Deixamos a câmara onde o buraco das vozes se situava e partimos para outros compartimentos. A caverna era uma mistura de túneis estreitos, pequenas galerias e passagens que não levavam a lugar algum. Certas vezes a equipe deixava transparecer sinais da mais absoluta falta de orientação e, de repente, alguém indicava um rumo qualquer, sendo seguido pelos outros com determinação canina para acabar voltando à condição inicial instantes depois. Passos tímidos, olhares atentos recheados de preocupação que passeavam por cada canto do espaço permitido pela fraca luz das lamparinas... Numa parte ou outra paravam, descansavam um pouco, examinavam o lugar, voltando a falar das pedras e fazendo estranhas perguntas a Garpot. Pelo que pude entender, ele não pertencia àquela tribo, mas tinha esparsos conhecimentos a seu respeito.
Achei incomum o fato de nenhum murgon, à exceção do guarda esfaqueado e da turba que falava pela abertura, ter aparecido em nosso caminho. Aquela gruta era grande e já tínhamos percorrido um bom pedaço dela. Evidentemente, não fazíamos ideia de sua totalidade, mas o fato é que por diversas vezes atravessamos seguimentos repetidos, encontrando nada de útil. Tudo indicava haver poucas alternativas de exploração e uma delas era a fenda das vozes. Estariam todos reunidos num ritual? Talvez até se utilizassem das pedras àquele momento, caso fossem mágicas. Enunciei tal possibilidade ao resto do grupo.
– Ele pode estar certo! – afirmou Dehvorak preocupado.
– Quer desistir? – perguntou o rato em tom irônico.
– Afinal, essas pedras valem tamanho sacrifício?
Todos responderam afirmativamente à indagação da caveira. Menos eu, claro!
– Como faremos então? Vamos até lá e arriscamos o pescoço na frente de todos?
– Não seja ingênuo, Dehvorak! Podemos simplesmente nos esconder e esperar que se espalhem. Às vezes me pergunto como ainda continua de pé.
– Ei, “Rato do mato”! Salvei sua vida ontem! Não esqueça!
– Salvei sua vida agora! Não esqueça! Aliás, salvo sua vida sempre.
Instantes transcorreram e nenhuma reação por parte dos demais membros da equipe. Estavam confusos.
– E então? O que faremos? – perguntou Siley.
– Ritual terminar, eles poder olhar celas, arriscado esperar.
– Concordo com você! Melhor caminharmos até lá para dar uma espiada. Certo, Rato?
Mal acabou de falar e a caveira percebeu que só havia quatro entre nós. O dono da capa marrom simplesmente sumira.
– Maldito! Ele sempre faz isso!
– Devíamos ter ficado de olho vivo no homem.
– Não adianta dizer isso agora, Siley! O idiota se mandou! E toda vez que desaparece acaba atrapalhando tudo.
– Ou salvando nossos lindos pescocinhos!
– Isso foi mágica? – perguntei acanhado.
– Claro que não! O desgraçado toma partido de nossa distração e se esconde.
– Como pode ter certeza de que o rato não faz mágica? Jamais alguém o viu desaparecer!
– Você também, Siley? Todo dia aparece um novo idiota para acreditar nessa lenda! Conheço o “Rato do mato” há mais tempo que você e garanto-lhe que a peste nunca fez um feitiço na vida.
– Sabe tanto sobre o homem e vive sendo enganado por ele! Não me admira que esteja sempre um passo a sua frente.
– E dez na sua, camarada!
– Por favor, perdoem-me pela intromissão, mas creio que seja hora de tomarmos uma atitude. – Tratei de encerrar aquela insensatez. – Que faremos afinal?
– Ele quer que o desobedeçamos para que, no caso das coisas darem errado, possa aparecer como um anjo vingador ou simplesmente esperar pela oportunidade de roubar tudo sozinho. Procederemos como o maldito sugeriu. Qualquer falha, o culparemos! Escolham seus esconderijos!
– Certo, amigo Dehvorak! – retrucou o murgon quase em tom de idolatria.
Procuramos por câmaras com um bom número de estalagmites, alcovas, aberturas e depressões até encontrarmos a galeria que melhor atendia nossas necessidades. Cada um se enfiou num buraco, permanecendo quase imóvel por horas a fio, com as lamparinas apagadas, evidentemente. No interior de uma abertura protegida por amontoados de pedra, frio e formigas não paravam de me atacar. Findada a euforia inicial da libertação, voltei a estranhar o fato de estar nu, pois mesmo ignorando o próprio nome, acalentei sempre a certeza de que vestimentas faziam parte de minha rotina. Permaneci tão ávido por um espelho que deixei de dar grande importância à necessidade de roupas. Uma vez superada aquela situação preocupante, eu voltaria aos pedidos, e com maior insistência.
