Virei-me para a parede próxima, onde estava o enorme inseto. A escuridão era total mas por razões desconhecidas, eu era capaz de enxergá-lo. Falei com ele.
– O que foi? Já não se contenta com meu sofrimento e ainda zomba de mim? Volte para o buraco de onde saiu!
– Está enfraquecendo, homem! Pensa que é o único a sentir as mazelas da fome nesse breu? Todos aqui lutamos dia e noite pela sobrevivência e cedo ou tarde você tombará. Nessa hora poderei vingar todos os meus irmãos que teve a audácia de mastigar sórdida e impiedosamente. Degustarei cada pedaço de sua carne vil, beberei cada gota de seu sangue podre e farei um ninho nessa barba malfadada.
– Cale-se, criatura das trevas! Não esqueça que ainda posso devorar mais irmãos seus até terminar de vez com essa linhagem infeliz. Lembre-se de que ainda respiro e enquanto houver um sopro de vida neste corpo enfermo, não me atacará sem que isto se constitua num risco à própria vida.
– Como deve saber, a paciência de um besouro é quase inesgotável comparada a de um ser quase morto como você. Cada dia que o vejo, noto sua magreza aumentando. Prevejo para você um futuro macabro, desfalecendo lentamente ao som das criaturas que come, visto que num certo momento nem será capaz de mastigar e terá de engoli-las vivas, concedendo-lhes a chance de devorá-lo aí de dentro mesmo. Suas entranhas serão nosso alimento e sofrerá agonia bem superior a dos enterrados vivos, morrendo de dentro para fora, desfalecendo lentamente ao som das criaturas que come.
– Deixe-me, besouro imundo! Que cada pedaço meu lhe cause a pior das indigestões até torná-lo apenas uma incômoda companhia no mundo dos mortos! Ao menos estará junto dos próprios irmãos e das demais criaturas infelizes que aqui habitam. E quanto aos meus? Nem sei se lá estarão ou quem são. Agradeça aos deuses por ter uma família que pode conhecer!
Aquele inseto se preparava para iniciar uma nova frase, mas nosso diálogo foi bruscamente interrompido pelo rangido do ferro pesado. A voz que surgia era bem conhecida mas pouco inteligível. Eu não via o chefe murgon desde aquele encontro na câmara. Seu semblante não revelava boas intenções.
Trazia três acompanhantes consigo agora. Um deles tinha o corpo todo pintado e estava nu. Outro vestia uma bata rasgada, assim como o velho, e usava amuletos no braço e no pescoço. O anel que ostentava tinha um globo negro preso ao metal. O terceiro não era “ele” mas “ela”, estava nua também e segurava uma espada de lâmina curta.
Acompanhei a lamparina da criatura pintada desde sua mão até o instante em que foi colocada no centro da cela, atraindo pequenos insetos voadores. O “líder” fez um sinal para que todos sentassem e me ofereceu mais da pasta verde quando o obedecemos. Aceitei prontamente, mas tive de ser alimentado na boca, visto que minhas mãos ainda estavam atadas.
Encarei o velho no fundo dos olhos e deixei a raiva fluir.
– Olhe para mim, infeliz! Veja minha situação! Ainda tem receio de que eu reaja? Desate-me as mãos pelo menos, para que esse martírio seja mais suportável! Sei que não me quer morto, do contrário, não estaríamos nos encarando! Solte-me pela glória dos...
Meu discurso foi cortado pelo tapa da criatura. O infeliz devia sentir um prazer enorme nessa atividade. Talvez esbofeteasse alguém logo ao acordar, para ganhar fôlego e encarar o dia, repetindo a atitude após o almoço e antes de dormir. Para um murgon seria então uma grande honra receber esta palma sagrada no rosto, e neste caso eu estaria em situação privilegiada, o que não bastaria para que minhas palavras voltassem a ressoar. Melhor um profano saudável do que um santo nas últimas. Se bem que eu já devia estar nas últimas, mesmo profanamente.
