Levei tempo para acostumar minha visão à claridade e o corpo àquela nova situação, estranha e desagradável. Não só pingos de chuva o atacavam voraz e incessantemente, como também um ardor contínuo provocado por cordas puídas muito bem atadas visando prender-me a um imenso eucalipto. Tremedeiras de frio e desconforto proporcionado por mãos que manipulavam minhas feições sujas, vasculhando cautelosamente os adornos de minha nudez, só serviam para enriquecer aquele ritual de tortura.
De fato eu já avistara tais criaturas anteriormente numerosas vezes. Sabia com plena exatidão o que eram, mas se porventura decidisse precisar uma situação onde os possíveis encontros tivessem ocorrido, não conseguiria, pois embora desperta àquele momento, minha memória permanecia em estado semelhante ao que experimentara no sonho recém-terminado (no qual explorei a casa de um barão e percebi que não podia lembrar meu passado ou identidade). Mas a leveza espiritual de antes desaparecera, dando lugar à angústia. À dor.
E dor era o que mais influenciava a fonte dessas ideias. O frio provocado por gotículas de chuva não desviava a atenção de meu espírito, mas multiplicava o sofrimento resultante de inúmeros hematomas, uns de origem conhecida: a corda, a árvore... A maior parte, porém, parecia resultado de algum tipo de espancamento sofrido horas antes de acordar, provavelmente sem o uso de armas cortantes ou algo que pudesse me colocar à beira da morte. Quem fez isso desejava que eu despertasse consciente de meu estado e incapaz de tomar qualquer atitude senão esperar um fim lento e agonizante nas mãos da fome, quer fosse a minha ou a de alguma criatura selvagem.
Mas os seres por ali não pretendiam me comer, pelo menos naqueles instantes. Contentavam-se apenas em me examinar de forma bastante incômoda, trocando palavras ininteligíveis entre si. Um deles retirou da cinta um punhal para depois esfregar o gume na corda puída que não resistiu, fazendo-me tombar em direção às calejadas mãos de uma fêmea com orelhas pontiagudas. Era jovem como os outros e seus olhos refletiam um fascínio pela situação típico dos inexperientes ávidos em se aventurar por terrenos desconhecidos. Tal encantamento, partilhado pelos companheiros, dava-me a certeza de que ignoravam quase tanto quanto eu os antecedentes de minha condição. Os autores daquela brutalidade não se encontravam mais nas redondezas. Pelo menos até onde minha visão alcançasse.
Eu estava nas mãos de murgons. Criaturas selvagens muito semelhantes aos humanos na forma, e bem diferentes nos modos. Há incontáveis tipos de murgon por essa região. A maioria tem pouco contato com a civilização, mas um número significativo desses seres transita entre comerciantes, ladrões e vigaristas em geral. Têm baixa estatura e raramente são robustos ou obesos. Tal espécie, extremamente ágil, esconde-se facilmente em terreno selvagem, preferindo ações de emboscada a confrontos diretos com o inimigo. Muitos são nômades, por isso é raro que humanos encontrem comunidades murgons que, quando existem, ficam em territórios pouco acessíveis e bem disfarçados nas partes mais densas da floresta.
Em minha mente, porém, uma pergunta emergia inquieta. Como poderia eu saber mais da natureza dessas criaturas do que da própria identidade? Lembranças esparsas e palavras desconexas surgiam e desapareciam a todo instante, fazendo-me crer que alguém poderia estar manipulando minhas recordações. Eu não despertara completamente. Já podia ver mas não me mover, também podia ouvir mas não falar. A dor era bem forte e eu sentia calafrios. Um dos murgons me enrolou num cobertor tão logo percebeu isso.
