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De fato, meu coração ainda batia dentro daquela cela pútrida infestada de ratos e baratas. As cordas de sempre permaneciam me atando os membros enquanto eu jazia no chão imundo com sangue na boca. Ao levantar os olhos, pude ver o homem que correspondia àquele monge do sonho acabado. Usava um véu sobre o rosto, deixando apenas os olhos de fora, além de capa e capuz negros presos a uma camisa larga de linho. Calça preta (também de linho) e botas marrons completavam suas vestimentas.

Atrás dele havia outro. Suas roupas se assemelhavam às do companheiro com uma reles exceção, pois sob o capuz não existia véu, mas uma máscara de madeira em forma de crânio humano. Tal indivíduo, diferentemente da sacerdotisa do sonho, não usava penas vermelhas na altura da testa, nem amuletos e enfeites ao redor do corpo. Não objetivava chamar qualquer atenção para si. Seus trajes sugeriam ações sorrateiras enquanto o intuito da máscara talvez fosse o de intimidar a testemunha inusitada ou o inimigo. Portava uma espada na mão direita e uma lamparina acesa na esquerda, assim como o homem do véu. Os dois me encaravam.

Dê uma olhada nele! Veja se pode ser útil! – a voz emanou do crânio.

E então, rapaz? Fala minha língua? – perguntou-me o outro.

Sim! Sim! Tirem-me daqui, por favor! Há dias que estou preso nessa cela sem poder mover os braços ou as pernas, comendo ratos e insetos, tendo de suportar o terrível odor dos próprios dejetos que raramente são recolhidos! Sou amaldiçoado todos os dias pelas criaturas que habitam essas paredes e desejam meu padecimento! Libertem-me, eu imploro! – A ansiedade era incontrolável naquele momento e apesar de estar debilitado fisicamente, eu ainda conseguia gritar, fazendo-o sem hesitação, pois além da chance de me salvar, havia o louvor de poder dialogar com alguém que não fosse um dos pequenos habitantes da cela ou o personagem de um sonho louco.

Quieto! Fale baixo! Quer que um daqueles monstrinhos apareça aqui? Fique calmo que iremos libertá-lo! Mesmo com esse fedor todo. – O homem do véu mantinha a conversa comigo. Seu cheiro também não era dos melhores.

Peço-lhe mil desculpas pelos maus modos! Esses murgons malditos me capturaram e estão tentando ler meus pensamentos – respondi. – Ajudem-me a sair dessa masmorra!

Ei, Dehvorak! Talvez a mágica deles seja mais forte do que imaginamos! – dirigiu-se ao companheiro que tinha a caveira sobre o rosto.

Isso! Publique meu nome para quem quiser ouvir! Já perdemos muito tempo nesse calabouço! Termine rápido o interrogatório! – O tal Dehvorak já se virava em direção à pesada porta de ferro entreaberta.

Seguiu ele então para o corredor, deixando-me a sós com o sujeito que me abordara inicialmente. Enquanto os olhos curiosos desse homem examinavam o cárcere, pude perceber sussurros provenientes da passagem. Dehvorak devia estar conversando com alguém. Minhas súplicas eram intermináveis.

Rápido! Desamarrem-me! O que estão esperando? Que os guardas murgons venham até nós e prendam todos?

Quieto! – Colocou a mão sobre minha boca categórico, o dono do véu. – Primeiramente, preciso obter respostas. Diga-me o que sabe dessa comunidade e porque está aqui!

Não seja idiota! Desamarre logo esse infeliz e ele conta tudo no caminho! Temos de sair daqui logo! Ande! – Dehvorak falava do corredor.

Sugiro que o matemos agora mesmo, por que não? Garanto que sabe menos do que aquele cadáver ali! – sugeriu uma terceira voz, desconhecida.

Não seja presunçoso, sequer o viu! – intercedeu o dono do crânio.

Ele e seu colega oculto adentraram minha cela juntos. Dehvorak embainhou sua espada, retirou uma adaga do cinto e cortou minhas amarras. Pude enfim ficar de pé para desfrutar a liberdade física que tanto almejei. Nem mesmo no desenlace da última tentativa de leitura mental por parte dos murgons, quando permaneci solto por uns instantes, tal euforia me envolvera tanto, visto que naquela ocasião a promessa de salvação era bem menos concreta.

Evidentemente, deixei de mencionar os sonhos que se constituíram na única fuga viável. Devo admitir, entretanto, que se tratava de um universo distinto onde a experiência ocorreu de forma mais branda e a liberdade que vivi foi de ordem espiritual. Ainda assim, não me era absoluta a certeza de que aquele universo fazia parte da realidade: já havia sido iludido tantas vezes que tudo se tornara um pouco confuso. Os dias de cárcere teriam profundas cicatrizes nos dias vindouros, pensava eu ao examinar o terceiro integrante do grupo.

