Ainda que a contragosto a bela morena já havia subido, deixando Matheus a se recordar de como ela parara nos últimos degraus da escada. Giovanna olhou para o rapaz com seus olhos escuros e tentadores, como se o chamasse pela última vez, dando-lhe uma última oportunidade para que mudasse de ideia. Foi ignorada e desistiu, desaparecendo em meio à negritude, deixando o noivo a sós com seus fantasmas.
O filho mais novo dos Albuquerque permanecia no centro do salão. Inquieto e ao mesmo tempo imóvel. Com a pouca iluminação que conquistava pela sua própria lanterna, conseguia enxergar apenas o vazio. Era estranho. Pelo que se lembrava, e se lembrava muito bem, todo aquele lugar no passado estava abarrotado de bizarrices. Uma mobília que o assombrava e o fazia correr para qualquer cômodo seguinte. Quando era criança e um arrepio estranho lhe subia à nuca, Matheus fechava seus olhos e simplesmente disparava rumo à cozinha, à despensa, à biblioteca ou até mesmo ao porão, qualquer lugar que deixasse o salão para trás. Ele não queria ver as estátuas em tamanho humano e adulto, eram muito maiores que ele e tinham faces perversas e demoníacas. Ele também não gostava de encarar os quadros vivos. Eram pinturas estáticas, mas cada cenário que representava havia marcado seus piores pesadelos. E agora, longos anos depois, ele estava de volta. Lembrava-se das formas abstratas que devoravam almas e se alimentavam da fraqueza, lembrava-se dos olhos vermelhos que dominavam a escuridão, do desejo por consumir a vida e por causar a morte… Ainda que não estivesse mais nada ali, todas as recordações se mostravam presentes...
"Só tema aquilo que não pode enxergar, mas que ainda consegue sentir…" Essas foram mais algumas das palavras sinistras de sua mãe. Um medo infantil até horas atrás, mas que agora, no vazio de uma sala gigantesca, ele conseguia experimentar mais uma vez. Tocou seu colar novamente, erguendo sua lanterna. O filete raso de luz atravessou boa parte de toda aquela imensidão. O salão se tornava ainda maior quando afundado no vazio, e além da sensação de vulnerabilidade, trazia consigo a dúvida. Matheus não sabia dizer se era pior ter aquele lugar mobiliado com toda a decoração antiga ou se assim, limpo. Mas ele sabia que tudo permanecia ali. Aquela energia sufocante e pesada. Sequer havia se perguntado para onde havia sido levado tudo o que decorava o espaço. Olhou para cima. O enorme lustre era a única coisa que permanecia à vista. Outra coisa pesada e sufocante, do tamanho dele, estática como um monstro sarcástico pronto para devorá-lo.
Matheus suspirou fundo, a todo custo tentando abafar seus medos. Já era um adulto de 28 anos, alguém responsável por si e por suas escolhas, alguém que tinha que aceitar seus traumas e toda sua história. Ele caminhou, dirigindo-se a uma entrada do lado direito da escada, ali ficava o porão.
A cada nova porta que ela abria, uma surpresa ainda maior encontrava. O segundo andar era dominado por quartos, todos enormes e, ao contrário do salão e de muitos pequenos cômodos que ela conheceu anteriormente, todos estavam mobiliados.
Giovanna agora estava diante do quarto que se mostrava como o maior. A cama com um dossel e adornada por tecidos finos foi o que atraiu instantaneamente sua atenção. A jovem sempre se encantava ao ver o modelo nos filmes mais antigos, trazia a ideia de imponência e nobreza. Na maior parte do tempo a mulher ignorava a posição do futuro marido, mas aquele móvel não tão simples fez com que agradecesse ao cosmos por sua sorte. Tudo estava dando certo, certo até demais.
Ela caminhou, sentando-se sobre a cama. Ignorava os raios que ainda se impunham do lado de fora, agora mais brandos, a tempestade por fim passava. Sentiu a maciez do colchão, dormir ali seria como dormir como uma rainha para despertar na sua plenitude. A mulher já sabia que aquele era seu quarto desde a primeira vez que o encarou. Olhou ao seu redor, sob a escuridão poucos móveis se destacavam. Ela apenas enxergava as cortinas, os tapetes, as formas dos quadros, a separação feita no cômodo, sofá, mesinhas de cabeceira, cômodas pequenas. Tudo sob a luz da escuridão não tinha brilho, a maioria era apenas sombras. E ela se deitou sobre a cama, afundando no colchão, tendo um súbito momento de criança, onde soltou risadinhas e abriu seus braços. A cama de casal era enorme.
