O que faz uma pessoa normal, levando em conta os padrões da sociedade que definem a palavra "normal", sair do conforto de seu lar e entrar com um contador Geiger no pescoço em um local contaminado e que provavelmente vai te matar ou deixar gravemente doente se você demorar muito tempo?
O que leva uma pessoa normal a fazer isso, eu não sei. Falo dessa forma porque não sou uma pessoa normal.
Mas eu era, até o dia 25 de Abril de 1986.
Existem muitos fatores que destroem o psicológico de alguém: perder alguém da família, se mudar, perder a casa, o trabalho, ver as pessoas que ama sofrendo, lidar com doenças... Eu passei por tudo isso, então posso justificar quando vos digo que não sou normal, mesmo tentando manter a aparência na frente dos outros.
Certa vez entrei em uma perfumaria em Kiev, e rapidamente me enturmei com mulheres e mocinhas que faziam suas compras. Me senti normal, naquele momento fazia parte daquele espaço, me comunicava com as pessoas. Era como se fosse a velha, ou melhor, a jovem Tamara antes do acidente. Mas uma simples pergunta me fez perder o chão e lembrar de tudo, de quem eu era e de onde vinha.
— Este perfume também é um dos meus preferidos. Não encontramos produtos como esse por preços tão baratos na Ucrânia.
— Parece ser Inglês.
A senhora que segurava o frasco a minha frente sorriu. Era gentil, e era quase estranho que alguém estivesse mantendo um diálogo saudável comigo, sem falar que sente muito ou perguntar se estou bem.
— Você é de Kiev?
Aquela simples pergunta era capaz de destruir meu dia. Algumas perguntas tem mesmo esse poder, como também quando perguntavam quantos filhos eu tinha.
— Não, sou de Slavutych.
Esfreguei minhas mãos nervosamente e encarei a senhora com um sorriso tímido, esperando o "sinto muito" ou alguma pergunta sobre Chernobyl. Mas ela apenas franziu o cenho e recolocou o perfume na prateleira, procurando outro que pudesse despertar seu interesse.
— Eu reconheço esse nome de algum lugar, mas não lembro bem. Onde fica Slavutych?
Slavutych era o único lugar que eu talvez pudesse chamar de lar, foi onde nos jogaram depois das evacuações e onde se pode encontrar os sobreviventes de Chernobyl. Escolheram essa cidade para nós, mas se eu pudesse ter escolhido na época iria para o mais longe possível de Chernobyl e da Ucrânia. Mas estávamos todos desnorteados, não tínhamos muita opção. Aquele lugar horrível construído as pressas para nos abrigar foi o que nos deram, e era tudo que tínhamos para tentar nos reconstruir. Uma população sem nada além de danos psicológicos, perdas e genética propensa ao câncer, todos unidos a 45 quilômetros da usina e sua antiga cidade, ajudando uns aos outros na tentativa de continuar sobrevivendo.
Felizmente a senhora não reconheceu que cidade era. Se tivesse reconhecido talvez saísse correndo com medo de alguma partícula radioativa que ainda existisse no meu cabelo passar para o dela. Digo esse absurdo porque fizeram antes, muitas vezes.
Para as pessoas eu ainda era radioativa, e para mim também.
Antes que ela perguntasse algo a mais, paguei o que tinha pego e saí da loja. Não pretendia chorar ou me deixar abater. Era só uma pergunta. E eu era só uma mulher passando um tempo na cidade da filha e comprando um perfume.
Antes de chegar na casa de Olga, que havia se mudado para Kiev há alguns anos, recebi uma ligação de Boris, meu marido. Ele não saia de Slavutych com muita frequência, sempre foi resguardado e havia ficado mais ainda depois da última cirurgia de tireoide. As vezes dizia que Slavutych era sua segunda Chernobyl, só que sem a usina. Qualquer pessoa de fora que ouvia isso ficava levemente pensativo e talvez com pena.
Sentei em um banco de madeira em uma pequena praça. Algumas crianças corriam para lá e para cá, o que sempre me arrancava um sorriso. Nós tínhamos uma praça como essa em Pripyat.
— Oi! Como está?
— Bem, assistindo ao jogo. Como Olga está?
— Muito bem.
Conversamos um pouco, pelo menos até começar a escurecer. Quando cheguei na casa de Olga a encontrei fritando ovos na cozinha enquanto seu marido, Ivan, assistia ao jogo de futebol. Provavelmente o mesmo que Boris.
— Eu trouxe o perfume que você pediu.
— Deixa na mesa!
Sorri para ela e fui ao banheiro, não sem antes observar como parecia feliz com a simples e corriqueira tarefa de cozinhar. Na maioria das vezes, Olga parecia ter esquecido o que aconteceu, mas eu sabia que não. Ela era só uma criança na época da explosão da usina, mas sei que nada havia saído de sua memória, pois as perdas dela foram até maiores que as minhas.
E pensar que naquela madrugada ela só tinha 10 anos de idade. 10 anos quando o inferno começou.