Passado um tempinho adicional, vozes começaram a ecoar das redondezas. Meus velhos anfitriões se aproximavam. Era desagradável não entender palavras tão claras que pareciam refletir ideias tranquilas e serenas. Nada de exaltação emanando daquelas bocas imundas. Ah! Quem era eu para falar?
De repente, os ruídos chegaram perto. Passos lentos mas constantes me garantiam que a presença de murgons na área por mim ocupada era iminente. Aos poucos fui ficando mais tenso... mais apavorado ante a possibilidade de nova captura. Talvez meus companheiros resolvessem aparecer e acabar com aquela aflição, nenhum ruído deles, entretanto, só dos murgons, que já se encontravam a poucos passos de mim.
Na escuridão ficava impossível enxergá-los, mas pelos sons podia-se saber que eram dois, trocando palavras alegremente entre risos soltos. Pareciam estar comendo alguma coisa, pela forma com que suas vozes ressoavam.
Continuei imóvel na esperança de se afastarem, mas para minha surpresa, algo se acendeu no ar, emitindo luz contínua. O murgon mais próximo de mim carregava uma pedra luminosa, usando-a para atear fogo à tocha do companheiro. Diante dos dois, jaziam pequenos montes de frutas que começaram a ser consumidos assim que as criaturas se acomodaram na rocha úmida. Alimentavam-se desvairadamente enquanto conversavam em suas túnicas amareladas, bonitas até. Ambos portavam espadas de lâmina curta presas a cintos frouxos e desgastados; o dono da tocha posicionou-se quase de frente para mim. Permaneci paralisado encarando-o à espera do momento em que virasse a cabeça para iniciar minha escapada.
Meu corpo era tomado por uma aflição que se prontificava a arrepiar cada pelo, especialmente na nuca. O homem nu não pretendia ficar preso de novo e nem ser morto, ainda mais sem saber quem era. Aqueles guardas distraídos talvez carregassem nas mãos o futuro de minha existência. Além das frutas, claro!
Acompanhei cada mastigada até que o alimento acabasse. Mais alguns instantes de diálogo e de repente o rosto do murgon se virou para onde eu estava. Gelei. Voltou à posição anterior como se nada tivesse reparado. Novas palavras cortaram o ar e ambos se retiraram com suas vozes desaparecendo no breu infinito.
O cheiro das frutas chamou minha atenção para uma fome quase esquecida. Aos poucos tudo pareceu se estabilizar dentro de mim, tornando-me mais ciente de que uma longa estrada ainda me separava da tranquilidade. Na verdade, era absolutamente impossível fazer qualquer previsão sobre o futuro, pois mesmo que conseguíssemos encontrar as pedras e fugir daquela gruta ilesos, o estranho quarteto poderia querer se livrar de mim, visto que mal me conhecia. Não fosse por Dehvorak, já teriam acabado comigo ou me deixado amarrado no cárcere.
Uma pequena observação faz-se indispensável aqui. Humanos e murgons têm capacidades visuais distintas. A necessidade de luz num ambiente como a caverna onde estive é muito maior entre nós, embora eu deva admitir ter visto murgons se utilizarem de iluminação, como na ocasião descrita instantes atrás. A maior parte do tempo, porém, suas atividades sucederam na mais absoluta escuridão e poucos foram os lugares por nós explorados onde encontramos tochas acesas. Garpot, em momento mais oportuno, esclarecer-me-ia a respeito, alegando que sua espécie é capaz de captar fontes de luz em ambientes de negrume aparentemente total e aumentá-la, como certos animais fazem, embora ainda assim se utilizem de claridade em situações especiais, como ao lidar com objetos complexos. Não sei se aquelas frutas eram tão complexas assim; talvez a tocha acesa fosse apenas um luxo, quem saberia?
