arma. Um som me distraiu nas proximidades; virote batendo na pedra próxima. Busquei novamente o adversário ferido que já sumia desembestado no fundo da galeria. Fui até Dehvorak atento a novos disparos e, como o colega estava bastante embolado com os murgons e a rede, avancei em frenesi cravando minha espada na barriga de um. Retirei a lâmina no mesmo instante em que o outro inimigo se afastou, com os olhos à procura da companheira semi-escondida entre as pedras.
Mais um virote longe do alvo. Corri para trás de uma rocha, acompanhado pela caveira que ainda se desvencilhava daqueles fios.
– Perdi minha espada! – murmurou meu parceiro enquanto se protegia.
– Aaaaahhhrrrrgghhh! – um urro agonizante surgiu de onde os três murgons tinham aparecido.
– O que foi isso? – perguntei.
– Não sei, mas precisamos sair daqui! Ela está vindo!
– Atire-lhe uma adaga!
– É o que pretendo!
Antes de procurar outra arma, porém, Dehvorak me pediu que retirasse o virote fincado em sua capa. Perguntei-lhe se não seria doloroso e, diante da resposta negativa, acatei sua vontade. O objeto perfurante nem chegou a feri-lo, ficando preso à mochila, barrado pelas pedras.
Sorte nossa.
Enquanto nos protegíamos, a caveira preparava outra adaga.
– Não carregam bestas consigo? – perguntei baixinho.
– Claro que carregam! Não está vendo?
– Sabe muito bem que me refiro a vocês!
– Bom... Siley quebrou a sua no caminho e a minha está em Dralat. Além disso, não achamos que seria um peso tão necessário.
– Pensei que fossem mais experientes! – desabafei.
– Essa gruta é muito estreita. Não se pode usar a besta direito.
– Duvido que aquela murgon concorde com isso!
De repente, enquanto minha fonte de luz era apagada, berros ecoaram do fundo da galeria numa voz feminina.
– Boatani oferiti adunaga! Boatani nannati!
E continuaram.
– Boatani gratani bumbalatum budanah! Budanah!
Dehvorak me olhou numa expressão engraçada.
– O que essa maluca espera que façamos? – perguntou.
– Talvez esteja a chamar pelos outros. É possível também que queira nos distrair.
– Ou seduzir – pausa. – Para uma murgon, ela é bem atraente, ainda mais sem roupas, heh, heh!
– Diga isso ao Siley!
– Parece que estão vindo, prepare-se!
Quando fugiu em direção à rocha, na ocasião do combate, meu colega esquecera sua lamparina acesa no local, permitindo-nos antecipar a ação dos novos murgons que avançavam até nós. Suas sombras erguiam-se imensas na parede oposta, revelando que, assim como a fêmea, também usavam pequenas bestas. Os dois caminhavam lentamente enquanto os berros da colega continuavam.
– Laduni alakiii!!! Nalok nalok!!!
Permanecemos quase deitados na rocha. Dehvorak ergueu seu tronco com a adaga em mãos, atirando-a em seguida. Um grito inimigo precedeu o virote que passou acima de minha cabeça, um pouco longe. Levantei-me rápido com a espada em punho, mas o adversário já corria. Enquanto isso, de trás de uma pedra, a fêmea usufruía excelente visão da situação, apontando-me aquela maldita engenhoca. Encarei-a destemido quando fui surpreendido, apesar da distância, à espera do disparo. Do meu lado, enfim, um murgon que acabava de perder sua besta tentava desembainhar a espada do cinto, com uma caveira rugindo a sua frente.
Lembrei-me de Siley, da dor que experimentou e do fim terrível que teve. De fato aquelas criaturas gostavam mais de emboscadas do que de lutar, e eu acabara de cair numa delas, quase no topo da rocha, com o tronco completamente exposto. A pontaria de um murgon seria a diferença entre a vida e a morte. Esperei.
A besta estalou. Voei para o chão. Senti um imenso baque na mão direita e deixei cair minha espada estilhaçada. Do lado oposto, a caveira se atracava com outro oponente.
