Com o coração ainda agitado pelas contrações que parecem ecoar mesmo após o parto, volto à consciência na sala de cirurgia. Pisco confusa algumas vezes, tentando enxergar alguma coisa. A luz branca forte, vinda do teto sala fria, era quase cegante. Um silêncio pesado paira no ar, quebrado apenas pelo eco distante do choro de um bebê. Meu bebê. Minha filha. Meus olhos turvos se esforçam para focar, e meu corpo ainda trêmulo parece não querer obedecer aos meus comandos.
– Deixe–me vê-la... – acho que digo, minha voz ainda completamente atordoada de dor.
As mãos da equipe médica continuam a trabalhar ao meu redor, mas há uma tensão silenciosa no ar, uma sombra que paira sobre nós. Meus olhos buscam freneticamente o rosto da obstetra em busca de alguma resposta, mas seu olhar evita o meu, uma hesitação passageira que diz mais do que mil palavras.
Então, as palavras que eu temia ouvir caem como uma sentença sobre mim.
– Luna, sinto muito. Sua filha... ela não resistiu – a voz da obstetra soa abafada, distante, como se estivesse falando através de uma espessa camada de névoa.
Meu coração se contrai em meu peito, uma dor lancinante que me faz estremecer até a alma. Não pode ser verdade. Não pode. Eu a ouvi. Eu ouvi o choro da minha filha. Eu sei que ouvi.
Uma torrente de emoções contraditórias me varre, uma batalha interna entre a esperança desesperada e a cruel realidade que se impõe diante de mim. Meu raciocínio se fragmenta, tentando juntar os pedaços quebrados dessa terrível verdade que ameaça me consumir.
Enquanto a obstetra tenta me confortar com palavras gentis, que mal sou capaz de distinguir, uma parte de mim se agarra desesperadamente à certeza frágil de que minha filha está viva. Mas a dúvida semeada pela notícia da sua suposta morte se insinua como uma sombra escura, envenenando cada pensamento, cada esperança.
Meus olhos buscam freneticamente a pequena forma envolta em cobertores, mas agora vejo apenas a quietude e a imobilidade da morte.
– Vamos fazer você descansar um pouco, ok? – A voz da obstetra puxa de volta o meu olhar na sua direção.
– Me... Me deixe segurá-la – peço. – Só uma vez. Por favor.
– Você não pode lidar com isso agora.
– Mas... mas...
Rapidamente sou invadida por uma onda de sono gigantesca, e me dou conta de que estou sendo medicada. Ou dopada. A consciência vai se esvaindo aos poucos, meus olhos já não conseguem permanecer abertos.
Os murmúrios das enfermeiras preenchem o ar. Primeiro parecem bem distantes. Mas suas vozes vão se tornando mais altas e claras à medida que vou voltando a consciência. Não abro os olhos, mas tenho quase certeza de que estou no quarto agora.
– Você não sente um pouco de pena? – Uma das vozes ia dizendo. – Tão nova e completamente sozinha nesse quarto de hospital. Ouvi dizer que ela não tem ninguém. Que o pai da criança a abandonou quando descobriu que estava grávida.
– Pena por quê? – Uma voz cortante responde. – Aposto que na hora de abrir as pernas ela estava gostando muito... – ouço a risada das duas. – Ela deveria era ficar grata por não ter que cuidar de uma criança aos vinte anos. Ela não tem dinheiro nem para pagar por esse quarto, sabia? É uma cortesia. Imagina para sustentar uma recém-nascida. Você não tem que ter pena. Pense que estamos lhe fazendo um favor.
– Olhando por esse lado... – a outra mulher reflete. – Provavelmente foi melhor para a criança.
As palavras me atingem como punhais. Mulheres podiam ser muito cruéis, especialmente para julgar outras mulheres. Elas não sabiam nada da minha vida, não sabiam nada da minha história! Eu podia ter meus problemas, e eles eram muitos, mas... Ficar grata por perder minha filha? Ser melhor para ela ter morrido?
– Com certeza.
– Ainda assim, uma mãe perder sua filha... isso é cruel.
Sim, era cruel demais! Mas não digo nada. Permaneço com os olhos fechados, abalada demais para entrar em um conflito naquele momento e ainda bastante confusa por causa de todo aquele sedativo.
Além do mais, a enfermeira disse que eu estava nesse quarto por uma cortesia. Cortesia do hospital? Eu não queria ser mandada embora ainda. Precisaria de muitos sedativos de antes de conseguir lidar com a dor. E nem era a dor física que me incomodava mais.
– Você é nova aqui. Vai aprender que não existe isso de crueldade quando a conta for paga pelo do Grupo Oeri.
Grupo Oeri. O nome ressoa em minha mente como um sino distante, despertando uma sensação de alarme e desconfiança. Por que o Grupo Oeri estaria pagando a conta do meu parto? E o que isso tem a ver com a morte da minha filha?