Longos instantes de silêncio. Aproveitei-os para recapitular os próprios conhecimentos enquanto esperava o chamado de um colega. Pensei em nomes e coisas. Tirenat. A casa. O sacrifício. Precisava fazer a conexão. Tantos dados e poucas ligações, nada fazia sentido. Outras lembranças. Eu sabia da existência de murgons, elfos, anões, cavaleiros, bárbaros, feiticeiros, o homem do retrato. Algo indicava tratar-se de um mago, dos grandes; talvez parte importante daquele imenso enigma, assim como a mulher por quem me vi quase apaixonado e o indivíduo amargurado do riacho. Investiguei lembranças fora dos sonhos... tentei o nome de um povoado qualquer e algo me veio à cabeça... Malchleg. Percebi que se relacionava às imagens da cidade em chamas que contemplei da torre de pedra. Outro nome, Galkorn, provocou-me arrepios. De novo Sarkat, Maltzon, Valit, Mauzehr, Grahard, Tirenat. Esse último bem nítido e ressonante, seguido da casa e do brasão novamente. De repente um murmúrio... outro... mais um. Notei que tais sons não provinham de minha cabeça, mas das rochas próximas. Era a voz de Siley convocando os demais a aparecer.
Esperei por alguns instantes até Dehvorak se identificar, acendendo sua lamparina, depois Garpot, e então me levantei trêmulo. Siley notou.
– Está com frio? – perguntou.
– O que acha? – retruquei sarcasticamente.
– Não esqueça que o libertamos, deve-nos respeito! Fique com minha capa! Veja se consegue fazer uso dela! – Atirou-me a vestimenta. – E livre-se dessas formigas, senão vai acabar doente e ninguém tem poção para isso!
Quem era o idiota para me falar de formigas? Certamente nunca permaneceu confinado numa cela escura cheia de bichos para picá-lo frequentemente, nem fazia ideia dos dias terríveis que experimentei naquela caverna. Bom... concedera-me uma capa com capuz para compensar. Segurei suas pontas sobre os ombros, amarrei-as em volta do pescoço e fiquei sustentando o resto que envolvia o corpo.
O linho estava meio puído mas havia bastante pano, o suficiente para aliviar o frio. Após rápidas conversas, começamos a trafegar novamente por entre as câmaras. Garpot se encarregou de guiar o resto até o buraco inexplorado das vozes, e num dado momento, tivemos de parar, apagar tudo, escondendo-nos outra vez. Mais murgons. Esperamos até se afastarem para voltar àqueles passos cautelosos.
Aproveitei a oportunidade e requisitei uma tradução da conversa que escutei sem entender a Garpot. Infelizmente ele estava longe. Mal pôde ouvir seus “parentes”.
Enfim avistamos a fenda procurada, dessa vez mergulhada em silêncio. O murgon foi o primeiro a atravessá-la, emitindo um ruído para tranquilizar os demais. Dehvorak o seguiu, acompanhado por mim. Siley foi o último.
Enquanto adentrávamos a câmara mais interessante da caverna, minha mente se perguntava sobre o companheiro desaparecido. Onde estaria o maldito naquele instante? Talvez nos vigiasse ou já até tivesse fugido em definitivo, com as pedras em mãos. Notei que as paredes do compartimento onde nos situávamos eram diferentes. Havia blocos mal empilhados, toras reunidas num canto e garrafas quebradas por todo lado. Avistei uma passagem que parecia conter algo importante. Informei isso ao resto do grupo.
Siley permaneceu na câmara anterior de sentinela enquanto os outros exploravam o aposento recém descoberto. Sim, ao contrário da maioria dos cômodos que compunham nossa gruta fria e úmida, este se constituía num autêntico quarto com armário, cama desmantelada, roupas e utensílios espalhados pelo chão. Também havia uma porta aberta. Corri para as vestimentas.
– Garpot, vigie aquela porta! – ordenou Dehvorak.
Passei minhas mãos por sapatos, camisas, calças, mantos, capas, cintos, túnicas e chapéus. Onde diabos estariam os vestidos? Examinei cada peça rapidamente e percebi que poucas eram aquelas em bom estado. Optei por uma calça de linho verde e uma camisa de lã que se adequavam bem ao meu tamanho. Peguei também o melhor cinto que pude arranjar e sapatos, voltando então à câmara anterior para devolver minha capa a Siley enquanto Dehvorak revistava o armário. Siley, por sua vez, havia sucumbido à natureza do ofício ladino e resolvido tomar parte no saque, irritando o companheiro mascarado, que ainda desfrutava a vantagem de ter iniciado aquele furto sozinho, exibindo alguns achados mais tarde. Certamente não todos.
Entre os objetos do armário estavam pequenos artefatos de argila, dois quadros, duas lamparinas, camisas e uma pequena caixa. Infelizmente, nada de armas. Siley pareceu desapontado com o fruto de sua busca.
