Tudo estava acontecendo muito mais rápido do que ele temera. Agora Matheus carregava uma de suas pinturas malditas, ela aterrorizava sua noiva e não havia se passado nem mesmo um dia completo para que os pesadelos começassem. Pensando sobre isso, com o quadro nos braços e conseguindo driblar toda dificuldade de uma descida, o rapaz seguia pelos últimos degraus da escada e se encaminhava rumo ao porão. Os pés estavam descalços, a calça larga do pijama cinza era a única peça que vestia. Ele tentava não permanecer irritado. Felizmente a manhã estava morna e aconchegante, infelizmente ele também se culpava pela discussão.
Forçando-se a se apegar aos seus planos mais otimistas, Matheus recordava que seria questão de apenas uma semana para que ele e Giovanna se tornassem oficialmente um casal. O rapaz queria que tudo fosse tranquilo, mas contos de fadas nunca existiram, no máximo ele poderia esperar era uma fábula de terror sangrenta, obscura e depravada, representando todo o pilar execrável de sua família.
Por longos anos Matheus havia evitado encarar mais uma vez a realidade. Ela o derrubava na cama, esmagando-o e tirando seu ar, impedindo que vivesse como alguém comum. O rapaz até mesmo havia conseguido afastar seus assombros por certo tempo, no entanto não podia mais seguir naquela fuga. Quem o havia ajudado agora corria riscos e nem desconfiava. Estava sim acontecendo. O próprio quadro em seus braços já passava a cumprir com as leis impostas pelo sobrenatural. Giovanna havia enxergado aquela força maldita, os sonhos dela já começavam a ser invadidos, ela ingressava na podridão de sua família e ele se perguntava se a mulher se perderia no caminho…
Sem ter como evitar, o rapaz se lembrou de seu irmão e da esposa dele, Letícia. A premissa de um livramento começou como um sonho. O primogênito deveria ser o escolhido, o favorito da mamãe, esse posto o mais novo abriria mão facilmente. Mas agora não havia mais notícias da "louca suicida". Letícia sumira, fora mais uma alma testada por longos anos, alguém acolhido com amor, mas que no fim perdera a batalha. Ela se mostrou ingrata e de sangue impuro. A mulher deveria pagar por isso, mas algo deu errado, a sua queda não cumpriu com o esperado. Ela deveria estar morta, mas de alguma forma a tradição havia se rompido. Um filho rebelde salvou a vida da mãe. Ele irritou Lucinda. Não era permitido quebrar com a ordem. O que estava firmado a acontecer deveria acontecer. Lucinda desejou. Letícia perdeu a sanidade, não foi digna de guardar os segredos. Ela tinha que ter morrido, mas uma falha negra nascera de seu ventre para desafiar toda família.
Pela tradição, pelo oculto e por tantas falhas a matriarca estava ainda mais exigente com Giovanna. A ambição da jovem psicóloga não era como a velha desejava e no fim, quando chegasse a hora, a rejeição deveria acontecer, afinal, nada ali era pra ser. Aquela casa deveria pertencer à Cristiano e sua família. Matheus, o filho mais novo e muito protegido, deveria ser livre, poder se casar e ser feliz com a mulher que amava.
Matheus acabava de descer as escadas do porão e estava prestes a largar seu quadro em qualquer lugar para apodrecer ali, no esquecimento. Ele olhou para besta e pensou no que ela representava. Aquele era seu maior medo infantil. O jovem Albuquerque temia se tornar aquilo que consumia sua casa e perpetuava a maldição. Ele olhou fundo para sua face no quadro, havia sido pintado com seu próprio sangue em um ritual. Se tudo desse errado, no fim se tornaria aquilo. Precisaria de Giovanna ao seu lado para alimentar uma criatura que o espreitava, desejoso por sua alma. Mas ela estaria disposta?
