O Enigma do Face Oculta
O Enigma do Face Oculta
Por: Luiz Mendes Junior
1

Essa casa... está escuro aqui.

Não totalmente, claro. Há um pouco de luminosidade vindo da janela com grades.

Lua cheia? Algo não me deixa ver com perfeição. Aquela coisa branca no céu por entre as árvores. Sim... lua cheia... lá fora. Frio também. Deve estar bastante frio do outro lado destas paredes, creio. Aqui dentro está um pouco.

Devo tatear mais. Achar uma lareira e também tochas. Tochas! Preciso encontrá-las e acendê-las, mas como?

Algo se move por entre as folhagens lá fora. Um vulto que desaparece tão rápido quanto surgiu. Tenho de acender alguma coisa... preciso de fogo. Continuar tateando... continuar apalpando... até sentir... a maçaneta gelada.

Metal enferrujado... abandonado. Lugar abandonado. Eu também? Girar... abrir... rangido... luminosidade ao fundo. Luminosidade em movimento. Chamas? Verificar...

Última olhada na pequena janela gradeada do cômodo de pouco espaço que deixarei. Não há alternativa senão explorar o breu até a luz.

Passos modestos... cautelosos. Chão formado por blocos de pedra. Blocos maciços mas escorregadios de vez em quando.

Continuar caminhando... coisa suave e barulhenta sob os pés... abaixo-me para apanhar... pergaminho que não posso ler.

Chegar perto da luz... caminhar devagar... mais fácil enxergar agora... cômodo bastante grande este.

Há uma enorme mesa no centro, como num castelo. Mesa comprida e estreita.

Numa cabeceira existe um trono. Na outra, nada. Muitas cadeiras ao longo das bordas. Cálices, tigelas e um pequeno candelabro sobre a toalha que reveste o tampo.

De quem seria tal trono? Ou a mesa? Ou a casa?

Resolvo parar. Preciso pensar. Examino a labareda que brota de uma obstrução cuidadosamente construída na saliência semicilíndrica da parede. Não vejo sinais de lenha ou qualquer outro alimento para o fogo que parece simplesmente emanar do chão. Minha atenção é então interrompida pelo saldo da centelha que quase me atinge o olho.

Quem acendeu esse fogo?

Viro-me para o resto da sala. Uma espiada rápida nos oito quadros da parede oposta que seriam bem mais visíveis se estivessem próximos à lareira. Observo ao redor, em seguida. Dois candelabros maiores largados no assoalho. Um dos suportes está quebrado. Telas rasgadas também se acham dispostas pelo chão junto com livros, pergaminhos soltos, tigelas e garrafas quebradas. Nada de janelas por aqui.

Continuo a explorar. Tochas finalmente! Resolvo acendê-las com o fogo da lareira e o cômodo se revela muito mais acolhedor.

Certamente é uma sala de jantar. Grande... nada suntuosa... mas com um toque nobre.

Falsamente nobre.

O título ostentado pelo brasão pregado numa das paredes parece ter sido concedido como favor, talvez até inventado. Uma análise mais profunda nos elementos que simbolizam este estranho baronaro revela possíveis conexões como uma linhagem Tirenat. O leão, entretanto, não se encaixa bem com a simbologia da família fortemente ligada a atividades religiosas. Noto também esta cobra retorcida: esquisita e familiar. Nem seria leviano de minha parte admitir que conheço tal emblema, embora não me seja possível recapitular sua natureza.

Tirenat...

Sou incapaz de lembrar o nome de qualquer membro da família. A denominação apenas me veio quando percebi o brasão.

Culto.

No momento anterior eu podia recordar tudo e fazer uma série de conexões, mas algo subitamente se apagou em minha memória, ou talvez a recordação tenha apenas surgido e passado.

Encaro o símbolo novamente e noto haver uma estranha ligação entre nós. Percebo a possibilidade de ter visitado essa sala e jantado nessa mesa algum dia, talvez como um convidado do barão a quem o trono e a casa pertencem.

Sinto como se a primeira peça de um enorme quebra-cabeça acabasse de me ser concedida. A residência onde estou pertence a um barão que deve me conhecer, caso eu realmente tenha partilhado um banquete em sua companhia.