O ser pintado repousou os dedos em minha testa enquanto o anel do colega era apontado para mim. A fêmea apenas observava, ouvindo as palavras que saíam da boca do velho.
Parecia uma reza. Ele parou, colocou a mão na bolsa que carregava e retirou um saco de seda vermelho. Abriu-o. Lá havia um pó branco semelhante ao do ritual da câmara. O murgon portador do anel bebeu o conteúdo de um pote que desconfiei ser a mistura que carregava meu sangue e os farelos reassumiram aquela forma espectral de novo, de modo ainda mais aterrador. À exceção do velho, todos se sobressaltaram levemente, o que encheu meu rosto de preocupação. Levantei-me para fugir, mas a espada da fêmea não permitiu, fazendo-me esperar sentado pelas partículas de olho em duas criaturas que iniciavam algum tipo de concentração enquanto o “líder” voltava a falar, e cada vez mais alto. Um uivo cortou o ar. Era a aparição, o fantasma do pó. Ele me queria. Gritei tão alto quanto pude.
A cela se tornou uma cópia do inferno. Os dois concentrados, o velho recitando palavras, o uivo, a murgon de guarda, ainda assustada. Isso sem contar com meus gritos pavorosos. Tal mistura macabra contaminou a ala inteira, tornando as lamúrias de fora berros também. Aquele ritual adquiria proporções cada vez maiores.
O fantasma frenético me encarou e soltou um grito. Tentei levantar novamente, mas algo me impediu. Senti uma fortíssima dor de cabeça; era o pó tentando rastrear minha mente. Trinquei dentes para tentar impedir o processo e comecei a sentir enjoo, percebendo então um estranho brilho emanando em minha carne. Foi quando o fantasma desfaleceu outra vez, e ao contrário da situação anterior, seus farelos não despencaram ao solo, preferindo voar fulminantemente para as paredes em todas as direções, como numa explosão.
Estranhas forças tomaram conta de meu corpo, permitindo-o romper as malditas cordas. Duas daquelas criaturas tombaram ao chão. O velho colocou suas mãos sobre o próprio rosto e a mulher murgon correu para protegê-lo. Nesse momento ela me encarou e mostrou a espada, fitando também os desfalecidos. Um tinha sangue escorrendo pelas narinas e ouvidos. O outro estava com um rombo na cabeça de onde também jorrava o precioso líquido vermelho. Estavam mortos, eu tinha certeza. Tentaram rastrear minha mente, como na ocasião anterior, mas algo ou alguém me protegeu. O fantasma falhou de novo.
Foi com rancor que a velha criatura olhou para mim dessa vez, pois a surpresa de antes se tornara um grande desafio. Talvez a dupla morta fosse seu trunfo mais valioso e o infeliz não esperava falhar na oportunidade. Nem sempre tudo sai como prevemos. A mulher se encaminhou até mim ameaçando atacar, mas o companheiro a interpelou. De certo modo, eu ainda era importante para o “líder”. Tinha de permanecer vivo até que conseguissem entrar em minha mente ou desvendar algum segredo. Mas se nem eu havia sido capaz disso, como conseguiriam? De repente aqueles seres serviriam de algum modo, poderíamos até trabalhar juntos!
Loucura total. Ficar em cárcere estava destruindo o pouco que restara de minha sanidade. O velho se dirigiu à porta e saiu; a fêmea continuou me apontando sua lâmina enquanto carregava o murgon desfalecido – portador do anel – para fora da cela. Fechou a porta e pelo som que ouvi depois, já estava trancada.