Uma brisa fina e gelada balançou as cortinas. Foi algo tão discreto que Giovanna nem sentiu seus pêlos eriçarem, o que a incomodou foi o cheiro forte que surgiu de maneira súbita. Era nojento, fétido, um azedo pútrido que invadiu suas narinas, mas que logo se dissipou. Por breves segundos ela sentiu como se aquele cheiro tivesse se impregnado em todo seu ser, torceu o rosto em uma careta, ficou com a lembrança do odor guardada por longos minutos, mas não se incomodou ao ponto de se levantar. Estava uma bagunça lá fora, não sairia para ver de onde partira o odor da morte.
No porão, Matheus se deparava com mais pesadelos do passado. Toda casa tem seu "quarto dos esquecidos", aquela mansão tão linda e bem cuidada não seria uma exceção. O rapaz, ainda sob a iluminação módica da lanterna, enxergava uma quase infinidade de quadros onde a pintura já se desgastara há tempos. Também havia móveis esquecidos, roupas, e algo que ele nunca imaginaria encontrar mais uma vez: sua "cabana protetora", o lugar que usava para evitar seus demônios. Era feita de lençóis brancos no passado, mas que agora estavam encardidos. No interior alguns brinquedos, ursinhos e carrinhos e, além disso, atame e velas, apagadas e desgastadas obviamente. Subitamente ele sentiu o cheiro forte de guiné e isso trouxe à sua mente uma das visões mais marcantes de sua infância. O pequenino Matheus estava encolhido dentro de sua cabana, envolto por incensos e com muito sal circundando seu "abrigo", ali nada iria incomodá-lo, todos poderiam continuar com os rituais no andar de cima.
De volta ao presente ele focou no que tinha ido fazer ali. Em poucos minutos trouxe de volta a energia, trazendo também mais tranquilidade ao seu peito assombrado.
Giovanna, ainda deitada, tinha seus olhos fechados e estava prestes a adormecer quando a claridade reanimou seus sentidos. Ela lamentou profundamente, até poder enxergar com clareza os detalhes ocultos pela escuridão. O quarto era digno da realeza, trazendo ainda a leveza da modernidade. Não era de se esperar em um cômodo como aquele, mas vasos comportando plantas de grandes folhas também serviam como separação. O quarto dividia espaço com um closet e uma saleta, contando ainda com uma sala de banho onde paredes eram inexistentes. O cheiro forte de madeira foi o que a morena sentiu agora, o que ela achou bem incomum, já que contava com uma casa de um século, no mínimo. Mas ela, a moça da cidade, não tinha muita ideia sobre essas coisas...
A mulher caminhou pelas divisões, cada vez mais impressionada. Seus olhos apenas se incomodaram com uma pintura. Ela parou diante ao quadro que tinha metade do seu tamanho. As linhas diversas a princípio não formavam nada de claro, apenas o vermelho vivo conseguia atraí-la e de maneira negativa. Ela dedicou certo tempo encarando a pintura, tentando decifrá-la. Quando sua mente por fim organizou uma imagem, o arrepio foi instantâneo. Entre vários tons de vermelho e linhas que não se fechavam, uma face demoníaca se formou. Os chifres eram enormes, o queixo triangular, o nariz apenas dois furos, presas saltavam de sua boca desproporcional, mas o pior eram os olhos. Os olhos vermelhos estavam vidrados nela, que se sentiu invadida e ainda mais desconfortável quando ao fundo do que parecia ser um demônio, vários traços mostravam pessoas enforcadas em árvores. Giovanna buscou pela assinatura do artista e um "M.A" estava traçado no canto direito da tela.
— Era dessa forma que você enxergava sua mãe, "Matheuzinho"?! — Giovanna sorriu, sabendo que aquelas iniciais poderiam indicar também o pai do menino, principalmente porque o homem tinha como hobby a pintura e antes de falecer estava tornando esse hobby em algo profissional.
