O ferro velho

O celular vibra. Não é o meu. Ou melhor… não deveria ser.

O aparelho que está sobre a minha cama começa a pipocar com notificações. A tela acende e, num gesto automático, pressiono o dedo. A tela desbloqueia de primeira.

Sem senha. Quem em sã consciência anda com um celular sem senha hoje em dia?

Meu coração começa a bater mais rápido. O frio na barriga é quase imediato. Porque, se esse não é o meu celular… então o meu está nas mãos de outra pessoa. E isso é um problema. Um problema grande demais.

Não é um aparelho qualquer. Meu celular tem fotos. Vídeos. Conversas. Coisas que, se chegarem nas mãos erradas… podem destruir o pouco que ainda resta da minha vida.

Abro a galeria com dedos trêmulos. Nada. Nem uma imagem. Nem um vídeo. Nem um contato sequer salvo. Nenhuma rede social logada. O aparelho é limpo demais. Estranhamente limpo. Frio, quase clínico.

“Merda”, sussurro.

Na tela, uma mensagem aparece:

“Hey. Acho que trocamos de celular. Estarei na Estrada Magorie, 782. Me encontra lá.”

Sem nome. Sem foto de perfil. Só isso. A tensão cresce no fundo do meu estômago. Respondo de forma contida:

“Ok. Amanhã eu te entrego o seu. Só… não mexe no meu, por favor.”

Mas quem é que resiste a curiosidade, não é? Eu sei bem como funciona. Sei que, se fosse o contrário, eu provavelmente já teria olhado tudo.

Largo o celular no travesseiro e afundo na cama, cobrindo o rosto com as mãos. Não tenho tempo de processar tudo antes que a briga comece.

— Por que você não sai então, seu desgraçado?! — a voz da Sheila rasga a parede fina do quarto como faca afiada.

— Cala a boca, sua louca! — Jacob rebate, e logo algo quebra. De novo.

Mais gritos, mais insultos. Mais uma noite em que tudo parece desmoronar ao meu redor.

— Eu vi! Eu vi como você olha pra ela, seu nojento!

E então, vem o comentário que me dá ânsia.

— Se não quer que eu olhe, diz pra ela usar roupas decentes. Aquela sainha de escola… ela praticamente implora.

Sinto meu corpo inteiro se retrair. Odeio quando ele fala de mim assim. Odeio mais ainda quando ela não me defende.

Respiro fundo, tentando não chorar. Me levanto, ajoelho diante da cama e puxo a caixa escondida. Dinheiro. Um punhado de joias baratas. Tudo que consegui vendendo meu corpo em pixels. Fotos. Vídeos. Conversas com desconhecidos dispostos a pagar. Não me orgulho, mas era o que eu tinha.

Eu ia embora. Só mais cinco meses.

Guardo tudo de novo quando a porta do quarto se abre. Sheila me encara com aquele olhar atravessado.

— Não sabia que era religiosa — ela diz, com o canto da boca torcido em zombaria.

— Deus me escuta quando ninguém mais escuta. — Minto. E engulo o desconforto.

Ela revira os olhos e some. Assim que ela fecha a porta, mudo a caixa de lugar, enfiando no fundo da cômoda, embaixo de cobertas velhas.

Me deito. Mas não durmo.

A Estrada Magorie parece mais deserta do que deveria. Caminho devagar, olhando em volta. O ferro-velho é sujo, mas tem algo… cênico ali. O cheiro de graxa e metal quente invade meu nariz.

Então vejo ele.

Tristan.

Sem camisa, coberto por manchas escuras de graxa. Calça jeans gasta, tênis surrado. O boné de beisebol cobre parte do rosto, mas quando me vê, ele tira e coloca a aba pra trás, revelando o cabelo bagunçado e úmido de suor.

O sol b**e no corpo dele de um jeito cruel. Faz cada músculo parecer mais definido. Cada gota de suor brilhar. A pele morena brilha como se fosse feita pra isso. Pra fazer alguém como eu esquecer o motivo de estar ali.

— Achei que você não viria — ele diz, com um meio sorriso. A voz baixa, um pouco rouca. Desajeitada, mas com algo escondido por trás. Algo… perigoso.

— E deixar meu celular com um desconhecido? Nem pensar. — Tento parecer firme, mas minha voz vacila.

Ele sorri mais, e dá um passo pra frente. Me entrega o aparelho.

— Não mexi em nada — diz. — Queria, mas… achei que seria falta de respeito.

— Obrigada. — Seguro firme o celular, como se minha vida dependesse disso. Talvez dependa.

— Você vai pra escola hoje? — ele pergunta, sem tirar os olhos de mim.

— Tenho provas. — Tento desviar o olhar, mas ele não deixa. É como se ele me prendesse ali. Sem tocar, sem falar. Só com a presença.

— Eu sou bom em algumas matérias. Posso te ajudar, se quiser. — Ele dá de ombros, casual. Mas a tensão entre nós está longe de ser casual.

— Você… ajuda os outros sempre assim?

— Só quem me interessa. — Ele sorri. E morde o lábio inferior.

Merda.

Olho pro corpo dele de novo. E me odeio um pouco por não conseguir parar.

— Você… precisa de modelo pra aula de arte, né?

Ele sorri mais amplo, dessa vez.

— Como você sabe?

— Acho que ouvi algo assim. — Minto. Talvez alguém tenha comentado. Talvez eu tenha só deduzido. Talvez eu quisesse que ele dissesse.

— É, preciso. — Ele dá um passo mais perto. — Serve você?

Meu corpo inteiro reage. Como se ele tivesse encostado. Mas ele não tocou. Só… olhou. E foi suficiente.

— Serve. — Respondo baixo. Tão baixo que quase não ouço.

— Ótimo. — Ele limpa a mão suja de graxa na calça e coça a nuca. — Te encontro depois da aula. Pode ser?

— Pode.

— Até mais, Cat.

Quando ele fala meu nome assim, curto, íntimo, eu tremo por dentro. Me viro antes que ele perceba. Mas sinto o olhar dele nas minhas costas.

E por algum motivo, gosto disso.

Gosto demais.

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