Todos os dias pela manhã eu vou ao boteco da Shirley para tomar o desjejum; ali eu tenho, praticamente, uma mesa cativa; quando não chove ela fica instalada na calçada onde costumo sentar-me olhando o movimento da rua enquanto beberico café, a deliciosa infusão tão típica do Brasil.
Na época em que inicio essa narrativa, eu morava em um pequenino apartamento num bairro residencial de classe média na cidade do Rio de Janeiro; como vivia sozinho, o espaço que ocupava era mais do que suficiente. O apartamento era pequeno, porém bastante aconchegante. Havia quatro cômodos na habitação: Uma sala com um sofá, duas poltronas, uma estante com vários livros e um aparelho de TV; um quarto com uma cama de casal e um guarda-roupa; uma cozinha minúscula, mas com um fogãozinho de duas bocas, alguns utensílios para fazer comida, uma geladeira duplex e um forno de micro-ondas; contíguo ao quarto, um banheiro com Box; o prédio possuía também uma garagem onde guardava o meu carro. Quando comprei o apartamento, muitos amigos condenaram-no por ser muito pequeno, mas como eu não pretendia dividi-lo com ninguém, achei-o ótimo.
Na verdade, eu sempre fui um solteirão convicto; aos quarenta anos ainda sou um lobo solitário que vago pela cidade caçando notícias e informações! É que trabalho como “freelancer” para vários jornais, vendendo historietas e crônicas sobre o cotidiano das pessoas. Com certeza meus escritos devem fazer sucesso, pois sempre que eu os produzo consigo colocá-los em alguns jornais de boa circulação com certo retorno financeiro; isso me propicia uma renda mais do que suficiente para minha subsistência, e até mesmo para economizar em uma boa poupança, pois meus hábitos são simples e a minha natureza livre e aventureira nunca se prendeu a laços sociais ou empregos fixos que tolhem a constante necessidade de novas aventuras.
Foi assim que consegui juntar um capital bem razoável o qual eu pretendia gastar na compra de uma propriedade em alguma cidade num raio de, no máximo, três horas de carro desde a minha morada atual. É que eu tinha a pretensão de escrever um livro e precisava de sossego, espaço e privacidade para cumprir o meu intento.
Por isso, na manhã em que começo a narrar esses fatos, eu estava consagrando o domingo às delicias do “Il dolce far niente”,[1] saboreando o delicioso café com rosquinhas da Shirley; ao passar os olhos nos classificados do jornal matinal na esperança de encontrar uma boa oferta para um pequeno sítio no interior, o anúncio que transcrevo abaixo, suscitou, sobremaneira, a minha atenção:
“Oferta de ocasião: Propriedade antiga estilo “Segundo Império”. A casa já foi moradia de barões do café. Belo sobrado. Salão com 45 metros quadrados, oito quartos, cozinha espaçosa, banheiros com água quente; piso em madeira de lei. Possui fogão à lenha e forno para assar pão; terreno com dez mil metros quadrados arborizado com árvores frutíferas e ornamentais. Já foi reformada com gosto, requinte, preservação e restauração. Excelente para hotel ou pousada. Verdadeira pechincha. Preço a combinar. Procurar Aurora no seguinte local...” E dava um endereço com telefone para contato.
Não sei por que senti uma enorme curiosidade para visitar aquela propriedade. Sem pestanejar peguei o celular e liguei para o número que constava do classificado. Do outro lado da linha uma voz feminina me atendeu:
― Pois não?
― Gostaria de falar com dona Aurora.
― Ela mesma. Quem é?
― É sobre o anúncio do jornal. Estou interessado na sua propriedade...
Conversamos por alguns minutos e marcamos encontro para as dez horas. O endereço era pertinho da minha casa.
Às dez horas em ponto cheguei ao edifício onde dona Aurora morava. O porteiro me anunciou pelo interfone e subi para a entrevista com a proprietária da chácara.
Dona Aurora recebeu-me na sala. Era uma senhora austera e muito educada. Fomos diretamente ao assunto: A casa ficava na cidade de Samambaias, a cerca de 120 quilômetros. Ela era a viúva de um general de exército e alegava que o marido gostava muito do casarão, mas de repente adquiriu, sem mais nem menos, uma doença grave da qual veio a falecer. Não tinham filhos nem herdeiros diretos e, desgostosa, não queria voltar à propriedade que tanto lhe lembrava o falecido. Estava vendendo a casa com toda a mobília e a biblioteca. Só que queria o pagamento à vista.
