Nerd

A sala de detenção da escola tinha cheiro de desinfetante e poeira, como se tentasse se limpar de algo mais profundo do que apenas a sujeira: o tédio, a raiva e o desalento dos adolescentes que passavam por ali todos os dias. A professora, uma mulher de meia-idade com roupas coloridas demais e um coque frouxo preso com lápis, me recebeu com um sorriso como se eu estivesse chegando num retiro espiritual.

— Catarina Monteiro? — ela perguntou, consultando uma prancheta. — Pode deixar o celular aqui na minha mesa. Depois escolha qualquer lugar. Hoje não tem castigo, tá bom? Só um tempo pra refletir.

Assenti, sem dizer nada, largando o celular sobre a mesa com mais força do que o necessário. Estava cansada de ser tratada como um caso perdido. Como se um pouco de silêncio e frases positivas em papel colorido fossem me transformar em alguém melhor. Me dirigi ao fundo da sala, como sempre fazia, e sentei na última carteira, encostando as costas na parede fria.

A sala não estava cheia. Um ou outro aluno espalhado pelas carteiras ou pelas almofadas largadas no canto da sala. Alguns conversavam em sussurros, outros apenas olhavam para o vazio como zumbis sonolentos. Olhei pela janela, observando a luz alaranjada da tarde pintar as árvores do pátio lá fora. Estava me preparando para uma hora de completo marasmo quando a porta se abriu.

E então ele entrou.

Tristan Adamo.

Não precisei olhar duas vezes para saber que era ele. Aquele garoto novo da minha sala. O tipo de presença que se percebe mesmo em silêncio. E ele era puro silêncio. Sempre calado, sempre distante, como se estivesse com um pé em outro lugar — ou em outra realidade.

Na sala de aula, ele se sentava perto da janela, rabiscava o caderno com desenhos que eu nunca consegui ver direito e, às vezes, encarava o nada como se ouvisse pensamentos que ninguém mais podia escutar. Ele nunca falava com ninguém. Nunca sorria. Mas agora, ao vê-lo ali, tão perto, minha pele se arrepiou sem explicação.

Ele caminhou até a mesa da professora e entregou o celular. Não disse uma palavra. Depois virou-se e seus olhos encontraram os meus.

Ele hesitou por um segundo. Só um segundo. Mas bastou para que tudo ao meu redor parecesse desacelerar.

Caminhou até onde eu estava sentada e parou ao meu lado.

— Posso? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.

Assenti, num gesto mudo. Era como se minha garganta tivesse secado de repente.

Ele puxou a cadeira e sentou-se ao meu lado, deixando um espaço mínimo entre nós. Senti o calor que emanava do corpo dele e um cheiro leve de fumaça, ferrugem e chuva. A combinação mais estranha e, ao mesmo tempo, mais hipnotizante que já senti.

— Vejo que vocês já se conhecem — disse a professora, em tom alegre, como se quisesse empurrar algum tipo de reconciliação cósmica. — Isso vai facilitar. Vamos fazer um exercício em dupla hoje. Nada de castigos. Detenção aqui é sobre reconexão. Com os outros e com a gente mesmo.

Suspirei e virei o rosto para a frente, fingindo que não estava prestes a entrar em combustão espontânea com ele tão perto.

— Que sorte a minha — murmurei.

Ele riu. Uma risada breve, abafada, mas carregada de algo… difícil de definir. Algo entre ironia e surpresa.

— Pelo menos não estou sozinho entre os condenados. — ele comentou, apoiando os braços sobre a mesa.

Foi quando virei o rosto para ele — de verdade. E reparei nos olhos.

Um castanho quente, profundo, cheio de sombras. Mas o outro… o outro tinha manchas verdes espalhadas como se fossem musgo crescendo em uma floresta abandonada. Como se a própria natureza tivesse se infiltrado ali, silenciosa.

Pisquei, sentindo o impacto daquele detalhe tão sutil e tão brutal ao mesmo tempo.

— Seus olhos… — comecei, sem pensar.

— Eu sei. — ele respondeu antes que eu completasse. — Eles sempre causam esse efeito.

Fiquei quieta. Tentei não demonstrar mais do que deveria. Mas era impossível. Agora que eu sabia daquilo, não conseguia parar de olhar.

Ele desviou o olhar e ficou observando os dedos, que tamborilavam devagar sobre a madeira riscada da carteira.

— Você não fala muito na aula — comentei, querendo dizer qualquer coisa que não fosse “você é lindo demais, isso é injusto.”

— E você fala demais, às vezes. — respondeu com um sorriso de canto.

Arqueei a sobrancelha.

— Isso foi uma provocação?

— Um elogio disfarçado. — disse, ainda sem me encarar.

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Um silêncio que não era desconfortável, mas carregado. Como se algo se acumulasse entre nós. Algo que eu não sabia nomear ainda.

— Por que você veio parar aqui? — perguntei, finalmente.