Procuro por um nome: o do nobre em questão. Rastreio lembranças e me deparo com um enorme abismo entre elas e minha consciência. Há algo bastante errado. Minhas recordações estão difusas. Mal consigo resgatar os eventos que antecederam este lugar, como também sou incapaz de soletrar o próprio nome ou mencionar o de um parente. Concentro-me em recapitular termos e lugares conhecidos, mas o fluxo do tempo só torna este embranquecimento maior, até expandi-lo para cada canto de minha razão. Já ignoro quem sou, idade, origem... tudo. Não tenho amigos, endereço ou ocupação. Evaporou-se até o desenho de minha face. Tal circunstância, entretanto, não me parece tão anormal. E é nesta parte que o quebra-cabeça se mostra infinitamente maior do que imaginei. De certo modo, percebo não ter sido acometido de um súbito esquecimento, mas de uma estranha revelação.

Sinto-me confusamente livre.

O embranquecimento inicial dá lugar a um vazio por onde minhas poucas lembranças remanescentes podem circular e interagir de novas e variadas formas.

Ah, sim! Há lembranças remanescentes.

Se tal apagamento fosse total, não me seria possível elaborar e traduzir os pensamentos da forma complexa que faço nesse momento.

Não! Minha mente permanece intacta. A diferença é que parece ter assumido um novo estado.

Mas quando isso aconteceu?

Ou teria ocorrido aos poucos quando adentrei esta morada?

O engraçado da situação é sentir-me ainda no controle, como um bêbado que se apercebe diferentemente das coisas e perde os receios habituais, tomando atitudes fora dos limites de sua normalidade.

Normalidade.

Sinto-me mais normal do que nunca. Mas nunca quando? Em que momento fui “anormal”, se é que isso se deu?

Em que momento estive fora daqui?

Em que momento conheci esse barão?

Em que momento comecei a esquecer?

Onde está tal homem? Tal casa? Tal mundo?

O que há fora dessas paredes ou do outro lado daquela porta afinal?

Bêbado.

Não me sinto assim e sei que não experimento tal estado familiar cujas sensações ainda me são relembráveis. Infelizmente, o mesmo não se dá em relação às circunstâncias onde ocorreram.

Mas outras substâncias também geram diferentes estados de consciência. Substâncias de nomes complexos, feitas por homens misteriosos em vestimentas esquisitas. Homens capazes de alterar o comportamento natural das coisas, que podem ler e controlar mentes, ver além dos próprios limites, invocar divindades e entidades espirituais, modificar formas ou apenas sumir. Homens como o do retrato no chão.

Ah, sim! Existem telas rasgadas dispostas pelo assoalho, além de livros, pergaminhos soltos, candelabros jogados e outros objetos espalhados sobre o chão da sala. Por alguma razão, entretanto, meus olhos não conseguem deixar tal retrato de lado. Um indivíduo calvo de feições finas e cavanhaque pontiagudo me encara sério com o olhar mais malicioso possível. Seu semblante reflete certa sabedoria misturada a um profundo rancor. O homem devia ter por volta de quarenta anos quando esta tela foi pintada. Mas a tinta... há algo estranho nela... as cores parecem... suas roupas estão... Minha nossa!!!

O retrato não se encontra mais em minhas mãos que agora tremem.

Seu rosto... está envelhecendo!

Olho em volta novamente... para a mesa... os candelabros... tudo que se encontra pelo chão... mas o retrato...

Não pode ser! O rosto é o mesmo que encontrei anteriormente! Mas eu o vi envelhecer!

O que acontece comigo? Por que não me lembro? Por que esse retrato pareceu tão vivo? Por que visto esses trapos? Como vim parar aqui?

Observo minhas mãos trêmulas. Uma delas continua retendo seu pergaminho sujo.

Olho o retrato novamente. O rosto do homem está lá da maneira que encontrei pela primeira vez.

Medo.

Ainda sinto um pouco de frio, preciso chegar perto das chamas.

Fogo.

Apanho o retrato de novo, lanço-o na lareira e ele é desfigurado quase que instantaneamente.

Aproximo-me da labareda mas não sinto o calor. Chego perto até quase tocá-la, porém não noto qualquer diferença, e o mais impressionante é que uma coisa aqui dentro me diz que isso é absolutamente normal.

Pego então um manuscrito do chão, arremesso-o contra o fogo e ele se desfaz.

Apanho um livro, repito o procedimento e este vira cinzas também.

Ameaço fazer o mesmo com o pergaminho que tenho em mãos, mas mudo de ideia subitamente.

Talvez eu deva lê-lo.

Está sujo, rasgado e amassado. Estico-o com as mãos e o aproximo da claridade.

Tem algo escrito aqui.

Eu bem que avisei.

O susto é inevitável. Fecho os olhos instantaneamente.

Tremo.

Volto a encarar a antiga pele de carneiro que já foi alva um dia. Não há mais palavras ali.