O preço para venda era muito tentador e como relutei um pouco ela baixou ainda mais um pouquinho. E aí não pude resistir à tentação de ser proprietário de um casarão do século XIX. Minha poupança era suficiente para adquirir a casa e ainda sobrava uma quantia razoável. A única exigência que a dona fez era manter o caseiro, que já tinha mais de oitenta anos e nascera ali.
― Ele já faz parte da história da casa ― disse dona Aurora. ― Viveu a vida inteira na chácara e não tem para onde ir... Tirá-lo da propriedade agora seria uma maldade!
Como eu precisaria mesmo de um caseiro, não vi inconveniente em manter o existente, já que vinha executando o seu papel por tanto tempo e dando conta do recado; portanto concordei com ela.
Fechamos o negócio! Pagamento à vista como ela queria, ou seja, um sinal como entrada e o restante dali a alguns dias, na assinatura da escritura definitiva. Naquele mesmo momento ela redigiu o documento de promessa de venda que já se encontrava pronto no computador, bastando somente ser completo com o nome e os dados do comprador. Dei o cheque no valor combinado e marcamos encontro para o dia seguinte no escritório do advogado dela para tratarmos da papelada. Que mudança radical! De um minúsculo apartamento para uma mansão de oito quartos... Coisas da vida!... Os extremos se tocam! O que os meus amigos diriam agora?
A semana seguinte foi de corre-corre para resolver os problemas e pendências legais, levantar o dinheiro dos fundos de investimento e outras providências; o advogado tinha procuração dela e eu também lhe outorguei os direitos representativos para tratar da escritura de forma que na sexta-feira tudo estava pronto e eu era o proprietário de um baronato que havia adquirido no escuro, isto é, sem vê-lo ou conhecê-lo.
Porém eu senti uma estranha força que me impelia a seguir adiante, quase me obrigando a embarcar naquela aventura.
[1] Tradução do italiano – delícias de não fazer nada. (Nota do autor)
SamambaiasNo sábado às nove da manhã cheguei à pequena e simpática cidade de Samambaias, no interior do estado.Estacionei o carro na praça principal em frente à prefeitura. É uma praça imponente! Grande e toda orlada de centenárias palmeiras imperiais; a praça exibe um traçado bonito, com trechos gramados, canteiros com flores variadas e coloridas, dando um efeito alegre às alamedas de areia que formam o ‘passeio’, caminho por onde transitam as pessoas. Em toda a extensão árvores de fícus aparadas e dispostas em forma geométrica.Um coreto, um chafariz antigo e sextavado com duas bandejas, muitos bancos de madeira pintados de branco, com assento de ripa, e um laguinho, com peixes vermelhos ornamentais, completam o belo recanto.A praça é aladeirada; no alto ostenta imponente igreja matriz, com
O casarãoEra imponente, bonito, majestoso...E ao mesmo tempo, um tanto lúgubre. O terreno, segundo a escritura, possuía cinquenta metros de frente e duzentos metros de frente a fundos. Era uma chácara relativamente grande, mas pequena para ser um sítio. Apenas um hectare de área.Toda a parte que compunha a entrada era protegida por uma grade de ferro escura, meio oxidada, mas não muito, e fixada sobre uma mureta de alvenaria de, aproximadamente, sessenta centímetros de altura. A grade atingia bem uns três metros e possuía duas barras horizontais para dar firmeza às hastes. Na época em que foi colocada não existia máquina de solda, portanto fora toda ela fundida em módulos nas forjas de alguma ferraria. Os ferros verticais terminavam com a forma da ponta de uma lança.Na frente, exatamente na direção
Rozendo― Bom dia!A voz sobressaltou-me, pois estava bem distraído e, por isso virei rápido: parado atrás de mim estava um ancião trazendo nas mãos algumas ferramentas de jardinagem. Imediatamente lembrei-me que o Betinho citara o caseiro. Também dona Aurora havia falado sobre ele.― O senhor é o Rozendo? ― Perguntei.― Sim. ― Respondeu o homem.― Muito prazer, eu sou José Matias, o novo proprietário ― disse estendendo a mão para o velho. ― Acabo de comprar a chácara da viúva do General Eustáquio. Desculpe-me por ter invadido sem chamá-lo, mas o portão estava aberto e não resisti...Ele retribuiu meu cumprimento; tinha as mãos ásperas e calosas devido ao trabalho rude do amanho e cultivo da terra.― Dona Aurora ligou dizendo que o senhor viria; por isso deixei o portão ape