– Não minta para mim, Dehvorak! O que mais encontrou? Lembre-se de que estamos juntos nisso!
– Quer dizer então que não confia em seu parceiro? Acha que vou lhe esconder alguma coisa? – A pergunta saiu recheada de sarcasmo.
– Não, é que... eu... só gostaria de lembrá-lo de que estamos juntos e precisamos compartilhar o que encontrarmos, assim como faremos em relação ao dinheiro das pedras.
– Diga isso ao rato quando aparecer. E lembre-se de que ainda não achamos as pedras.
– Afinal, essas pedras são mágicas ou não? – indaguei.
– É claro que são mágicas! Foram roubadas de uma caravana de sacerdotes – afirmou Siley.
– E como sabem que estão aqui? – continuei o interrogatório.
– Mas como é ingênuo, rapaz? Nós sabemos de muita coisa. E Garpot, um pouco mais. É disso que vivemos.
– Chega, Siley! Não precisa se abrir para o homem! Podemos revelar nossa história quando sairmos daqui. Isso se sairmos daqui. Que tal continuar a busca?
– Não creio que isso seja necessário – uma voz surgia de trás.
Viramo-nos boquiabertos para a entrada do aposento. Lá estava o autor da última frase, encostado no batente, a girar uma adaga entre dedos sujos. Sua mochila parecia ter aumentado consideravelmente de tamanho sob a capa marrom, e o cinto empoeirado exibia uma nova espada junto àquele arsenal conhecido. Dehvorak não se conteve.
– Rato desgraçado! Não me diga que encontrou as pedras?
– Hum... nem disse.
– Mas encontrou, não foi? Mostre-as!
– Sabe? Cada dia me convenço mais de que vocês são uns inúteis.
– Não seja presunçoso! Teríamos conseguido juntos da mesma forma! Mostre-me as pedras!
– Ei, Dehvorak! Por que age assim? Nem sabe se o homem as pegou de fato!
– É claro que pegou! Vamos, Rato! Mostre-me!
– Acalme-se, caveirinha assustada! – A frieza do homem assumiu um ar austero enquanto sua mão insistia em manipular a adaga. – Não esqueça que eu poderia muito bem ter deixado esse pardieiro subterrâneo com vocês dentro e vendido as pedras sozinho. Jamais me encontrariam novamente. Pense nisso toda vez que me acusar de agir em detrimento do grupo. Como estavam indo muito devagar, tomei a iniciativa de fazer minhas próprias investigações. O santuário deles está na outra direção. Há uma porção de coisas interessantes por lá, e murgons também. Acho que já podemos ir embora.
– Sabe chegar à superfície? – perguntei.
– Calado, prisioneiro! Esse assunto é entre nós quatro! – repreendeu o rato. – Agradeça-nos por ainda viver.
– Se estou vivo não é graças a você – retruquei.
– É mesmo? – Seus pés se locomoveram para o centro da sala, deixando-me um pouco assustado. – Pois digo a todos que o preço pela lealdade que manifestei ainda há pouco é a vida deste ser insignificante. Acho que não estou cobrando muito, estou?
Creio ser impossível descrever o pavor que me dominou àquele momento. Mesmo os demais membros do grupo foram incapazes de conter um certo espanto diante da sentença proferida pelo rato. Eu só o conhecia há horas, mas os outros já deviam tê-lo acompanhado por meses ou anos e nem assim deixavam de ser surpreendidos a todo o momento por suas atitudes. Não havia dúvidas de que se tratava de um grande canalha, mas seu comportamento era absolutamente imprevisível, podendo ser comparado ao de um louco. Infelizmente apenas comparado, pois não se tratava de uma mente insana, de forma alguma. Suas ações, embora impulsivas, viam-se dotadas do mais alto grau intelectual, num brilhantismo produzido pelo instinto e aprimorado pela experiência. Se em determinado instante faz uma piada, de repente salta no ar para atirar sua adaga, volta a rir, some, diverte-se e subitamente decreta uma sentença macabra sem perder a compostura. É claro que o maldito continuava a se entreter, talvez mais intensamente do que em qualquer outra ocasião desde que adentrou a gruta onde estávamos, e desta vez seu prazer incluiria minha morte. A intromissão inoportuna para o homem errado que deveria ser paga com a própria vida, simplesmente porque este, em lampejo diabólico, decidira aprontar uma travessura cruel, como o líder mau de um bando de moleques que, por conseguinte, permaneciam bastante confusos, parecendo esperar novas ordens do chefe. Felizmente ainda restavam as palavras para me defender.
