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A Árvore dos Enforcados

O silêncio da noite trazia o sussurro das sombras. Era algo discreto, quase inaudível, carregando consigo toda energia pesada que brotava nos confins malditos daquela mansão assombrada. Matheus e Giovanna dormiam. O começo do sono para ele foi inquieto. As lembranças eram traumáticas ao ponto de obrigarem o atormentado rapaz a retomar o consumo de remédios que há muito tinha abandonado. Foram dois comprimidos fortes e em poucos minutos sua mente simplesmente apagou, entregando-se ao sono profundo e sem sonhos. Foi assim que Matheus passou a dormir, pesado como uma pedra, mas feliz por não ter seu sono interrompido a cada barulho estranho ou a cada manifestar sobrenatural da sua casa de pesadelos. 

O caso de Giovanna era o oposto e com certeza seu noivo a invejaria. A bela morena nunca apresentava problemas com o sono e, para sua sorte, ainda desconhecia os segredos macabros daquilo que a cercava. Sendo assim, estava aproveitando cada segundo, a cama era realmente incrível e ao menos dormir bem ela faria naquela noite. Isso também agradava a casa, era uma ótima maneira de reorganizar sua rotina, agora tinha vivos para habitá-la mais uma vez.

O vazio e a escuridão naquele local antigo certamente não iria atrair a atenção de seus moradores. A cada cômodo afogado na penumbra, as sombras ganhavam formas diabólicas e as almas gemiam baixo, em uma completa angústia. Ainda existia a força sinistra, pesada e sufocante. A força que quando invadiu o novo quarto do casal, acariciou Giovanna, fazendo  mechas de seu cabelo escuro se moverem discretamente. Apesar do sono profundo, a morena se revirou na cama de forma inconsciente, sentindo o perigo. Para sua sorte, aquela energia maldita cruzou a janela, seguindo rumo ao bosque. Em meio as árvores estava todo seu alimento. Aquelas almas amaldiçoadas permaneciam presas no eterno, sofrendo em um ciclo infinito, sacrificadas pela maldade e pela ambição. Agora um novo sacrifício deveria acontecer, bastava mais algum vivo falhar…

Após a chuva torrencial, o milagre acontecia. O céu negro estava limpo como nunca, anunciando uma manhã que deveria chegar ensolarada e muito quente. Contudo, nem todo o esplendor da lua rechonchuda e das estrelas cintilantes impediram que no momento marcado às realidades se mesclassem e o mundo desconhecido se manifestasse mais uma vez. 

Passavam das três da madrugada quando as imagens translúcidas foram lentamente ganhando forma. Nos galhos fortes das árvores os corpos dos enforcados apareceram, pálidos e putrefatos, balançando ao ritmo da agonia eterna. A diferença naquela noite estava em um detalhe: os olhos das almas estavam bem abertos e todos os corpos viravam para a casa, permitindo que aqueles olhos permanecessem fixos no quarto que dava visão direta para onde estavam.  Era dali que no passado Lucinda observava as vítimas das provações e era ali que agora seu filho dormia...

Da mesma forma lenta e assombrosa que começou, a manifestação da penitência foi desvanecendo. Era sempre uma questão de poucos segundos, quase em um piscar de olhos. Isso era positivo, talvez… Pelo menos aqueles seres tão massacrados não tinham muita força para assombrar o mundo, por mais que desejassem... A casa permaneceu afundada no maligno, ainda muito silenciosa, mas sedenta. Por muito tempo permanecera vazia, agora havia chegado a hora de  reviver seu terror após uma longa década de descanso… 

O dia amanheceu ensolarado e quente como havia se previsto. Apesar de toda a beleza matutina, a decepção para Giovanna chegou cedo. Sua despensa estava vazia e tudo o que poderia oferecer ao seu amado noivo seria um café ralo e alguns biscoitos salgados que ela enfiara na mala antes de sair de seu antigo apartamento. O café da manhã seria uma vergonha, ela olhou para a bandeja simples e bufou inconformada.

A chuva repentina da última tarde havia destruído todos os planos do casal e, além de ter que lidar com aquela escassez, a sempre tão preparada Giovanna Teixeira também pensava no caminhão de mudança que deveria chegar no fim da manhã. Como iria recepcionar a equipe de trabalhadores? O trabalho deles seria árduo, a estrada de terra deveria estar um caos e o casal, apesar de não carregar muita coisa para a nova casa, aguardava suas mobílias e itens. Pensando sobre isso ela subiu as escadas, a bandeja simples era adornada com algumas poucas flores, uma colher de prata pura, xícara com pires e um prato de uma louça requintada que tinha no armário da cozinha. Matheus não havia mentido quando dissera que não seria necessário carregar muita coisa para a casa nova, a maioria dos cômodos já estavam bem servidos.

A surpresa de Giovanna foi grande mais uma vez. Seu noivo, que sempre despertava antes dela, permanecia derrubado na cama. A desculpa que ela aceitou de si própria para si própria foi que ele havia se cansado na viagem. Era compreensível, até ela se sentira exausta mentalmente por toda aquela chuva, imagina se tivesse que dirigir naquele tempo. Com esse pensamento colocou a bandeja sobre a cama e ficou a observar Matheus, estava indecisa se o acordava ou não. Quando repentinamente uma nova dúvida surgiu, a intuição ordenou e ela acabou remexendo na pequena gaveta que pertencia ao criado mudo do rapaz. Então teve certeza. Ela encontrou o tranquilizante que conhecia muito bem. Matheus há muito não tomava aquele remédio que de certa forma fora o motivo para se encontrarem pela primeira vez. O casal se conhecera por Matheus ter problemas com o sono e, apesar dele tomar aquele remédio tarja preta na época, chegou ao consultório da psicóloga implorando por ajuda. Queria largar aquilo, estava indo muito mal no trabalho e em uma época importante, ele não poderia ficar sonolento o dia todo. A psicóloga novata fez de tudo para ajudar um de seus primeiros pacientes, e no fim acabou quebrando a primeira regra do profissionalismo, ela se apaixonou por ele.