Matheus olhou para suas próprias cicatrizes, a adolescência havia sido uma época dura, um reflexo de sua infância caótica e desvirtuada. O primeiro corte foi aberto aos doze anos e desde então não parou. Por longos anos o rapaz pintou aquele quadro com vermelho, tentava assim se libertar dos traumas, mas tudo o que conseguiu foi um retrato de um possível futuro. E Giovanna o havia enxergado e ordenado que se livrasse dele. Matheus não conseguiria, não mais. Ele largou o quadro em um lugar qualquer, poderia acontecer qualquer coisa à pintura, seu destino já estava traçado.
Na cozinha Giovanna terminava sua extensa lista. Ainda se sentia preocupada pela discussão e como se não bastasse, recordava-se dos remédios na gaveta, do comportamento estranho de seu noivo. Até dias atrás pensava que tudo estava superado, os pesadelos dele, a ideia de que monstros assombravam sua vida e o observavam enquanto ele dormia. Para Giovanna seu noivo fora uma criança muito criativa, mas infelizmente de um jeito negativo. Matheus criava monstros e, no fim, não pôde contar tudo para ela porque… Trocou de psicólogo assim que começaram a namorar. O motivo que deu foi que desejava proteger a futura carreira da namorada. Até então ela acreditava nessas palavras.
A morena conferiu mais uma vez a lista no papel. Deveria ser mais um detalhe perfeito. Durante uma semana seria só ela a administrar aquela casa, precisaria deixar tudo em ordem quando sua sogra chegasse e com certeza Lucinda chegaria, só não tinha marcado uma data concreta. Giovanna até conseguia prever. A velha exigente estaria julgando cada centímetro daquela mansão, julgando como a futura nora estava se saindo. A morena já havia convivido com isso durante anos, mas agora se sentia diferente, a situação era diferente. E ela odiava se sentir nervosa por isso. Matheus apareceu na cozinha.
A bela morena estava apoiada sobre o balcão, concentrada nas linhas desenhadas e em seus pensamentos. Foi surpreendida por um abraço que envolveu sua cintura, lábios tocaram seu pescoço e ela ouviu ao pé de seu ouvido:
— Me desculpe por mais cedo, por favor.
Ela abriu um enorme sorriso. Estava sentindo falta daquele toque, daquele abraço. Havia feito tantos planos para a noite anterior e tudo o que conseguiu cumprir foi ter uma reconfortante noite de sono. Agora se sentia mais feliz por aquele gesto tão simples. Matheus sequer conseguia imaginar o quanto aquelas palavras melhoraram o dia da noiva. E não por serem um pedido de desculpas, mas sim por ela sentir que agora sim tinha seu noivo ali com ela.
— Eu acho que também não fui muito agradável… Desculpa. — Ela recostou sua cabeça contra o peitoral do amado.
— Não, não foi! Mas você só aproveita porque sabe que eu te amo. — Ele a virou para si, acariciando seus cabelos, sentindo seu cheiro, admirando todos seus traços. Recordou-se do motivo de ter se interessado à primeira vista por ela. Aqueles olhos escuros eram tão seguros, a pele morena era tentadora, os cabelos longos e cacheados fugiam de todo o padrão que havia sido obrigado a aceitar. Melhor foi descobrir a personalidade forte que tinha, não se deixava abater por nada e sempre guardava uma solução para tudo. Giovanna Teixeira se mostrou o que Matheus precisava, e na época ele ainda tinha a esperança de construir uma família normal, por isso não fugiu. Agora também não queria fugir, a tinha envolvida em um abraço forte, seus lábios se tocaram com calor e esbanjando uma paixão que mesmo após anos nunca se apagava. Sua vida com Giovanna nunca se tornava uma rotina e se não fosse toda maldição que envolvia a família, ali estariam eles, em uma casa enorme, vazia, com uma semana completa para aproveitarem o momento sem preocupações, sem trabalho. Se não existisse a mancha na família Albuquerque aquele casal seria apenas mais um casal comum, com privilégios sim, regalias que Matheus decidiu explorar naquele momento. Levantou aquele leve corpo e o colocou sobre o balcão, sentindo as pernas se envolverem ao redor de seu quadril. A beijou com uma intensidade desesperada, perguntando-se por quanto tempo a teria ao seu lado. Por quanto tempo ela se entrelaçaria ao seu corpo? Ele queria que fosse para sempre, mas se o para sempre fosse breve, que ele aproveitasse os últimos momentos então. E foi isso o que fez naquela cozinha, sobre o balcão, em uma manhã quente e iluminada, antes de sair para as compras.