A casa do BarãoRozendo e eu fomos caminhando em direção a casa: depois da “praça do chafariz” o caminho largo se unificava novamente e ia em direção ao solar. Perto do alpendre da entrada ele desembocava em um estacionamento calçado com as mesmas pedras; de uma das extremidades do estacionamento saía outro caminho rodeando a casa que, provavelmente levava à garagem, nos fundos.Subimos uma escadinha com três degraus e entramos no varandão; uma porta antiga de madeira maciça, com aldrava, ligava o exterior a um grande salão de estar. Este salão era iluminado e ventilado por quatro janelas que se abriam duas para frente e duas para a lateral à esquerda da entrada. Rozendo sacou um molhe de chaves do bolso; abriu a porta e as janelas; uma rajada de vento soprou pela sala. Senti um ligeiro arrepio e a sensação de
O almoçoNos fundos a uns vinte metros da casa principal, em meio ao quintal que comportava um belo pomar, lobrigava-se uma casinha, pequenina, porém simpática, com uma varandinha na frente e jardim cheio de flores. Rozendo, fazendo um gesto para que eu o seguisse, levou-me para lá.Do portão gritou para dentro:― Maurine, coloca mais um prato na mesa que temos visita para o almoço.Maurine apareceu à porta com o rosto afogueado pelo trabalho na cozinha; vinha enxugando as mãos no avental.Rozendo apresentou-a:― Esta é minha neta Maurine que mora comigo. Este é o senhor José, o novo proprietário.Maurine teria, no máximo, trinta anos. Era uma mulher bonita e atraente, com cabelos aloirados e olhos profundamente azuis, mostrando descendência estrangeira.Estendi a mão para a moça e
O caféRozendo terminou de beber seu café e começou a narrativa:― A origem do café se perde nos meandros do tempo; sabe-se que foi no oriente médio ou talvez no norte da África oriental lá pelos montes da Etiópia que ele começou sua peregrinação no mundo. Rezam as lendas que ele foi descoberto pela curiosidade de um pastor de cabras que observando os animais de seu rebanho, reparou que eles adoravam comer os frutinhos vermelhos de um determinado arbusto que crescia nos arredores.Interrompi para comentar sorrindo:― Frutinhas vermelhas... elas sempre nos chamaram a atenção, através dos tempos. Basta vermos um arbusto com frutas vermelhas para sentirmos vontade de comê-las!― Pois é ― continuou Rozendo ―, o referido pastor constatou que as cabras se tornavam mais espertas e vivazes após ingerirem aquel
Pausa para um pouco de filosofiaNão pude conter a pergunta:― Rozendo, como você conhece tanta história? Você frequentou a escola?― Não! ― Exclamou o velho sorrindo. ― Somente as séries primárias. Entretanto passei a minha vida lendo; e ler é um sinônimo de estudar. E quando não se tem ninguém para comentar os assuntos lidos, é necessário digeri-los sozinho. E aí aparecem as elucubrações e postulados desenvolvidos pela própria mente. O que assimilamos de fora para dentro, é cultura, mas o que brota do interior e alcança o exterior sobre a forma de uma conclusão, é sabedoria.Pensei na resposta de Rozendo procurando alguma aresta para polir, mas não consegui enxergá-la. Portanto concordei com ele:― É verdade! Conheço muitas pessoas que são
Mais caféO pensamento de Rozendo era muito claro, por esse motivo permaneci em silêncio procurando refletir em tudo que havia ouvido. Após algum tempo pedi:― Vamos retomar a nossa história sobre o café?Era, mais ou menos, duas e meia da tarde; eu tinha, ainda, algum tempo antes de voltar para casa. Rozendo aprovou e continuou sua explanação:― Com o estímulo dado pela coroa portuguesa aos fazendeiros do Vale, o café começou a se desenvolver rapidamente passando, em pouco tempo, a ser o principal produto agrícola do Brasil.― Durante o Segundo Reinado foram plantadas várias novas espécies de cafeeiros: o ‘bourbon’, vindo da ilha do mesmo nome; o ‘botucatu’; o ‘café amarelo’; o ‘guatemala’; o ‘maragogipe’ que possu&iac