– Por que faz isso? Nada tem a ganhar com minha morte! E vocês quatro? Ficarão aí parados aceitando tudo o que esse louco fala?
– Quieto, infeliz! – censurava-me o homem do crânio. – Rato, mostre-me logo as malditas pedras!
– Pobre Dehvorak “coração de manteiga”! Tenta desviar o assunto para poupar o coitadinho. Por acaso não ouviu o que eu disse? Quero a vida dele! Será que pedi muito?
– Não sou eu quem está desviando o assunto! Mostre-me as pedras e discutiremos bobagens depois!
– Pedras mais importantes que vida de humano! – intrometeu-se Garpot. – Pegar os pedras e sair daqui agora, murgons voltar logo.
Infelizmente o rato não desistiria tão facilmente, pois já preparava um novo discurso.
– Estão se opondo ao homem que acabou de apanhar esses objetos tão preciosos e retornou ao grupo por seguir a lealdade de seus princípios? Que tipo de importância esse verme tem para vocês? Se não cumprirem sua parte agora... Que motivos terei para permanecer fiel sabendo que podem me contrariar a qualquer instante e pelas razões mais idiotas?
– Desgraçado! Quem é você para falar de razões idiotas? Quer minha vida por puro divertimento! – voltei a me defender.
– Continuarão ouvindo o que ele diz enquanto ignoram as palavras do companheiro de longa data tão importante que já os salvou tantas e tantas vezes? A presença desse ser vil me incomoda. Peço apenas que me concedam a permissão de enterrar-lhe uma adaga.
– Você é um monstro! – continuei. – Será que não tem compaixão pela vida de um homem? Se tentar me matar gritarei tão alto que toda a população desta gruta aparecerá num instante!
– Está vendo? – intercedeu Dehvorak. – Não creio que precisemos armar tamanho estardalhaço. Nosso amigo se prontificará a pedir-lhe as mais humildes desculpas e continuaremos nosso rumo sem ele, se assim desejar.
– Admira-me o modo como consegue se importar com coisas tão vis enquanto despreza os mais nobres assuntos. Esse prisioneiro nem hesitaria em prejudicar todo nosso trabalho numa situação de perigo. Confiam tanto nele e mal sabem quem é. Creio que ao menos tenham lhe perguntado o nome. Estou certo?
– O rato tem razão! – advertiu Siley. – Nem sabemos o nome dele. – Virou-se então para mim. – Diga-me amigo! Como se chama?
– Pare com isso, Siley! Vamos logo às pedras! Podemos interrogá-lo depois, já que é um assunto vil! Tratemos das coisas nobres primeiro! Rato, as pedras!
– Está bem, Dehvorak! Você venceu! – O rato deixou sua mochila no chão e desatou-lhe as fivelas, abrindo-a. Dentro, havia um saco de lona que parecia conter os objetos tão almejados. Dehvorak e Siley lançaram-se sobre ele.
– Ser pedras mesmo? – perguntou Garpot.
– É claro que “ser” pedras! Por que não se junta a esses doidos? – Voltou a manipular a adaga assim que recolocou sua mochila nas costas, já fechada, sem o saco de antes.
– Devem valer bastante! – murmurei baixinho para mim mesmo.
– Nem imagina o quanto, prisioneiro! Muitos morreram e mataram por elas! Poucos usufruíram seus benefícios, quer materiais ou mágicos! – Não sei se fiquei mais surpreso por sua incrível sensibilidade auditiva ou pelo abrandamento da postura em relação a mim. O rato era definitivamente imprevisível. Ainda assim, não deixei de sentir um certo alívio em ver prorrogada sua sentença.
– Estamos ricos! – anunciou Dehvorak. – Ricos! Só precisamos sair daqui e em breve teremos montanhas de ouro!
– E joias! – completou Garpot.
– E mulheres! – adicionou Siley. – Muitas mulheres!