A lista perdida em algum canto precisou ser refeita, o banho em dupla carregou qualquer vestígio de mau humor para o ralo. Tudo estava bem agora, Matheus e Giovanna eram mais uma vez o que costumavam ser: um casal cúmplice e muito apaixonado. Ele estava de pé ao lado de seu carro, pronto para sair. Por mais que precisasse fazer isso, ainda abraçava a noiva pelo pescoço, admirando a bela paisagem do lugar. O rapaz ignorava sua morena tentando se afastar daquele abraço.— Tá me sufocando. — Ela disse em meio a sorrisos, desistindo por breves segundos de tirar os braços do amado de sobre si. Abraçou forte aquele amor, mostrando o quanto estava feliz por ter de volta quem conhecia.— Amor saudável não sufoca, protege… — Foi a resposta dele enquanto a libertava apó
A mobília e as caixas iam pouco a pouco ocupando o salão vazio. Giovanna guiava as ações dos trabalhadores com uma liderança nata, uma boa liderança inclusive, já que sabia ser agradável ao mesmo tempo que mestrava as ações dos outros. Vantagens de uma psicóloga. Ela era o oposto de Lucinda, definitivamente, isso Matheus reconhecia e fora esse mais um motivo que fizara com que o rapaz se apaixonasse por ela. Giovanna era o oposto de uma megera abusiva e ele sempre precisou muito disso.A morena se mostrava tão concentrada que durante muito tempo sequer pensou na falta de itens em sua despensa. Ela conversou animadamente com Álvaro, Josias e Sillas, deixando todos à vontade. Foi apenas quando tudo estava finalizando que o pensamento bateu. Para não ficar com a consciência pesada, ofereceu água e algumas notas além do combinado. Os homens r
Toda ansiedade e medo fez com que buscasse o inútil. Giovanna ainda insistiu em uma nova ligação várias e várias vezes, até desistir, sair da banheira e vestir-se com um roupão. Não conseguiria nada estando parada. Estava apavorada, nem um pouco disposta a se tornar refém das sombras. Permanecia com seu celular quando decidiu ir ao porão, mantinha a esperança de encontrar algum sinal. Enquanto descia as escadas ela ainda tentou acessar a internet, o que obviamente não funcionou. A morena sentiu o aperto no peito quando em sua mente a certeza passou a assombrá-la, estava completamente sozinha e sem meios de comunicação. Desesperada, chegou ao cômodo pretendido, desconhecendo seus segredos, prestes a entrar no local enquanto tudo ainda permanecia bem iluminado.Giovanna parou diante das escadas, virando seus olhos para todos os cantos. Apressou-se em descer os degraus, apoiando sua mão esquerda contra a parede. A visão que tinha nos primeiros segundos era apenas daquilo qu
Por consideráveis segundos Giovanna tateou o escuro, o piso gelado. Para seu desespero não encontrou nada e quando se ergueu, sentindo-se profundamente derrotada, já sentia o ar faltar, estava abafado ali dentro. Convencida de que não poderia fazer muita coisa, decidiu subir as escadas e sair daquele lugar. Pegaria uma vela na cozinha e iria para seu quarto ou talvez voltasse para o porão no caso de encontrar alguma coragem. Na verdade tinha certeza de que isso seria muito difícil de acontecer, impossível na verdade. Aquele lugar fazia com que se sentisse estranha… Os pêlos da nuca já arrepiavam, a energia ali não era positiva.Giovanna se virou na direção de onde deveria estar as escadas, bateu contra alguma coisa, tropeçou em outra, colocou suas mãos para frente, teve cuidado onde posicionava seus pés. Então começou a caminhar como uma cega e era exatamente dessa forma que se sentia naquele instante. A morena não conseguia identificar nada além da escuridão. Caminhou c