Giovanna colocou o medicamento de volta à gaveta e decidiu não falar sobre o assunto. Conhecia um pedaço do passado do noivo e a época em que estavam era de mudanças, haviam passado a primeira noite na casa nova, o rapaz ainda teria que resolver vários problemas naquele mesmo dia. Provavelmente Matheus só queria se assegurar de que estaria bem descansado. Ela beijou suavemente a bochecha dele e depois o pescoço, o queixo, a ponta do nariz, assim ele abriu os olhos. Giovanna se afastou, dando tapinhas no pé do noivo enquanto dizia:

— Hora de acordar, belo adormecido. Você vai ter que fazer as compras. 

Ela se afastou da cama, seguindo rumo a uma direção bem específica. Parou e ficou a encarar o quadro sinistro mais uma vez. O pior foi perceber que ainda se sentia incomodada com a pintura. Agora tudo parecia ainda mais nítido e assombroso, fazendo os pelos de sua nuca se arrepiarem. Definitivamente não gostava daquele quadro, Matheus teria que tirá-lo dali.

A mulher olhou por cima de seu ombro esquerdo, viu o rapaz com muito custo se sentar na cama para tomar o vergonhoso café da manhã. Por certo tempo Giovanna pensou sobre o que Matheus estaria pensando. Ele, rico indo morar em uma mansão histórica tendo que tomar um café ralo e comer biscoitos murchos. Normalmente a morena não se preocuparia com essas coisas, mas sentiu aquele desconforto, aquela insegurança que chega toda sorrateira querendo se instalar e destruir. Giovanna poderia facilmente pensar que não seria uma boa esposa, sua sogra já dissera isso tantas vezes, mas a morena respirou fundo e aproveitando que o amado já estava desperto, afastou seus pensamentos e elevou a voz para dizer:

— Antes de você sair, gostaria que tirasse esse quadro do nosso quarto. — Como resposta ela ouviu apenas o mastigar dos biscoitos. Matheus abaixou a cabeça, o pior é que não havia motivos para agir assim, ou melhor, o único motivo era que a estava ignorando.

— Poxa, Matheus! Eu já disse que não me senti bem com essa coisa aqui e para completar isso ainda fica bem de frente pra nossa cama. Essa criatura parece que está nos observando. — Insistiu, prolongando-se enquanto mirava os detalhes que já conhecia e que se tornavam cada vez mais horripilantes.

— Inclusive eu tive alguns sonhos estranhos. Sonhei com pessoas enforcadas em árvores e nos encarando ...

Dessa vez Matheus a olhou, afetado talvez, não daria para afirmar. Ele pegou a xícara de café, tomou um gole e depois indagou:

— Eu te disse que este era o quarto da minha mãe, não disse?

Entre todas as palavras que poderia escolher, ele escolheu justamente essas. Matheus não deveria tê-las falado, ainda mais dessa forma, agora eram os dois que moravam ali e Giovanna fez questão de relembrar.

— Sim! Da sua mãe e do seu pai quando ele ainda a suportava. E eu te disse que agora o quarto é nosso e por isso... Vamos trocar essa coisa por algo mais leve.

A mulher estava decidida e claramente Matheus não se sentiu confortável com suas palavras, mas preferiu ficar em silêncio, o que realmente irritou sua noiva. Ao contrário de muitas pessoas, Giovanna sempre preferia que uma pessoa dissesse realmente o que estava pensando e não que se calasse para deixar o tempo passar e a memória esquecer. Poucas memórias esqueciam e ela não acreditava que era bom guardar tudo para si, uma hora você explode. 

— Poxa, Matheus, eu vou ter mesmo que tirar essa coisa estranha do nosso quarto? 

Profundamente contrariado o rapaz  se levantou da cama e com passos pesados partiu em direção ao quadro. Nos primeiros segundos Giovanna teve suas dúvidas, mas viu o retirar a pintura da parede. Ele precisou de certa força e jeito, o quadro não era tão pesado assim, mas era grande. Giovanna percebendo sua dificuldade, ameaçou ajudá-lo, porém Matheus disparou em um tom áspero.

— Se você quer tirar, então que não me pedisse.

A resposta igualmente rude foi disparada, enquanto ela cessava seus movimentos:

— Você está um porre desde ontem. Faça isso então. Vou finalizar a lista. — Ela saiu do quarto, descendo as escadas e parando na cozinha, o arrependimento já havia se instalado, Giovanna ainda não acreditava que no primeiro dia na casa nova ela e Matheus já tinham iniciado uma briga e, como sempre, a mãe dele fora citada. A morena se irritava com o fato, pois sempre que se recordava de alguma discussão com Matheus, a sogra estava presente, nem que fosse em memória ou apenas nome. Respirou fundo e se questionou sobre o motivo de estar tão incomodada... No fim, enxergou que tivera uma grande parcela de culpa naquela indisposição, deveria ser mais compreensiva...

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