– Vai render uma boa quantia... – a enfermeira mais velha continua. – Acho que finalmente vou poder tirar umas longas férias – ri. – Te recomendo fazer o mesmo.
Um calafrio percorre minha espinha quando a verdade dolorosa começa a se insinuar em minha mente confusa: minha filha não está morta. Eu tinha a ouvido chorar, era real. Ela não estava morta. Ela foi roubada. Mas... roubada por quem? E por quê? As enfermeiras... elas estão envolvidas nisso. Elas sabem o que aconteceu com minha filha.
Enquanto as mulheres continuam a conversar, alheias à tormenta que se desenrola dentro de mim, uma coisa fica clara: eu farei qualquer coisa para encontrar minha filha. Custe o que custar. Porque enquanto houver uma centelha de esperança dentro de mim, enquanto eu puder ouvir seu choro ecoando em minha mente, eu não descansarei até tê-la nos meus braços.
– Grupo Oeri... – as palavras deixam meus lábios sem autorização. Preciso ter certeza de que jamais esquecerei aquele nome, não importe o quão confusa minha mente ainda estivesse no momento. – Grupo Oeri...
– Acha que ela ouviu alguma coisa? – A primeira enfermeira pergunta, com a voz ligeiramente assustada.
– Aumente a dosagem do sedativo – a outra a orienta. – Ainda que tenha ouvido, não vai se lembrar de mais nada quando acordar.
Mas eu me lembraria.
– Grupo Oeri...
Seis anos. Eu tinha passado seis anos comendo o pão que o diabo amassou, mas eu cheguei naquele momento: o dia de dar o primeiro passo em direção a minha vingança e recuperar minha filha.Quando sai do hospital, recebendo um atestado de óbito e tendo visto o corpinho morto de uma criança que em nada se parecia comigo, tentei voltar para a casa dos meus pais. Mas não fui bem recebida. Não eu, a garota que tinha machado a reputação da família ao perder a virgindade antes do casamento com um homem qualquer, engravidar e decidir ter aquela criança mesmo que o pai tenha me abandonado no instante em que soube da gravidez.– Mas... Você tem certeza de que é meu? – Lembro-me dele perguntar.– Como pode perguntar isso? – Respondi, indignada. – Você sabe que foi o primeiro!– Sei que fui o primeiro, mas não posso ter certeza de que fui o único.Lembro-me de ter virado a mão na cara dele. E foi a última vez que o vi.Então, quando tentei voltar para casa naquele dia, a única resposta que tive fo
– Você? – Joyce tenta conter um risinho. – É competente de mais para esse emprego.– Competente demais para ser secretária e competente de menos para a vaga na minha área? – Franzo a testa. Resolvo ignorar Joyce e falar diretamente com Vitor Oeri. – Quero entrar para o grupo Oeri. Sempre foi meu sonho. Se tiver que começar de baixo e aprender as coisas de dentro, não tenho problemas com isso.– Se conseguir acessar o computador da Camilla e imprimir o arquivo que preciso, está contratada.– Eu consigo – garanto.Apesar de que... invadir o computador de outra pessoa não era exatamente a função de uma secretária. Mas eu estava com sorte. Um dos meus melhores amigos da faculdade era hacker e tinha me ensinado alguns truques. Eu não acreditava que a senha dela fosse ser algo muito difícil de quebrar. Não uma senha de um computador de trabalho.– Ótimo. Venha comigo.Vitor Oeri era tão intimidante quanto diziam todas as milhares de reportagens que eu tinha lido sobre ele. Quando ele passav
O problema é que ninguém me treinou. Assim como o emprego na área de engenharia, provavelmente era esperado de que a secretária do senhor Oeri tivesse qualquer experiência além de conseguir resgatar um arquivo no computador e imprimi-lo. Mas eu não tinha. Não sabia nada sobre como ser uma secretária eficiente.Por sorte, ou não, Vitor Oeri gostava muito, muito de mandar. E não gostava quase nada de repetir suas ordens. Então, não demorei a aprender que, todo dia pela manhã, Victor gostava de encontrar seu café esperando por ele junto com a cópia do seu jornal favorito (porque sim, ele ainda lia jornal impresso). Depois disso, basicamente eu passava o dia atendendo telefone, agendando suas reuniões e compromissos, e revisando e imprimindo papeladas.– Sai logo daí, pirralha! Até parece que nunca entrou em um elevador.Meu coração pula uma batida quando ouço a risada de uma criança. Clara Oeri entra correndo pela sala de espera e se joga em um dos sofás de couro, como se estivesse acost