Ele segurava uma lamparina na mão esquerda enquanto a outra ficava livre. Usava uma capa marrom, calças de linho bem largas e cobria o rosto com um pano de maneira idêntica à do companheiro do véu. Sua camisa imunda prendia-se a um cinturão repleto de adagas, terminando nas bandagens que simulavam um bracelete. Escondida na capa, uma pequena mochila, parecida com a que Dehvorak carregava. Os pés, bem protegidos em botas de couro empoeiradas, ensaiavam passos de uma dança matreira, num insulto aos espíritos do submundo. De repente, os movimentos do sujeito cessaram e seus olhos procuraram os meus.

Afinal de contas, sabe onde estão as pedras? – perguntou-me.

Então é isso que procuram? Diga-me, como encontraram essa gruta? Pelo que me consta, aldeias murgons ficam bem longe do alcance de humanos. – Mal terminei a frase e percebi a súbita chegada de um desses seres a nossa cela. Imediatamente soltei um grito.

Idiota, já lhe disse para ficar quieto! Quer que eu corte sua garganta por acaso? – um dos invasores me deteve.

Não se preocupe! Este murgon é um dos nossos! Acho que não é necessário contar como chegamos aqui. Mas e as pedras? Sabe onde estão?

Sinto em admitir que nada sei de tais pedras. Se minha vida depende desse conhecimento, então imploro compaixão e juro fidelidade. Por favor, não me mate! – Quase caí de joelhos.

Não falei, Dehvorak? É apenas um inútil jogado às moscas! Terminemos o serviço logo, antes que fique tarde! – requisitou o terceiro homem.

Ele ainda pode ser útil no caminho, não vejo porque matá-lo! Levem-no conosco! Será um aliado a mais em caso de conflito e poderemos colocá-lo à frente de todos para proteção. Se mais tarde nos atrapalhar, conceder-lhe-ei a oportunidade que tanto deseja. Por enquanto o deixaremos vivo! – ordem dada pela caveira.

O desapontamento do dono da capa marrom ficou visível. Depois de encará-lo, mirei os olhos no tal murgon escondido sob um manto azulado. Estava apreensivo quando conclamou os companheiros a continuar aquela busca. Minha pergunta seguinte foi para ele.

Diga-me! Por que prendem esses homens aqui? Pelo que sei, vocês não se alimentam de carne humana e esses prisioneiros pouco ou nada têm a lhes oferecer de útil. Por acaso trata-se de invasores? E quanto a mim? Desamarraram-me para ser torturado. Por quê? Vocês são loucos?

Eu não pertencer a esse tribo! Murgons do submundo mágica do espírito! Espírito do caverna chupa espírito do homem. Espírito do caverna mais forte espírito do homem fraco. Continuar busca pelos pedras, rápido! Murgons aparecer logo!

Mas o que essas pedras têm de tão importante? – perguntei.

Silêncio, idiota! Vamos dar o fora daqui! – Um deles me pegou pelo braço, acompanhando os outros até o corredor.

Começamos a correr sorrateiramente pela masmorra e, antes disso, um dos invasores empurrou as portas de ferro recém-abertas para encobrir nossa passagem. De súbito, uma ideia me ocorreu. A mulher do sonho poderia estar de fato presa no calabouço, assim como o homem das lamúrias. Implorei que parassem e vasculhassem melhor os corredores em busca de outras celas. Em vão. Nem me escutaram.

Aquelas vielas penais só permitiam o trânsito de um indivíduo por vez. Como o murgon era o mais apto a percorrê-las em velocidade, encarregou-se de liderar a equipe. Infelizmente, um dos intrusos conseguiu rememorar a maldita sugestão de me colocar à frente do grupo para protegê-lo de um possível ataque surpresa, mas antes de acatar essa ideia, Dehvorak me ofereceu uma poção que retirara da mochila. Bebi sem pestanejar, sentindo-me logo mais saudável, podendo então acompanhá-los sem tantas dificuldades. Lá fui eu encabeçando a trupe.

Trafeguei hesitante e apreensivo pela escuridão, desbravando-a com a lamparina oferecida por um invasor. Ao pensar em requisitar uma arma, outra ideia me ocorreu.

Sim. Eles teriam um espelho. Eis a chance de recuperar parte da memória perdida e começar a decifrar aquelas questões que tanto me perturbavam. Tão logo insinuei o pedido, fui interrompido pelo murgon aliado.