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Portas...Cercam-me, olham-me, esperam-me.Cinco.Todas enumeradas. Pesadas portas de ferro diferentes das da caverna que deixei anteontem. Não há saída a não ser por uma delas e todas me chamam, principalmente a mais próxima.Promete coisas... revelações... segredos... só precisarei abri-la. As outras apenas sussurram. Devo esperar e refletir.Lembranças me possuem... me levam... de volta à cav
Três sujeitos continuaram a me observar enquanto Garpot se mantinha afastado, de costas para todos, vigiando a fenda através da câmara ligada ao aposento onde nos encontrávamos. Nada indicava que havia prestado atenção alguma aos eventos que sucederam, parecendo totalmente absorto na ocupação. Os outros reagiram com ares de estranheza que lembravam os jovens murgons da floresta, dias antes. Siley, circulando o olhar atônito à procura de respostas que explicassem o comportamento estranho dos companheiros. Dehvorak, surpreso e embaraçado diante da declaração final do rato: o único a demostrar contentamento pelo que ocorreu, admirando a situação como uma obra de arte. Sua obra de arte. Quantas outras existiriam nessa sombria coleção? Lembranças reais.Dois dias atrás.Caverna sim... eles sim... aqui não... isso não... O que é real, afinal? Estou sonhando de novo?Anteontem era real, mas não agora, não aqui, não essas portas. Só um sonho... eu sei... Só um sonho. Porta. Grande... ferro... pesada.Me chama.Promete segredos... sinto-me leve... flutuando.Promete segredos... Devo resistir... Segredos...Sono.A sala circular onde me encontro não existe, a11
12
Exato instante... já é noite. Ontem eu estava lá... hoje não... hoje aqui... no quarto... sozinho e pensativo ao som do bandolim que invade a madrugada trazendo vozes embriagadas daqueles que arriscam a vida pelo prazer. Dançam, pulam, beijam, abraçam, transam, apostam e roubam. Ontem, Dehvorak e o rato se embrenharam na cidade escura em busca de vítimas. Pelo acordo que selaram não podiam matá-las, apenas roubar. A caveira triunfou com larga vantagem. Seu adversário, no intento de tirar os méritos do oponente, alegaria ter sido derrotado pela própria embriaguez. Pelo que sei, o estado de espírito nunca serviu de diferencial entre os dois quando se tratou da atividade básica do ofício. O rato, apesar das excelentes aptidões, é um péssimo gatuno
Renascimento. De novo num quarto, mas desta vez sob a mais absoluta sobriedade, nada de portas misteriosas ou sonhos de óbito. Até quando? Perguntas inconscientes fluíam ininterruptamente enquanto um cavaleiro me observava da parede, congelado em sua vigília com escudo e lança em mãos. Um bonito quadro, sem dúvida, emoldurado em bronze, acompanhado de espadas, escudos e peles. Minha visão passeou devagar por cada brecha daquele aposento pouco mobiliado, sem ignorar o cesto de vime entupido de roupas no chão, a tina cheia d´água ao lado do amontoado de peles onde me deitava, a pequena abertura que denunciava o raiar do dia ou o homem de pé a minha frente trajando escamas e placas de metal. Seu dedo indicador procurou os lábios a fim de me fazer sinal de silêncio. Acatei a ordem, vendo-o virar as costa
Permaneci naquele cômodo o dia inteiro sob os cuidados da mulher de nome Edna. O desinteresse que li inicialmente em seus olhos provou-se uma impressão falsa, na verdade a enfermeira tinha certa dificuldade em deixar transparecer o que sentia de fato, pois era tímida. Com o tempo, entretanto, pude notar as qualidades sob sua máscara de indiferença e apreciá-la no cuidado mostrado enquanto lidava com minha dor. Além de cuidar desse corpo ferido, relatou-me experiências que vivenciou tratando de guerreiros mutilados em batalhas campais, expôs desilusões amorosas e falou do marido que jamais valorizou seu trabalho. Acabei também por revelar-lhe uma parte de meu drama, deixando-a bastante sensibilizada. Mencionei as loucuras do rato do mato, a cumplicidade em minha relação com Dehvorak, adquirida em tão p
Suspense. Tensão. Horas passavam, se estendendo através da noite. Edna bateu na porta em duas ocasiões, mas foi convencida a adiar sua aparição pelo novo dono da ausente capa dourada. A que usava agora era azul. De vez em quando meu retratista interrompia seu trabalho a fim de dar uma respirada, esticar-se e trocar palavras, retornando às atividades em seguida. Seu braço dançava, lenta ou rapidamente; movimentos frenéticos, contorções e paradas súbitas relacionadas a momentos de reflexão. A mão direita ficava boa parte do tempo escondida atrás da tela, exibindo-se ocasionalmente em suas novas cores preto e cinza, trabalhando de forma lépida. Na abertura a meu lado, pouco podia ser visto em virtude da escuridão. Os “homens invisíveis” talvez estivessem a par de meu novo esconderijo, já que atingiram os arredores do posto durante a caçada. Último capítulo