Senti o rosto queimar na hora, mas ainda bem que a penumbra estava a meu favor: a única luz vinha do poste lá fora, e isso graças ao zelador preguiçoso que nunca trocava as lâmpadas que queimavam. Fechei a cara. Uma vez na vida, sou grata por essa escuridão toda, e até pelo tempo sem lua.Pelo menos, a cara vermelha ele não veria. Alexander soltou aquele “eu sinto sua falta” e virou como se nada fosse. Respiração já ritmada. Dormindo feito uma pedra, enquanto eu aqui, quieta e com o coração acelerado, lutando para não dar nem um sorrisinho no escuro. Porque eu também sinto falta dele. Ou melhor, sinto falta das coisas ridiculamente irritantes dele. Olha só que ironia. E, Deus me livre, se isso cair na categoria “amor”!Respirei fundo, encarando a silhueta dele, mesmo sem ver direito. Seria mentira dizer que não pensei nele esses anos todos. Claro que pensei, mas de um jeito… bom, vamos dizer, nada romântico. Por exemplo, toda vez que vejo ameixa no mercado, lembro que ele odeia. Até
Estávamos ali, lado a lado no sofá, ele compenetrado no laptop e eu fingindo assistir à TV. O silêncio confortável, até que a pergunta escapou antes que eu pudesse evitar:— A sua mãe sabe que você está morando aqui?Ele mal ergueu os olhos, com aquela frieza costumeira.— Por que ela deveria saber?Revirei os olhos, sem me importar se ele visse.— Porque, se soubesse, já teria invadido meu apartamento com aquele clube de senhoras chiques dela. Ia me chamar de ladra do filho precioso, ou alguma outra bobagem.Alexander suspirou e respondeu com uma tranquilidade perturbadora:— Ela não ousaria falar mal de você de novo.O encarei, cética.— Como isso é possível? Ela cortou a língua?Dessa vez, ele levantou o olhar para mim com uma paciência fria, como se a explicação fosse óbvia demais para discutir.— Porque você está acima dela agora, Charlotte. É a esposa do CEO. Ela depende da minha… generosidade. — Ele sorriu, um sorriso quase imperceptível. — Nem um cachorro morde a mão que o ali
— Por que você está sorrindo? — perguntei, estreitando os olhos enquanto descíamos na escada rolante abarrotada de gente. — Está feliz com o desfile de olhares te admirando? Alexander me lançou aquele olhar indecifrável, misto de tédio e diversão, que sempre fazia meu estômago revirar de raiva. Ou outra coisa.— Só estava me lembrando de como você me arrastava por aí quando éramos mais jovens. Sempre dava um jeito de me enganar para comprar besteiras pra você.Fiz uma careta. Eu sabia exatamente do que ele estava falando, mas não iria admitir tão facilmente. — Não seja ridículo, Alexander. Você adorava aquelas "besteiras". Ele arqueou a sobrancelha, como se dissesse "sério?". E foi nesse momento que me veio à cabeça uma versão mais jovem de nós dois, uma que parecia tão distante que beirava a fantasia.Quando Alexander foi morar na minha cidadezinha, eu tinha apenas oito anos. Ele, com doze, parecia um príncipe deslocado, ainda que pálido, magrelo e assustadoramente frágil. O fi
Quando Alexander abriu a porta do restaurante, meu estômago deu uma cambalhota. Não porque eu estava faminta ou impressionada com o lugar — embora fosse o tipo de ambiente em que até as luzes pareciam mais caras que minha roupa inteira —, mas porque eu sabia o que estava por vir.Ele entrou com aquela postura calma e confiante que só ele sabia ter, e, como sempre, ajustou os passos aos meus, como se fosse uma espécie de dança ensaiada. Era irritante como ele parecia sempre saber o que eu precisava, mesmo que eu não admitisse. A garçonete nos levou a uma sala privada, decorada como se tivesse saído de uma revista de design. Havia algo reconfortante e opressor ao mesmo tempo naquele ambiente — ou talvez fosse só a presença dele ao meu lado. Alexander parou, fazendo um gesto sutil com a mão para que eu entrasse primeiro. Respirei fundo, enchi o peito de coragem e atravessei a porta, tentando não parecer tão nervosa quanto me sentia. Dentro da sala, duas pessoas estavam sentadas, olha