Nem demorou para que o dono destas ideias fosse carregado por dois dos machos enquanto outros lideravam a frente como batedores ou os seguiam pela retaguarda. Andavam com uma rapidez que impressionaria qualquer humano do mundo civilizado. Seus físicos aparentemente frágeis não refletiam a força e a agilidade que possuíam. Eram quase como macacos. Subiam em árvores como se fossem escadas, desaparecendo repentinamente para ressurgir entre arbustos no instante seguinte. A maioria nem vestida estava. Suas peles assumiam tons esverdeados que variavam de um quase alvo até a cor das folhagens. Dois deles usavam trajes civilizados de tamanho bem superior ao do próprio corpo, assumindo a estranheza de crianças em roupas adultas. Todos estavam armados, alguns cobertos com mantos ou envoltos em cintas. Circulavam também entre os murgons sacolas com objetos provavelmente roubados dos humanos.
E eles prosseguiram. Troncos passavam, folhas resvalavam por meu rosto. A fraca luz solar continuava me atacando os olhos, embora gotas d´água não mais caíssem sobre a terra. Meu espírito persistia arduamente na busca de um maior entendimento da situação e enquanto o corpo era carregado inerte, a mente permanecia viva atrás de lembranças. Lembranças de qualquer natureza. Informações que me possibilitassem entender pelo menos uma parte daquilo que acontecia. E havia muitas. Palavras. Definições. Lugares, coisas, rostos. Peças avulsas de um quebra-cabeça gigantesco ainda longe de ser montado.
Era possível sentir o frescor do vento entrando por minhas narinas, trazendo os cheiros da floresta, alguns até familiares. Eu queria respirar aquele lugar, digerir sua essência – apesar de sofrer com o frio, a dor e a angústia. Um murgon então se aproximou, me encarou e sussurrou palavras enquanto colocava a palma da mão sobre minhas sobrancelhas.
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Continuo por entre as árvores, mas o céu está quase escuro... e ninguém mais me acompanha.
Estou só novamente com as folhagens.
O frio diminuiu um pouco... as dores passaram. Não há mais hematomas em minha pele branca e já sou capaz de gesticular livremente, por isso estou de pé. Sem roupas. Desarmado.
Examino o próprio corpo novamente através da claridade proporcionada por essa estranha lua cheia.
Árvores balançam, mas não sinto vento algum. Capto um timbre suave e contínuo em algum lugar à minha direita e sigo andando na direção do som, arrepiando-me ao lembrar histórias sobre o canto das harpias e das sereias, porém este parece mais uma lamúria. Aproximo-me mais. Devagar. Atento.
Há um homem à beira do riacho adiante. Está de cócoras observando a passagem da água. Olha-me de soslaio e volta sua atenção para o fluxo numa expressão profundamente melancólica.
Sento-me junto a ele que nem reage. Fito-lhe o rosto mas este continua com a atenção no líquido corrente como se eu não estivesse ali. Toco-lhe então o ombro esquerdo e o indivíduo finalmente me encara.
Ele também está nu.
Examino seus cabelos longos e lisos, seu nariz afilado, seus lábios secos e a sobrancelha espessa. Os lamentos já silenciaram, mas a angústia permanece incólume.
Tendo readquirido minha aptidão em enunciar palavras, resolvo perguntar-lhe o motivo de tamanho torpor e ele apenas abaixa os olhos. Continuo tentando arrancar-lhe informações, mas só recebo o silêncio como recompensa. Ao notar uma ameaça de desistência minha, o homem me indica uma direção, voltando seu olhar para a água sob essa crescente claridade lunar incomum.
Ele contempla o próprio reflexo. Como se buscasse nos traços faciais uma saída para a amargura que carrega. Nesse instante, uma ideia... Por que não imitar seus gestos?
Aproximo-me do riacho lentamente, temendo a revelação que está por vir. O líquido que simboliza a pureza do universo elucidará meu espírito e amenizará minha dor. Enfim encaro o monstro para conhecer sua natureza e...
Nada. Permaneço estupefato.
Esfrego os olhos, aperto-os, fito a água novamente e nada.
Não há reflexo! Ninguém! Onde está meu rosto? Quem sou, afinal? Examino os próprios braços, as próprias pernas. Estão ali. Sou um indivíduo de pele clara com uns poucos pelos no corpo! Estou vivo, mas a água não me vê. Ela não me vê!