A coisa toda vira um caos depois daquilo. Vitor e Marina gritando um com o outro, Clara chorando, o telefone tocando insistentemente... Eu só pego Clara pela mão e a puxo para dentro da sala de Vitor, tentando poupá-la ao máximo.Depois de alguns minutos, tudo fica silencioso. Abro a porta lentamente para verificar o lado de fora... eles não estavam mais lá.– Tudo bem, já passou – digo para ela. – Gosta de desenhar? – Ela concorda com a cabeça.Coloco Clara sentada na cadeira de Vitor e abro as gavetas e busca de papeis e algumas canetinhas. Acabo me deparando com o motivo de todo o estresse por parte de Marina. Papéis de divórcio.“– Eu não vou assinar. Não vou.” – Lembro-me dela dizendo.De fato, só tinha a assinatura de Vitor.– A curiosidade matou um gato, senhorita Castilho... – me sobressalto, com Vitor parado na porta, me observando. – Sendo tão gata, deveria tomar mais cuidado com o que espiona.Sinto minhas bochechas corarem. Ele consegue fazer com que sua frase soe tão amea
Eu congelo no lugar. De todas as coisas que Vitor pudesse querer falar comigo, eu não imaginava que esse fosse ser o assunto. Será que ele estava... fazendo conexões? Até que ponto ele poderia imaginar que eu era a garota naquela sala de cirurgia de quem ele deu a ordem para roubarem o bebê recém-nascido?– Acho que vai precisar disso... – ele aponta para um copo de whisky, estrategicamente posicionado. – Sente-se.– Não acho que eu deveria beber em horário de serviço, senhor Oeri – digo, apesar de caminhar em direção a cadeira que me é indicada e me sentar.– Vitor – me corrige, me autorizando a chamá-lo pelo primeiro nome. – Já passou muito do seu horário de serviço hoje, Luna – já ele, não espera por uma autorização para deixar de usar meu sobrenome. – Além do mais, se seu chefe diz que você pode beber, você pode beber. A não ser que não goste de whisky... posso providenciar...– Trabalhei em um bar... – conto, segurando o copo e admirando a bebida antes e experimentá-la. – Quando
– Senhor Oeri, o senhor... – É só a bebida falando... – ele se desculpa. – Vou te levar para a sua casa. Eu respiro fundo. Queria pontuar que não era preciso, que eu podia pegar um ônibus. Queria pontuar que Vitor tinha tomado dois copos de whisky e que provavelmente não deveria estar dirigindo. Queria pontuar que era um tanto desconfortável ficar perto dele quando ele falava coisas como “a não ser que você prefira ir para a minha casa”. Mas eu conhecia muito bem a fama de implacável daquele homem, ele quebraria qualquer um dos meus argumentos em dois segundos. Então, eu só deixei... – Tudo bem... – concordo baixinho. O carro do Vitor era um Porsche Cayenne do ano, o que me fazia ter medo de respirar perto dele e causar algum dano, o que dirá entrar! Então, eu simplesmente fico parada, olhando para a porta. Isso faz com que Vitor contorne o veículo, saindo do lado do motorista, e abra a porta pra mim, fazendo um gesto exagerado com as mãos para indicar que eu entre. – Senhorita...
Ele me ouviu? Vitor Oeri me ouviu dizer que eu o achava gostoso? Quando me viro, lentamente, o sorriso presunçoso em seu rosto é a minha resposta: ele ouviu. Sinto minhas bochechas corarem imediatamente.– Você esqueceu isso... – ele segurava a sacola da loja chique de cosméticos, com o creme que tinha me dado de presente. Não foi uma desfeita. Eu sai tão desesperada do carro que teria esquecido qualquer coisa.– Obrigada – pego a sacola, e permaneço o encarando, torcendo desesperadamente para que ele me dê as costas e vá embora.Mas ele não o faz. Rapidamente Henry está de volta, trazendo nossas tequilas e Vitor recebe suas duas taças de vinho. Ele me oferece uma.– Espero que não seja um dos que você considera barato – diz, em uma referência a nossa conversa de mais cedo.– É um Trapiche Malbec – Henry responde, soando um pouco ofendido.Vitor dá de ombros, como se não se impressionasse muito. Com certeza não passava nem perto de um dos seus favoritos, mas acho que ele não estava es
– O quê? – Pergunto, parando de dançar. Meu corpo reluta. Ele já estava completamente entregue aos comandos de Vitor.– É que eu realmente preciso... – ele tira o celular de dentro do blazer. – Preciso retornar essa ligação. Tem algum lugar silencioso onde eu possa fazer isso?– Ah! – Digo, percebendo que fico um tanto decepcionada com a explicação. – Claro, vem comigo.Sigo com Vitor para as escadas e descemos até meu pequeno apartamento. É meio constrangedor, mas pelo menos era organizado e limpinho. Aponto para Vitor a porta do quarto, falando que ele pode ficar à vontade, enquanto permaneço na sala/cozinha. Ainda assim, era impossível não o ouvir, nervoso. Algo sobre o divórcio.Quando ele desliga e volta a sala, está totalmente irritado, passando a mão pelos cabelos daquela forma que ele