— Ou será que o falecido Maurício fez um retrato da mulher?! — Mais uma vez a jovem deu voz aos seus pensamentos. Fazia aquilo para minimizar o incômodo, e foi algo que funcionou, só não tanto quanto ela dar as costas para o quadro e decidir que iria convencer o noivo a tirar "aquela coisa'' dali.
Giovanna encaminhou-se rumo à sacada. Abriu as cortinas e deparou-se com o céu ainda escuro, mas a chuva agora era apenas uma garoa fraca. Ela não ousou abrir as portas de vidro, mas seus olhos repousaram sobre as incontáveis árvores que tinha na área traseira daquela casa. Parecia o início de um bosque, um bosque minúsculo que só se estendia pelo terreno enorme da mansão. A mulher ainda avistou a área da piscina, torcendo para que no dia seguinte o sol aparecesse de novo. As chuvas de março no Brasil eram assim mesmo, destruidoras e repentinas, recolhendo-se à noite e com grandes chances de retornarem no fim da tarde seguinte. O importante era aproveitar o sol nesse meio tempo. Uma pena que oficialmente a noite já havia caído.
O silêncio da noite trazia o sussurro das sombras. Era algo discreto, quase inaudível, carregando consigo toda energia pesada que brotava nos confins malditos daquela mansão assombrada. Matheus e Giovanna dormiam. O começo do sono para ele foi inquieto. As lembranças eram traumáticas ao ponto de obrigarem o atormentado rapaz a retomar o consumo de remédios que há muito tinha abandonado. Foram dois comprimidos fortes e em poucos minutos sua mente simplesmente apagou, entregando-se ao sono profundo e sem sonhos. Foi assim que Matheus passou a dormir, pesado como uma pedra, mas feliz por não ter seu sono interrompido a cada barulho estranho ou a cada manifestar sobrenatural da sua casa de pesadelos.O caso de Giovanna era o oposto e com certeza seu noivo a invejaria. A bela morena nunca apresentava problemas com o sono e, para sua sort
Tudo estava acontecendo muito mais rápido do que ele temera. Agora Matheus carregava uma de suas pinturas malditas, ela aterrorizava sua noiva e não havia se passado nem mesmo um dia completo para que os pesadelos começassem. Pensando sobre isso, com o quadro nos braços e conseguindo driblar toda dificuldade de uma descida, o rapaz seguia pelos últimos degraus da escada e se encaminhava rumo ao porão. Os pés estavam descalços, a calça larga do pijama cinza era a única peça que vestia. Ele tentava não permanecer irritado. Felizmente a manhã estava morna e aconchegante, infelizmente ele também se culpava pela discussão.Forçando-se a se apegar aos seus planos mais otimistas, Matheus recordava que seria questão de apenas uma semana para que ele e Giovanna se tornassem oficialmente um casal. O rapaz queria que tudo fosse tranquilo
A lista perdida em algum canto precisou ser refeita, o banho em dupla carregou qualquer vestígio de mau humor para o ralo. Tudo estava bem agora, Matheus e Giovanna eram mais uma vez o que costumavam ser: um casal cúmplice e muito apaixonado. Ele estava de pé ao lado de seu carro, pronto para sair. Por mais que precisasse fazer isso, ainda abraçava a noiva pelo pescoço, admirando a bela paisagem do lugar. O rapaz ignorava sua morena tentando se afastar daquele abraço.— Tá me sufocando. — Ela disse em meio a sorrisos, desistindo por breves segundos de tirar os braços do amado de sobre si. Abraçou forte aquele amor, mostrando o quanto estava feliz por ter de volta quem conhecia.— Amor saudável não sufoca, protege… — Foi a resposta dele enquanto a libertava apó
A mobília e as caixas iam pouco a pouco ocupando o salão vazio. Giovanna guiava as ações dos trabalhadores com uma liderança nata, uma boa liderança inclusive, já que sabia ser agradável ao mesmo tempo que mestrava as ações dos outros. Vantagens de uma psicóloga. Ela era o oposto de Lucinda, definitivamente, isso Matheus reconhecia e fora esse mais um motivo que fizara com que o rapaz se apaixonasse por ela. Giovanna era o oposto de uma megera abusiva e ele sempre precisou muito disso.A morena se mostrava tão concentrada que durante muito tempo sequer pensou na falta de itens em sua despensa. Ela conversou animadamente com Álvaro, Josias e Sillas, deixando todos à vontade. Foi apenas quando tudo estava finalizando que o pensamento bateu. Para não ficar com a consciência pesada, ofereceu água e algumas notas além do combinado. Os homens r