Pergunto ao homem pela razão de tudo aquilo e nem recebo resposta. Viro-me em sua direção para constatar que estou só novamente. Não há outro além de mim nas imediações porque meu companheiro simplesmente se foi.
Volto-me para a superfície do riacho numa busca frenética por meu reflexo. Bato na água em desespero e grito pelo homem cujo nome nem conheci. Berro para todos os cantos desta terra misteriosa à espera de novas revelações. Lavo o próprio rosto, olho ao redor e decido andar na direção indicada por aquele que não mais se encontra.
Enquanto caminho pela mata densa, tento focalizar a mente em tudo que ainda posso lembrar. Minha primeira recordação é o homem do retrato, o sujeito estranho que emanava malícia por todas as partes do corpo ao pronunciar termos ininteligíveis de uma janela. Seu olhar era a mais pura expressão do ódio e do desdém que já devo ter visto algum dia. Havia algo imponente naquele semblante, uma raiva contida, uma frustração prestes a explodir em ondas de fúria intermináveis.
Logo acho uma trilha por entre as árvores e sigo. Ela termina na pequena casa de carvalho que parece oriunda de uma parábola infantil.
Posto-me diante da entrada e tento girar a maçaneta em vão. Está dura. Bato à porta algumas vezes e, como não sou atendido, forço a madeira devagar que, para minha surpresa, rompe-se de imediato, garantindo-me acesso a um recinto totalmente escuro.
Noto algo me impelindo a entrar e assim faço. Começo com poucos passos e vou aumentando o ritmo progressivamente até fazer o facho de luz oriundo da abertura que criei desaparecer por completo. Uma aura de segurança me invade quando sou abraçado pela escuridão. Sinto-me protegido das garras da floresta e do misterioso homem do retrato que pode estar à minha procura agora mesmo.
E eu que achei que essa casa fosse pequena...
Entro em devaneio no breu. O nome Tirenat me aparece novamente junto ao pergaminho e outros objetos da residência do Barão.
Lembranças recentes se apoderam de mim.
Tento parar de pensar por um instante e interagir com as forças ocultas que regem este lugar. Então algo acontece. Um ponto de luz brota do infinito, parecendo aproximar-se, aumentando de tamanho, invadindo meu esconderijo.
Viro-me na direção oposta e ameaço fugir, mas meus membros ficam subitamente paralisados. Dores intensas tomam posse de cada um deles lentamente, trazendo uma luminosidade cada vez maior e mais próxima. Sinto um forte desconforto ao ser tocado por essa estranha energia.
Nesse instante, noto uma presença, emitindo sons que tento entender, sussurros...
E água! Ahhhhgua!!!
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Minhas pálpebras molhadas se abriram e pude ver o velho murgon... frente a frente... segurando um candeeiro aceso. Sua outra mão sustentava uma tigela vazia cujo conteúdo de instantes atrás jazia em meu rosto e iniciava lenta caminhada por diferentes direções, dando preferência a pescoço e orelhas. Havia outros murgons com o velho, claro, e todos me observavam no interior daquela caverna úmida iluminada apenas pelo utensílio do sujeito. Eu, recém despertado de um segundo sonho (riacho, homem das lamúrias, etc), também os observava, examinando olhares inquietos e curiosos. A maioria das criaturas ali era jovem, aparentando ter experimentado pouquíssimo contato com gente como eu. Virei-me para a parede próxima, onde estava o enorme inseto. A escuridão era total mas por razões desconhecidas, eu era capaz de enxergá-lo. Falei com ele.– O que foi? Já não se contenta com meu sofrimento e ainda zomba de mim? Volte para o buraco de onde saiu!– Está enfraquecendo, homem! Pensa que é o único a sentir as mazelas da fome nesse breu? Todos aqui lutamos dia e noite pela sobrevivência e cedo ou tarde você tombará. Nessa hora poderei vingar todos os meus irmãos que teve a audácia de mastigar sórdida e impiedosamente. Degustarei cada pedaço de sua carne vil, beberei cada gota de seu sangue podre e farei 4
Bom... sentei-me à luz da lamparina e contemplei o moribundo. Fiz o mesmo com as próprias mãos, já livres, criando sombras na parede com os braços depois – os insetos adoraram. A cicatriz do polegar ainda não tinha desaparecido e meu corpo exibia sinais claros de inanição oriundos da comida precária. Dali a um tempo eu mal conseguiria caminhar.Estava fraco. O feitiço que rompeu minhas amarras foi momentâneo, por isso regressei àquele estado de debilidade aguda anterior. Fiquei me tocando e comecei a fazer o mesmo com o corpo pintado, sentindo cada parte de sua nudez, experimentando diferenças de textura em relação a minha pele. A dele nem pelos tinha, exceto pelas fracas sobrancelhas e pela fina cabeleira branca.