Pulei na direção dos dois enquanto a adversária aprontava mais um virote. Estávamos engalfinhados quando este atingiu o pescoço da criatura inimiga. Larguei-a, correndo para trás da rocha novamente. O murgon que fugira de mim instantes atrás já retornava com sua besta pronta, apontando-a para Dehvorak, que usava a criatura ferida como escudo.
Deu resultado. Mais um virote se estocava à massa de carne morta que um dia pertenceu àquela tribo. Um quarto oponente, que utilizara a rede e se afastara de mim, também estava de volta, prestes a me atacar. De repente parou... olhou à direita... adaga no abdômen. Virei-me na direção do arremesso e lá estava ele. Rato do mato. Sem tochas ou lamparinas; acompanhado de Garpot que mirava uma besta em outro adversário. Seu disparo foi certeiro no olho da criatura. Agora só restava a fêmea.
Procurei-a pelos arredores, mas só percebi um vulto correndo para a entrada. Acendi minha lamparina novamente, apanhei a espada de um inimigo e parti com os outros para o fundo da galeria. Dehvorak também readquiriu sua principal arma, acenando para os companheiros. Imitei sua atitude e eles me acenaram de volta, com o rato voltando a acionar sua fonte de luz.
– Parece que me deve a vida duas vezes, hein, Tirenat? – provocou-me enquanto andávamos com certa pressa.
– Somos uma equipe, não? – retruquei.
– Agora somos, bem-vindo ao grupo! Heh, heh, heh! Onde está Siley? – perguntou fitando Dehvorak.
– Morto – respondeu a caveira.
– Fala sério? Como morreu? – indagou o rato num tom curioso, sem se abalar com a notícia.
– Cortaram-lhe o pescoço depois que um virote o atingiu.
– Pobre homem! Estava tão eufórico com as pedras! Conseguiram apanhar a parte dele?
– Não – pausa indignada. – Pretende voltar lá e fazer isso?
– Talvez outro dia, hoje não... heh, heh! Estou cansado!
Garpot permanecia calado, liderando a equipe na escuridão, um pouco longe dos demais que realmente precisavam de luz.
– E então, “Rato do mato”? Conhece alguma saída daqui? – perguntei sem medo.
– Por que não espera para ver? Excesso de curiosidade pode lhe custar a vida.
– Ou salvar, heh, heh! – Dehvorak ria da própria piada.
– Não confiam em mim? Já os defendi tantas vezes! Relaxem rapazes! Logo sairemos daqui!
– Diga isso ao Siley – repeti a frase provocativa, fazendo o rato se calar.
Prosseguimos em silêncio.
--------------------------------------------------
Lembranças reais.Dois dias atrás.Caverna sim... eles sim... aqui não... isso não... O que é real, afinal? Estou sonhando de novo?Anteontem era real, mas não agora, não aqui, não essas portas. Só um sonho... eu sei... Só um sonho. Porta. Grande... ferro... pesada.Me chama.Promete segredos... sinto-me leve... flutuando.Promete segredos... Devo resistir... Segredos...Sono.A sala circular onde me encontro não existe, a12
Exato instante... já é noite. Ontem eu estava lá... hoje não... hoje aqui... no quarto... sozinho e pensativo ao som do bandolim que invade a madrugada trazendo vozes embriagadas daqueles que arriscam a vida pelo prazer. Dançam, pulam, beijam, abraçam, transam, apostam e roubam. Ontem, Dehvorak e o rato se embrenharam na cidade escura em busca de vítimas. Pelo acordo que selaram não podiam matá-las, apenas roubar. A caveira triunfou com larga vantagem. Seu adversário, no intento de tirar os méritos do oponente, alegaria ter sido derrotado pela própria embriaguez. Pelo que sei, o estado de espírito nunca serviu de diferencial entre os dois quando se tratou da atividade básica do ofício. O rato, apesar das excelentes aptidões, é um péssimo gatuno