FLASHBACK20 anos atrásNão havia música, mas ela dançava ao som dos sussurros em sua mente. As mãos estavam erguidas para o teto, para o lustre, para o profano. Ela o venerava, enquanto em sua destra carregava uma adaga com pequenos resquícios de sangue. Lucinda girava pelo salão, os cabelos castanhos se erguendo e balançando ao ritmo de seus movimentos. O corpo estava nu e vários pequenos cortes haviam sido abertos. As grandes estátuas observavam a belíssima mulher de corpo perfeito. Aqueles olhos de pedra pareciam seguir a dança.Lucinda abaixou sua mão para talhar mais um corte. Este se abriu no centro de seu peito, percorrendo até poucos centímetros acima de seu umbigo. Um corte raso que não deixaria cicatrizes. Dele verteu o sangue maculado que banhou seu umbigo, seu ventre, seu sexo, suas coxas, indo mais além, até seus pés.As estátuas não podiam expressar suas emoções, mas os dois garotinhos presentes no local sim. Estavam apavorados, mais uma
Não seria possível definir quanto tempo havia se passado, quando ela acordou apenas viu que tudo permanecia escuro. Supôs não ter passado tanto tempo assim, na verdade torceu por isso. Sua cabeça latejava fortemente, além de todo seu corpo estar dolorido. Giovanna se moveu sobre o solo frio, deixando escapar gemidos, estava completamente zonza. Não conseguindo se pôr de pé, ela se sentou no chão, amparando-se contra algum móvel. A princípio a mente confusa não permitia que pensasse com clareza, aos poucos foi se organizando. E isso custou alguns minutos.Concluiu que ainda estava no porão da casa, havia sofrido um acidente e tudo continuava escuro. Precisava sair daquele lugar, buscar o hospital, a pancada em sua cabeça parecia ter sido forte ao ponto de embrulhar seu estômago. Mas ela ainda não conseguia se por de pé sem sentir tudo gira
Giovanna aguardava ansiosa pela chegada do noivo. Desejava saber sobre seu estado, essa vontade era o que mais inquietava seu coração, tanto que a tinha feito se esquecer do desejo de seguir para bem longe daquela casa. Porém, Matheus demorava. As horas se arrastavam, fazendo toda a manhã se estender como um século. Giovanna sequer teve vontade de se levantar do sofá. Uma única vez a morena fez isso, precisou buscar o carregador e usar o banheiro, mas logo estava de volta, sentada de frente à porta, com seus olhos vidrados sobre ela. Tamanha ansiedade fazia com que batesse freneticamente seu pé contra o assoalho de madeira, no celular inúmeras chamadas não atendidas que a própria tinha feito."É normal. Devem ter muitas coisas para resolver." — Pensava ela a cada uma de suas chamadas que caíam na caixa postal. Passavam apenas cinco minuto
Giovanna permanecia abalada, agora dentro da biblioteca no primeiro andar. No local, estantes e mais estantes escuras, abarrotadas de livros desconhecidos, todos organizados cuidadosamente, naquele momento sendo as últimas coisas que tomariam o interesse da morena. Mais uma vez ela estava de pé e diante de Lucinda. Ao contrário das vezes anteriores, não se sentia irritada, tampouco corajosa. A mulher recordava das palavras da loira e de suas próprias ações. Lembrava-se da briga com Matheus no dia anterior, tudo por causa de um quadro que o próprio havia pintado e que, segundo Lucinda, tinha muita representação para ele. A velha não mentia nesse ponto, mas claro que manipulava a situação. E se deliciava ao ver a, talvez futura nora, daquele jeito.Lucinda confessava apenas a si que toda a força de Giovanna a incomodava. Ela não era como L