Examino detalhadamente o pergaminho. Nada escrito. Nada além de sujeira.

Sou ludibriado por minha mente o tempo inteiro enquanto cogito quanto tempo resta para amanhecer.

Parece-me que jamais haverá uma manhã. Ou um amanhã. Jamais haverá esperança novamente. O barão não retornará e este lugar permanecerá perdido e desolado pela eternidade junto àqueles que aqui estão. Presos no tempo. Fora da corrente. Esquecidos.

O fogo está me fazendo pensar e ver essas coisas. Talvez eu deva apagá-lo, depois de queimar todos esses objetos inúteis.

Há outros retratos... rostos que nunca vi. Exceto o da mulher...

Linda. Talvez eu a conheça. Sinto uma coisa estranha ao encará-la, como se fôssemos íntimos, talvez irmãos.

Talvez amantes.

Há tantos elementos estranhos nesse cômodo. Tantas anormalidades. O brasão, o rosto que envelheceu, a mensagem que nunca existiu, o fogo sem lenha que não faz calor, a mulher, os livros, os pergaminhos, minha memória, o nome Tirenat, a porta...

Quase esqueci...

Caminho até ela sem pressa e sem parar de prestar atenção no ambiente que me envolve. Retiro uma tocha da parede e empurro lentamente a madeira podre da qual o obstáculo é feito, deparando-me com um buraco ao invés de uma maçaneta. Será que ninguém pensou em consertar isso, ou estaria o lugar realmente abandonado? Certos sinais até negam isto, mas meus instintos insistem em corroborar tal hipótese.

A pequena sala onde entrei tem uma janela. Meus olhos preferem ignorá-la, e já passeiam pelas três cadeiras em torno da mesinha redonda que sustenta um amontoado de cartas e três taças de bronze, muito bem elaboradas por sinal. Tão logo examino esses recipientes, percebo haver líquido dentro deles. Viro-me então para a esquerda e noto uma escada-caracol ligando este recinto ao segundo andar, postada bem diante da porta principal que permite acesso à residência, construída com madeira de qualidade e revestida por barras metálicas resistentes.

Observo as cartas agora... estão viradas, todas. Retiro uma e verifico seu lado oposto esperando por revelações que se dão sob a forma de um ovo. Ovo... mas o que significa? Talvez renascimento... minha mente está tão limpa! Acho que nunca consegui refletir da maneira que faço agora. Quem sabe eu devesse retirar outra? Pode ser esta... vejamos... o que?

O outro lado é idêntico, como se a carta não tivesse símbolo algum e estivesse sempre virada! Seria este o significado? Algo como um espelho cujo reflexo bloqueasse uma realidade desconhecida, talvez hostil?

Viro uma terceira... que é igual à segunda!

As outras... todas... são apenas o verso... nada mostram! Que tipo de cartas seriam essas? Só uma contém símbolo, as demais...

Quem sabe se em vez do ovo eu apanhasse outra carta, o resultado teria sido diferente? A escolha que fiz pode ter... selado meu destino ou talvez nem houvesse possibilidade de optar por qualquer sinal senão o ovo.

Parece que disponho de todo o tempo do mundo para refletir a respeito. Tirenat. O nome me vem à tona novamente. Os Tirenat são religiosos. Eles são nobres e religiosos. Nobres e religiosos. Outro nome... Amadeus... Amadeus Tirenat. Pode ser o barão... pode ser o meu nome. Tenho de recordar mais... refletir... profundo... minha mente limpa... nome não importante... mente clara para descobrir... nome não importante... ovo importante... renascimento importante... barão... casa... descobrir... há uma revelação... ovo... minha mente está turva... cartas viradas... frio... ainda frio aqui... fogo da tocha não faz calor... janela... brasão... vento lá fora... escuro... retratos... janela... tenho de parar agora... janela... nada faz sentido... homem na janela... água pingando em mim... frio aumentando... homem na janela me encara... frio aumentando, estou ensopado... homem me olha da janela... homem do retrato... é o homem do retrato! Ele está lá! Está me encarando e sorrindo! Ele é mau e está sorrindo! Quero sair daqui mas não consigo mover um músculo! Está dizendo alguma coisa! Quero ouvir! Quero me aproximar... lá fora... ele está falando... não consigo entender! Estou fraco e paralisado... janela... frio... turvo novamente... revelação... maçaneta gelada... linda mulher... homem do retrato está falando... nunca amanhecerá... lugar abandonado... não consigo mais pensar... fraco e ensopado... acho que... clarão... meus olhos estão ardendo...

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