Que houve? – perguntei em voz baixa.

Ssshhh!!!!! – no mesmo instante veio o sermão.

Em meio às sombras, nesse exato momento, um grito se fez surgir. O dono da capa marrom me empurrou com a mão esquerda enquanto a direita já atirava uma adaga. Pude ouvir o urro da criatura atingida e o leve som da queda de um corpo. O humanoide com orelhas pontiagudas seguiu em disparada na direção dos ruídos acompanhado por Dehvorak. Este, ao deparar-se com o achado, soltou a declaração.

Belo arremesso, “Rato do mato”! O bicho já até parou de respirar, tamanha a precisão!

Rato do mato. Era assim que o chamavam. Duvido que existisse um apelido melhor.

Continuar em frente com cuidado! Mais guardas poder ter em corredor! – o murgon conclamava os companheiros novamente.

Lembrei-me então da pergunta presa na garganta prestes a criar vida.

Por acaso vocês não teriam um espelho?

Ficou louco? Para que quer um espelho numa hora dessas? Preocupe-se primeiro com a própria vida!

Francamente eu não pediria um espelho se fosse você! Do jeito que está pode até ser confundido com um ogro! – risadas tímidas da equipe se seguiram ao comentário do “rato”.

E uma arma? Preciso de uma arma! Não posso permanecer indefeso num lugar assim!

Nem tem o que vestir e já quer uma arma? Deixe de ser ingrato e aceite o que já lhe demos ou o próximo presente será um talho na garganta! – O rato continuou implacável ao recolher sua adaga fincada no moribundo.

Calem-se e sigam em frente, vamos!

Atendendo Dehvorak, desafiamos a escuridão funesta, atravessando encruzilhadas, revistando pequenas câmaras com pouco ou nada de útil a oferecer. Fazia um tempo que a masmorra de antes fora substituída pela gruta de teto baixo onde experimentei o contato com o pó pela primeira vez. Odores ao redor me eram bem familiares, e também certas vozes que começaram a surgir de uma fenda na parede. Nesse instante, todos pararam.

Damos uma olhada? – sugeriu um deles.

Não gosto da ideia, Siley! Nosso amigo murgon talvez seja capaz de fornecer uma tradução! O que acha, Garpot? Pode entender o que dizem?

Difícil, amigo Dehvorak! Muito longe! Chegar mais perto para entender. Chegar mais perto perigoso!

Há outras câmaras a serem exploradas! Deixemos o buraco para depois! – encerrou o rato.

Daquele momento em diante, passei a conhecer o referido quarteto. Siley era o homem de véu e capa preta que me abordara inicialmente, estatura mediana, corpo magro e andar levemente curvado. Dehvorak, dono da máscara em forma de crânio, era o mais forte dos quatro e transmitia certa segurança enquanto o murgon Garpot de cabelos encaracolados estava sempre apressado em seu semblante tenso, revelando-se a criatura mais franzina da equipe. Já o “rato” da capa marrom exibia um corpo estranhamente magro e extremamente ágil que funcionava de forma instintiva incomum a um ser humano, desempenhando movimentos leves, frouxos, às vezes até acrobáticos. Membros soltos no ar, como um boneco guiado pelo vento, absorto em sua graça singular ao dançar a música secreta dos espíritos. Isso diferenciava suas proezas físicas das de Garpot, que apesar de também se deslocar com rapidez, fazia-o de forma animalesca, lembrando macacos. Não era diferente dos demais membros de sua espécie.

Se por um lado meus companheiros se viam dotados de certa agilidade, por outro não tinham grande força. Nem mesmo Dehvorak seria capaz de manusear um montante com a devida perícia, e dentre todos podia-se dizer que eu era o mais robusto, mesmo com a perda de peso que sofri em virtude da alimentação precária. Ainda assim me faltava muito para atingir o porte físico de um grande guerreiro, embora isso não me impedisse de seguir como um homem de armas. Certas recordações estranhas surgiam subitamente naqueles instantes de tensão, imagens de cavaleiros em pesadas armaduras, lutas ferozes sobre grandes campos de cevada, execuções presenciadas pelos habitantes de um burgo. De repente me vi a contemplar as montanhas, do alto de uma torre, descendo os olhos para a cidade em chamas logo abaixo. Tal lembrança me apareceu como marco de triunfo e de decepção; era difícil explicar a confusão de sentimentos da qual fui arrebatado na presença daquelas imagens. Um leve tapa de Dehvorak se encarregou de guiar o homem sem memória ao mundo real. Considerei bem trivial a pergunta que fez a seguir.

Você está bem?

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