Renascimento. De novo num quarto, mas desta vez sob a mais absoluta sobriedade, nada de portas misteriosas ou sonhos de óbito. Até quando? Perguntas inconscientes fluíam ininterruptamente enquanto um cavaleiro me observava da parede, congelado em sua vigília com escudo e lança em mãos. Um bonito quadro, sem dúvida, emoldurado em bronze, acompanhado de espadas, escudos e peles. Minha visão passeou devagar por cada brecha daquele aposento pouco mobiliado, sem ignorar o cesto de vime entupido de roupas no chão, a tina cheia d´água ao lado do amontoado de peles onde me deitava, a pequena abertura que denunciava o raiar do dia ou o homem de pé a minha frente trajando escamas e placas de metal. Seu dedo indicador procurou os lábios a fim de me fazer sinal de silêncio. Acatei a ordem, vendo-o virar as costa
Permaneci naquele cômodo o dia inteiro sob os cuidados da mulher de nome Edna. O desinteresse que li inicialmente em seus olhos provou-se uma impressão falsa, na verdade a enfermeira tinha certa dificuldade em deixar transparecer o que sentia de fato, pois era tímida. Com o tempo, entretanto, pude notar as qualidades sob sua máscara de indiferença e apreciá-la no cuidado mostrado enquanto lidava com minha dor. Além de cuidar desse corpo ferido, relatou-me experiências que vivenciou tratando de guerreiros mutilados em batalhas campais, expôs desilusões amorosas e falou do marido que jamais valorizou seu trabalho. Acabei também por revelar-lhe uma parte de meu drama, deixando-a bastante sensibilizada. Mencionei as loucuras do rato do mato, a cumplicidade em minha relação com Dehvorak, adquirida em tão p
Suspense. Tensão. Horas passavam, se estendendo através da noite. Edna bateu na porta em duas ocasiões, mas foi convencida a adiar sua aparição pelo novo dono da ausente capa dourada. A que usava agora era azul. De vez em quando meu retratista interrompia seu trabalho a fim de dar uma respirada, esticar-se e trocar palavras, retornando às atividades em seguida. Seu braço dançava, lenta ou rapidamente; movimentos frenéticos, contorções e paradas súbitas relacionadas a momentos de reflexão. A mão direita ficava boa parte do tempo escondida atrás da tela, exibindo-se ocasionalmente em suas novas cores preto e cinza, trabalhando de forma lépida. Na abertura a meu lado, pouco podia ser visto em virtude da escuridão. Os “homens invisíveis” talvez estivessem a par de meu novo esconderijo, já que atingiram os arredores do posto durante a caçada. Acordei sentindo um formigamento no rosto. Bom... tão logo o toquei, percebi que o termo formigamentonão era só uma metáfora. Tapas sucessivos espantaram e mataram os atrevidos insetos, deixando talvez uns poucos remanescentes. Fiquei feliz ao perceber o movimento de meu braço esquerdo, já curado. A dor oriunda das duas perseguições não havia cessado, mas ao menos diminuído. Andar se tornou mais fácil, por isso deixei aquele lugar desolado, agradecendo todos os deuses desconhecidos que outrora o habitaram.Estavam calmas, as ruas por onde trafegava. Poucas pessoas perambulavam a céu aberto na manhã que sucedeu a feira17
A primeira atitude que tomei após deixar o rato foi procurar aquele alcoice uma vez mais. Gastei tempo e saliva para achar o lugar espremido entre duas edificações de três andares. Do lado de fora estavam cinco prostitutas, incluindo a colega de Lívia que transou comigo. Fui a ela. Outros dois sujeitos dialogavam com as meretrizes na hora, mas nenhum com a tal mulher. Ela nem viu quando me aproximei e tomou um baita susto, virando-se contrariada. – Aiii! O que quer? Parece maluco! – Desejo pedir perdão pelos estranhos eventos daquela tarde. Diga-me apenas se Lívia está aí dentro. – Eu, hein? Est