— Um cara tentou colar na minha prova. Empurrei ele longe. Ele caiu. Me denunciaram. — disse como se fosse uma piada. — Aparentemente, defender suas coisas hoje em dia é crime.

— E você sempre se defende desse jeito?

Ele virou o rosto devagar e me olhou. E por um instante, os olhos dele se tornaram uma armadilha. Era como cair.

— Só quando não tenho ninguém pra fazer isso por mim. — disse.

Não soube o que responder. Porque, pela primeira vez em muito tempo, entendi exatamente o que ele queria dizer.

— E você? — ele perguntou. — Por que está aqui?

— Dei uma resposta atravessada pra uma professora. — dei de ombros. — Ela mereceu.

Ele sorriu, dessa vez um pouco mais largo. Aquele tipo de sorriso que alguém sorri quando finalmente encontra alguém que entende.

A professora nos chamou para sentarmos nas almofadas. Relutantes, obedecemos. Tristan foi primeiro. Quando me sentei ao lado dele, nossos ombros se tocaram. Nenhum de nós se afastou.

— Agora quero que vocês escrevam um segredo. — ela disse. — Algo que nunca contaram pra ninguém. Vai ser lido em voz alta, mas sem nome. Sigilo garantido.

Papel e caneta circularam pela sala. Peguei o meu. Ele pegou o dele. Nos entreolhamos.

— Vai ser divertido. — murmurei, com sarcasmo.

— Ou perigoso. — ele rebateu.

Nossos dedos se tocaram quando ele me passou a caneta.

E por um instante, o mundo pareceu conter a respiração.

A professora recolheu os bilhetes dobrados com um cuidado quase cerimonial, como se segurasse pedaços de vidro fino. Depositou todos dentro de uma caixa de papelão decorada com adesivos pueris, contrastando com a atmosfera cada vez mais pesada da sala.

— Lembrem-se: ninguém será exposto. Não há nomes. A intenção é mostrar que, mesmo calados, todos carregamos algo. — Ela sorriu, e depois sorteou o primeiro papel.

Tristan estava sentado ao meu lado, silencioso, com o corpo levemente curvado para frente e os dedos entrelaçados sobre os joelhos. O cabelo escuro, quase preto, caía em ondas suaves sobre a nuca e parte da testa, sombreando aqueles olhos tão estranhos — um castanho, o outro manchado de verde, como se tivessem esquecido de terminar de pintá-lo.

— “Já fiz algo que me envergonha, mas continuo fazendo porque preciso sobreviver.” — leu a professora.

Um murmúrio incômodo percorreu a sala. Alguém pigarreou. Outro riu, abafado.

Meu coração apertou no peito. O bilhete parecia tão familiar, mas havia tantos segredos ali… quem saberia?

Ela seguiu com outro.

— “Sinto raiva o tempo todo. Finjo que está tudo bem, mas quero gritar.”

Tristan continuava imóvel, o maxilar rígido, as costas tensas. A mão direita tremia de leve, e eu percebi porque estava perto o bastante para notar.

— “Ninguém sabe, mas eu apanho em casa. Sempre disseram que é normal. Eu sei que não é, mas não tenho pra onde ir.”

O silêncio que se seguiu foi mais grosso que ar.

Alguns alunos trocaram olhares, outros apenas desviaram os olhos. A professora não comentou, apenas dobrou o papel com cuidado.

Olhei de canto para Tristan, mas ele não se moveu. Nenhum músculo no rosto denunciava o que sentia. Mas havia algo nos olhos — aquele brilho imóvel, como se segurasse a respiração por dentro.

Mais um bilhete foi sorteado.

— “Às vezes penso que sou ruim. Não porque faço coisas erradas, mas porque ninguém nunca me ensinou o que é certo.”

A professora soltou um suspiro discreto.

— Todos estamos aprendendo — murmurou, mais para si do que para nós.

E então, veio o último papel.

— “Fiz coisas que não sei se foram certas ou erradas. Só sei que fiz, mas precisava do dinheiro. E não me arrependo.”

A sala mergulhou num silêncio denso.

Não havia detalhes explícitos. Nenhuma acusação direta. Mas era um daqueles segredos que escorregam por baixo da pele e incomodam.

A professora dobrou o papel devagar.

— O que somos… nem sempre é o que gostaríamos de ser. E o que fizemos… nem sempre define quem seremos.

Tristan não disse nada. Nem sequer me olhou. Mas por algum motivo, naquele breve momento antes do sinal tocar, seus olhos encontraram os meus — e houve algo ali. Não reconhecimento, exatamente. Talvez… identificação.

Como se nossos segredos falassem a mesma língua.

Mas ele não sabia que aquele último bilhete era meu.

E eu… só podia imaginar se o que falava sobre violência vinha dele.

Quando o sinal tocou, todos saíram rápido demais, como se precisassem fugir do que acabaram de ouvir.

Tristan se levantou por último. Antes de sair, me olhou uma última vez. Um segundo apenas.

E foi embora.

A caixa de segredos ficou sobre a mesa.

Mas o peso deles… ainda estava entre nós.

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