Toda ansiedade e medo fez com que buscasse o inútil. Giovanna ainda insistiu em uma nova ligação várias e várias vezes, até desistir, sair da banheira e vestir-se com um roupão. Não conseguiria nada estando parada. Estava apavorada, nem um pouco disposta a se tornar refém das sombras. Permanecia com seu celular quando decidiu ir ao porão, mantinha a esperança de encontrar algum sinal. Enquanto descia as escadas ela ainda tentou acessar a internet, o que obviamente não funcionou. A morena sentiu o aperto no peito quando em sua mente a certeza passou a assombrá-la, estava completamente sozinha e sem meios de comunicação. Desesperada, chegou ao cômodo pretendido, desconhecendo seus segredos, prestes a entrar no local enquanto tudo ainda permanecia bem iluminado.Giovanna parou diante das escadas, virando seus olhos para todos os cantos. Apressou-se em descer os degraus, apoiando sua mão esquerda contra a parede. A visão que tinha nos primeiros segundos era apenas daquilo qu
Por consideráveis segundos Giovanna tateou o escuro, o piso gelado. Para seu desespero não encontrou nada e quando se ergueu, sentindo-se profundamente derrotada, já sentia o ar faltar, estava abafado ali dentro. Convencida de que não poderia fazer muita coisa, decidiu subir as escadas e sair daquele lugar. Pegaria uma vela na cozinha e iria para seu quarto ou talvez voltasse para o porão no caso de encontrar alguma coragem. Na verdade tinha certeza de que isso seria muito difícil de acontecer, impossível na verdade. Aquele lugar fazia com que se sentisse estranha… Os pêlos da nuca já arrepiavam, a energia ali não era positiva.Giovanna se virou na direção de onde deveria estar as escadas, bateu contra alguma coisa, tropeçou em outra, colocou suas mãos para frente, teve cuidado onde posicionava seus pés. Então começou a caminhar como uma cega e era exatamente dessa forma que se sentia naquele instante. A morena não conseguia identificar nada além da escuridão. Caminhou c
FLASHBACK20 anos atrásNão havia música, mas ela dançava ao som dos sussurros em sua mente. As mãos estavam erguidas para o teto, para o lustre, para o profano. Ela o venerava, enquanto em sua destra carregava uma adaga com pequenos resquícios de sangue. Lucinda girava pelo salão, os cabelos castanhos se erguendo e balançando ao ritmo de seus movimentos. O corpo estava nu e vários pequenos cortes haviam sido abertos. As grandes estátuas observavam a belíssima mulher de corpo perfeito. Aqueles olhos de pedra pareciam seguir a dança.Lucinda abaixou sua mão para talhar mais um corte. Este se abriu no centro de seu peito, percorrendo até poucos centímetros acima de seu umbigo. Um corte raso que não deixaria cicatrizes. Dele verteu o sangue maculado que banhou seu umbigo, seu ventre, seu sexo, suas coxas, indo mais além, até seus pés.As estátuas não podiam expressar suas emoções, mas os dois garotinhos presentes no local sim. Estavam apavorados, mais uma
Não seria possível definir quanto tempo havia se passado, quando ela acordou apenas viu que tudo permanecia escuro. Supôs não ter passado tanto tempo assim, na verdade torceu por isso. Sua cabeça latejava fortemente, além de todo seu corpo estar dolorido. Giovanna se moveu sobre o solo frio, deixando escapar gemidos, estava completamente zonza. Não conseguindo se pôr de pé, ela se sentou no chão, amparando-se contra algum móvel. A princípio a mente confusa não permitia que pensasse com clareza, aos poucos foi se organizando. E isso custou alguns minutos.Concluiu que ainda estava no porão da casa, havia sofrido um acidente e tudo continuava escuro. Precisava sair daquele lugar, buscar o hospital, a pancada em sua cabeça parecia ter sido forte ao ponto de embrulhar seu estômago. Mas ela ainda não conseguia se por de pé sem sentir tudo gira