De volta à floresta.Não é real. Nem estou aqui de fato. Nada é real. Mas posso sentir. O vento, o silêncio. Estou aqui sim.Acho.De novo uma trilha. De pedras, douradas.Trilha do ouro... eu sigo... sem saber... sem lembrar... mas sigo.Batuques.A lua ilumina a mata escura e ouço.
De fato, meu coração ainda batia dentro daquela cela pútrida infestada de ratos e baratas. As cordas de sempre permaneciam me atando os membros enquanto eu jazia no chão imundo com sangue na boca. Ao levantar os olhos, pude ver o homem que correspondia àquele monge do sonho acabado. Usava um véu sobre o rosto, deixando apenas os olhos de fora, além de capa e capuz negros presos a uma camisa larga de linho. Calça preta (também de linho) e botas marrons completavam suas vestimentas.Atrás dele havia outro. Suas roupas se assemelhavam às do companheiro com uma reles exceção, pois sob o capuz não existia véu, mas uma máscara de madeira em forma de crânio humano. Tal indivíduo, diferentemente da sacerdotisa do sonho, n&
Deixamos a câmara onde o buraco das vozes se situava e partimos para outros compartimentos. A caverna era uma mistura de túneis estreitos, pequenas galerias e passagens que não levavam a lugar algum. Certas vezes a equipe deixava transparecer sinais da mais absoluta falta de orientação e, de repente, alguém indicava um rumo qualquer, sendo seguido pelos outros com determinação canina para acabar voltando à condição inicial instantes depois. Passos tímidos, olhares atentos recheados de preocupação que passeavam por cada canto do espaço permitido pela fraca luz das lamparinas... Numa parte ou outra paravam, descansavam um pouco, examinavam o lugar, voltando a falar das pedras e fazendo estranhas perguntas a Garpot. Pelo que pude entender, ele não pertencia àquela tribo, mas tinha esparsos conheci
Portas...Cercam-me, olham-me, esperam-me.Cinco.Todas enumeradas. Pesadas portas de ferro diferentes das da caverna que deixei anteontem. Não há saída a não ser por uma delas e todas me chamam, principalmente a mais próxima.Promete coisas... revelações... segredos... só precisarei abri-la. As outras apenas sussurram. Devo esperar e refletir.Lembranças me possuem... me levam... de volta à cav
Três sujeitos continuaram a me observar enquanto Garpot se mantinha afastado, de costas para todos, vigiando a fenda através da câmara ligada ao aposento onde nos encontrávamos. Nada indicava que havia prestado atenção alguma aos eventos que sucederam, parecendo totalmente absorto na ocupação. Os outros reagiram com ares de estranheza que lembravam os jovens murgons da floresta, dias antes. Siley, circulando o olhar atônito à procura de respostas que explicassem o comportamento estranho dos companheiros. Dehvorak, surpreso e embaraçado diante da declaração final do rato: o único a demostrar contentamento pelo que ocorreu, admirando a situação como uma obra de arte. Sua obra de arte. Quantas outras existiriam nessa sombria coleção?Último capítulo