Bom... sentei-me à luz da lamparina e contemplei o moribundo. Fiz o mesmo com as próprias mãos, já livres, criando sombras na parede com os braços depois – os insetos adoraram. A cicatriz do polegar ainda não tinha desaparecido e meu corpo exibia sinais claros de inanição oriundos da comida precária. Dali a um tempo eu mal conseguiria caminhar.Estava fraco. O feitiço que rompeu minhas amarras foi momentâneo, por isso regressei àquele estado de debilidade aguda anterior. Fiquei me tocando e comecei a fazer o mesmo com o corpo pintado, sentindo cada parte de sua nudez, experimentando diferenças de textura em relação a minha pele. A dele nem pelos tinha, exceto pelas fracas sobrancelhas e pela fina cabeleira branca.
De volta à floresta.Não é real. Nem estou aqui de fato. Nada é real. Mas posso sentir. O vento, o silêncio. Estou aqui sim.Acho.De novo uma trilha. De pedras, douradas.Trilha do ouro... eu sigo... sem saber... sem lembrar... mas sigo.Batuques.A lua ilumina a mata escura e ouço.
De fato, meu coração ainda batia dentro daquela cela pútrida infestada de ratos e baratas. As cordas de sempre permaneciam me atando os membros enquanto eu jazia no chão imundo com sangue na boca. Ao levantar os olhos, pude ver o homem que correspondia àquele monge do sonho acabado. Usava um véu sobre o rosto, deixando apenas os olhos de fora, além de capa e capuz negros presos a uma camisa larga de linho. Calça preta (também de linho) e botas marrons completavam suas vestimentas.Atrás dele havia outro. Suas roupas se assemelhavam às do companheiro com uma reles exceção, pois sob o capuz não existia véu, mas uma máscara de madeira em forma de crânio humano. Tal indivíduo, diferentemente da sacerdotisa do sonho, n&
Deixamos a câmara onde o buraco das vozes se situava e partimos para outros compartimentos. A caverna era uma mistura de túneis estreitos, pequenas galerias e passagens que não levavam a lugar algum. Certas vezes a equipe deixava transparecer sinais da mais absoluta falta de orientação e, de repente, alguém indicava um rumo qualquer, sendo seguido pelos outros com determinação canina para acabar voltando à condição inicial instantes depois. Passos tímidos, olhares atentos recheados de preocupação que passeavam por cada canto do espaço permitido pela fraca luz das lamparinas... Numa parte ou outra paravam, descansavam um pouco, examinavam o lugar, voltando a falar das pedras e fazendo estranhas perguntas a Garpot. Pelo que pude entender, ele não pertencia àquela tribo, mas tinha esparsos conheci
Portas...Cercam-me, olham-me, esperam-me.Cinco.Todas enumeradas. Pesadas portas de ferro diferentes das da caverna que deixei anteontem. Não há saída a não ser por uma delas e todas me chamam, principalmente a mais próxima.Promete coisas... revelações... segredos... só precisarei abri-la. As outras apenas sussurram. Devo esperar e refletir.Lembranças me possuem... me levam... de volta à cav
Três sujeitos continuaram a me observar enquanto Garpot se mantinha afastado, de costas para todos, vigiando a fenda através da câmara ligada ao aposento onde nos encontrávamos. Nada indicava que havia prestado atenção alguma aos eventos que sucederam, parecendo totalmente absorto na ocupação. Os outros reagiram com ares de estranheza que lembravam os jovens murgons da floresta, dias antes. Siley, circulando o olhar atônito à procura de respostas que explicassem o comportamento estranho dos companheiros. Dehvorak, surpreso e embaraçado diante da declaração final do rato: o único a demostrar contentamento pelo que ocorreu, admirando a situação como uma obra de arte. Sua obra de arte. Quantas outras existiriam nessa sombria coleção? Lembranças reais.Dois dias atrás.Caverna sim... eles sim... aqui não... isso não... O que é real, afinal? Estou sonhando de novo?Anteontem era real, mas não agora, não aqui, não essas portas. Só um sonho... eu sei... Só um sonho. Porta. Grande... ferro... pesada.Me chama.Promete segredos... sinto-me leve... flutuando.Promete segredos... Devo resistir... Segredos...Sono.A sala circular onde me encontro não existe, a11
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