Quando o caos finalmente cedeu espaço ao silêncio, senti os braços de Alexander envolverem meus ombros. Não era um abraço qualquer; era firme, quase possessivo, como se ele quisesse me impedir de desmoronar ali mesmo. Encostei a cabeça em seu peito, incapaz de lutar contra o conforto inesperado daquele momento.Ele afagou meu cabelo com uma mão, enquanto a outra dava leves toques em minhas costas. Sua voz baixa e rouca soou no meu ouvido, causando uma reação involuntária que detestei admitir: — Você foi corajosa hoje. Termine o que começou e vamos para casa. Pisquei rapidamente, tentando segurar o que restava da minha dignidade. — Já terminei.Ele apenas assentiu, mas antes que eu pudesse processar o que estava acontecendo, virou-se para a mulher e o sobrinho que ainda estavam ali, observando a cena com olhares curiosos e, no caso dela, completamente desprovidos de emoção. — Pode ir agora — sua voz não era cruel, mas havia algo nela que não deixava espaço para objeções. — E se
Foi a pior ideia do mundo escolher aquele restaurante. Mas, no meu currículo de decisões catastróficas, já não era novidade. Mesmo que eu cancelasse a reunião, os abutres da imprensa iriam continuar farejando, especulando e, claro, infernizando Alexander por minha causa. Já tinha bagunçado tudo, então o mínimo que eu podia fazer era limpar a sujeira. Joguei meu crachá de jornalista em volta do pescoço, segurei meu gravador como se fosse uma arma e segui para o restaurante. Estava vestida casualmente, mas o acessório dava o toque de “estou trabalhando” que eu precisava para passar pela horda de jornalistas sem levantar suspeitas. Eles me ignoraram, provavelmente acreditando que eu era só mais uma jornalista desesperada atrás de um furo.Alexander, como sempre, estava impecável e inalcançável, sentado perto da janela, imerso no cardápio, como se o restaurante não estivesse explodindo de gente tentando capturar um vislumbre dele. Seus ombros relaxados e o olhar atento às letras no pape
Enquanto eu olhava para ele ali, sentado na beira da cama como uma estátua paciente, percebi que minha madrugada havia se tornado uma das coisas mais surreais que já experimentei. Primeiro, o pesadelo. Depois, Alexander, me observando como se estivesse em missão — não para me proteger de monstros sob a cama, mas talvez dos meus próprios. Quando chequei o relógio, já passava das três da manhã. A insônia não me incomodava tanto quanto o fato de Alexander ainda estar ali, imóvel, como uma estátua preocupada.— Parece que você não consegue dormir — ele disse, quebrando o silêncio. — Quer que eu traga um copo de leite morno?Eu franzi o cenho, confusa.— Espera… você está aqui esperando eu dormir?Ele assentiu, como se fosse a coisa mais natural do mundo.Sério, como funciona a mente desse homem? Ele não poderia simplesmente dizer: “Charlotte, vou ficar aqui até você adormecer. Quer que eu apague a luz?” Porque, convenhamos, ninguém dorme bem com a luz acesa, brilhando mais que o sol.Mas
Eu ainda estava na banheira, deixando a água quente aliviar minhas tensões, quando ouvi batidas leves na porta. Era claro que só poderia ser Alexander. Sua voz calma atravessou a madeira com precisão cirúrgica. — Charlotte, seu telefone não para de tocar. Acho que pode ser urgente. — Quem é? — perguntei, tentando soar indiferente. — Um número não registrado. Eu bufei, irritada com a interrupção, mas a curiosidade venceu. Enrolei-me na toalha e abri a porta. Alexander estava parado ali, com o celular na mão, impecável como sempre, mesmo àquela hora da manhã. Peguei o telefone com um aceno e olhei para ele. — Atende e põe no viva-voz, minhas mãos estão molhadas. — Fiz um gesto vago com a toalha, fingindo casualidade. Ele obedeceu, e a voz que emergiu do outro lado era masculina, educada e… familiar.— Alô? Charlotte? Meu nome ecoou, e uma pontada de surpresa percorreu meu corpo. — Sim, sou eu. — Minha resposta saiu mais ríspida do que eu pretendia. — Bonjour, aqui é Nadir Duboi