Azar

A professora termina de ler o último papel com uma entonação exageradamente calma, como se não estivesse expondo o mundo íntimo de alguém em voz alta. Quando seus olhos percorrem a sala mais uma vez e ela dobra os papéis devagar, sinto um alívio quase físico. Como se algo dentro de mim tivesse se soltado.

— Bom, queridos. Daremos por encerrada a nossa terapia de segredos. E agora vamos para a segunda parte. Quero que — ela lança um olhar afiado para uma dupla barulhenta no canto — conversem com os seus parceiros e os conheçam melhor.

Reviro os olhos. Maravilha. A sessão de tortura continua.

Tristan senta-se logo à minha frente. Desde que ele entrou na sala de aula, algumas semanas atrás, eu já o tinha notado. Alto, quieto, meio fora de lugar, com os cabelos escuros sempre um pouco bagunçados como se ele tivesse acabado de sair de um sonho. Era o tipo de garoto que não tentava se destacar, mas acabava chamando atenção de qualquer jeito. A gente nunca tinha conversado, mas não era como se fôssemos completos estranhos. Eu sabia o nome dele. Sabia que ele desenhava no canto das folhas durante as aulas. Sabia que às vezes ele me olhava quando pensava que ninguém estava vendo.

Levanto os olhos devagar e encaro suas costas. Ele se vira para mim com calma, e nossos olhares se encontram. Meu estômago aperta um pouco.

— Bem — começo, limpando a garganta —, eu não sei muito bem o que dizer. Talvez possamos só ficar em silêncio até essa detenção acabar.

— Difícil conversar em silêncio. — Ele sorri, torto.

Ignoro a resposta, mas não consigo deixar de reparar no jeito como ele me olha. Não tem nada de ameaçador ou forçado. É só… atento.

— A gente já se viu antes — ele diz.

— É, somos da mesma turma — respondo, tentando parecer indiferente.

Ele dá uma risada leve. — Sim. Mas a gente nunca tinha falado. Eu achava que você não gostava de conversar.

— E você parece não gostar de ninguém — rebato, arqueando uma sobrancelha.

— Talvez — ele admite. — Ou talvez eu só ainda não tivesse encontrado alguém que valesse a pena gastar palavras.

Meu rosto esquenta, e odeio a forma como isso me faz sorrir.

— Isso foi uma cantada? — pergunto, me inclinando um pouco para frente, desafiadora.

— Se foi, funcionou? — ele rebate no mesmo tom, e por um segundo o ar entre nós muda.

Ele pega um caderno amassado da mochila e abre sobre a mesa. Pega um lápis comum e começa a rabiscar sem muita pressa. O som da ponta deslizando no papel é quase relaxante. Fico observando sem vergonha. Ele não parece se incomodar.

— Você desenha bem? — pergunto.

— Melhor do que falo — ele responde, sem levantar os olhos. — O desenho ouve sem julgar.

— Isso é profundo.

— Ou só cafona — ele diz, e sorri para si mesmo.

Inclino um pouco o corpo, curiosa. — Posso ver?

Ele hesita, então gira o caderno levemente. É o contorno de um rosto. Meu rosto. Quase.

A expressão é suave, mas intensa. É estranho me ver daquele jeito, desenhada com um traço tão atento. Como se ele estivesse me observando há tempo suficiente para me entender.

— Isso é… — começo, sem encontrar a palavra certa.

— Não terminei ainda. — Ele volta a desenhar, o lápis deslizando em pequenos movimentos. — E, antes que você diga qualquer coisa, não sou um stalker. Eu só gosto de observar.

— Você me observa? — provoco.

Ele ergue os olhos, sério. — Às vezes. Você parece estar sempre longe. Como se estivesse em outro lugar, mesmo quando está ali, sentada atrás de mim.

A respiração prende na minha garganta. Ele não está dizendo com pena. É só uma constatação. Crua. Verdadeira.

— E o que você vê quando me observa? — pergunto, de repente.

Ele me encara por um tempo que parece mais longo do que deveria. — Alguém que carrega muita coisa nos ombros. Mas que continua andando. Isso é admirável.

Desvio o olhar, desconfortável com a sinceridade.

— E você? — pergunto. — O que você carrega?

— Mais do que eu gostaria — responde com um meio sorriso. — Mas não é o tipo de coisa que se compartilha numa tarde de castigo.

— Ainda bem. Eu não sou muito boa em conselhos. — Tiro a caneta da mochila e começo a rabiscar na capa do caderno, apenas para ocupar as mãos. — Mas sou boa em guardar segredos.

— Isso é útil — diz ele, e nossos olhos se encontram de novo. Um pouco mais longamente dessa vez.

O sinal toca, cortando o momento com a brutalidade de sempre. Alguém solta um “graças a Deus” atrás de mim, e a sala começa a se mover. Tristan guarda o caderno, e eu me levanto, um pouco atordoada com a rapidez com que tudo mudou.

Seguimos para pegar nossos celulares com a professora. Quando ela entrega o meu, eu o coloco direto na mochila sem nem olhar.

— Até a próxima, alunos. Espero não vê-los mais por aqui — ela diz com aquele tom fingido de leveza.

Eu não espero Tristan. Mas parte de mim gostaria de vê-lo de novo.

A música já começa a incomodar antes mesmo de eu virar a esquina da rua. Funk alto, vozes, gargalhadas. Aperto o passo, já sentindo o peso das provas acumuladas, dos trabalhos atrasados, da vida de merda que insiste em não dar trégua.

Sheila está na porta de casa, latinha na mão, maquiagem derretida no rosto e aquele sorriso malicioso que nunca promete coisa boa. Seus amigos estão espalhados na varanda, falando alto e soltando risadas esganiçadas. Jacob está entre eles. O assobio de um dos amigos me segue até a porta.

Entro rápido, respirando fundo como se só o ar da casa já fosse uma ameaça.

Meu quarto é o único lugar onde o mundo silencia, mesmo que por pouco tempo. Me jogo na cama, abro a mochila para pegar os cadernos e coloco o celular para carregar.

Horas depois, quando finalmente o barulho lá fora diminui e consigo tomar banho, me sento para comer um macarrão instantâneo. Minha cabeça ainda está no desenho, no sorriso torto, no jeito que ele me olhava.

Pego o celular, finalmente com bateria. Pressiono o botão. A tela acende.

E congelo.

A imagem de uma Ferrari vermelha me encara da tela de bloqueio.

Minhas mãos tremem. Abro a galeria. Nenhuma das minhas fotos. Nenhum dos meus vídeos.

Não.

Não.

Meu coração dispara. Tento respirar fundo, mas a garganta fecha.

Esse… esse celular não é o meu.

Eu troquei de celular com alguém.

Com quem?

Meu estômago vira.

Se alguém tiver acesso às minhas coisas… às minhas coisas…

— Merda. — Levo as mãos à cabeça.

Eu nunca fui tão cuidadosa, mas também nunca fui tão azarada.

O medo me aperta o peito como um nó.

Preciso resolver isso. Antes que ele veja alguma coisa que eu não posso mais esconder.

— Merda, merda, merda… — sussurro para o quarto vazio.

E sei, lá no fundo, que amanhã vai ser um inferno.

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