01:23.Foi o horário que acordei naquela manhã.Superstição ter prestado atenção nesse detalhe? Talvez uma pitada de loucura.Não importa, o fato é que depois de ver esse horário no despertador do quarto de hóspedes da casa de Olga não consegui mais pegar no sono.Andei frequentando psicólogos durante os últimos anos, de forma que com esforço adquiri o hábito de dormir sem medicamentos. Os pesadelos ainda existiam, mas pelo menos conseguia acordar sem gritar quando eles aconteciam, o que era um grande alívio para Boris.Após alguns minutos de contemplaç&
Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por
Após minha peculiar decisão ser tomada, fui à biblioteca pública e com a ajuda de um jovem e algumas burocracias consegui reservar minha visita pela internet e pagar com o cartão de crédito.Era estranho ter que pagar para entrar no lugar no qual vivi vários anos da minha vida, e ainda mais receber uma lista inteira de coisas que não se podiam fazer por lá.A van com destino a Chernobyl partiria de Kiev no dia seguinte, e eu havia sido a última pessoa a reservar lugar. Preferi fazer aquilo o mais rápido possível, para não correr o risco de desistir. Era bem provável que qualquer pessoa com essa brilhante ideia desistisse e cancelasse tudo, ainda mais uma pessoa que viveu pessoalmente as tragédias daquela cidade. Sendo assim, não era conveniente esperar nenhuma próxima viagem.E claro, nin
Enfim chegamos, eu ainda estava dentro da Van, não havia pulado para fora durante o trajeto. Fui a última a descer e me mantive de cabeça baixa. Chernobyl estava bem a minha frente, e eu não conseguia olhar. Não me atrevia a encarar.Era coisa da minha cabeça, eu sei. Mas eu podia sentir. Podia sentir a radiação queimando a minha pele, ou talvez até a minha alma.A fronteira estava logo ali, Ben tirava fotos de Hannah. Fiquei perto do casal, que deram as mãos e aguardaram o restante das instruções de Olena.— Pessoal, precisaremos seguir a trilha. Por favor não...Um soldado que guardava a fronteira arrastou Hannah e Ben para que pud
— Não sabe mesmo o que vai fazer quando sair do colegial, Tamara?— Eu não sei.Era de fato nosso último dia de aula. O último dia de aula do último ano. E eu era a única moça que não estava animada para por fim àquele ciclo. Sempre tive problemas com despedidas.— Meu pai quer que eu vá embora de Chernobyl.— Você quer ir embora daqui?Yulia me ofereceu seu melhor sorriso. O sorriso sonhador de qualquer jovem que sonhava em ir para Kiev, uma cidade independente, cheia de oportunidades e cuja a economia não dependia de uma usina.Não é que tivéssemos medo da usina. Naquele época não ligavamos muito para ela. Era só uma construção gigante que nem havia sido oficialmente inaugurada, e que boa parte dos nossos colegas queriam trabalhar. Não sabíamos sobre o veneno que era guardado lá dentro e os perigos que ela representava a nossa vida.Eramos apenas jovens comuns que dormiam nas aulas de química.— Eu quero muito ir embora daqui, e não
A piscina Azure era sinônimo de diversão na nossa cidade. Pelo menos para os jovens e aqueles que gostavam de nadar, como Yulia. Não estava sempre lotada, tirando nos finais de semana, e era bem conservada pela população.Algumas pessoas diziam que nossa piscina era tão importante para a cidade quanto a usina.Meio exagerado, mas pelo menos a piscina não matou ninguém.Duas semanas após o final da aulas Yulia me convidou a dá um mergulho, e acabei por aceitar, afinal os estudos dela em Kiev já estavam praticamente certos. Seria legal da minha parte passar o máximo de tempo ao seu lado.Desde muito jovem sempre fui mais observadora do que ativa, então apenas fiquei sentada enrolada em uma toalha enquanto Yulia nadava batendo de vez em quan
25 de abril de 1986 - Um dia antes da explosão na usina— Quando vamos poder brincar no parque?— Você viu a roda gigante? Aposto como a mamãe não vai nos deixar subir naquela altura.— Dependendo do comportamento de vocês, eu deixo.Aquele foi nosso último dia como uma família feliz, depois daquela madrugada tudo seria dor sofrimento e dúvida. Se eu soubesse que aquele era o último café da manhã em casa com meus filhos, não teria os mandado para a escola. E nem teria deixado Boris ir trabalhar. Nós teríamos tido o melhor dia de nossas vidas, e não mais um dia qualquer.Acho que já mencionei que o problema com as últimas vezes é que nunca sabemos quando elas estão acontec
Estavam todos dormindo quando aconteceu. Meus filhos, meu marido, e a maior parte da cidade estava adormecida naquela hora.Quanto a mim, tinha acabado por acordar uns 20 minutos antes. Chequei se estava tudo bem com as crianças e me distraí preparando um pouco de chá.Estava completamente alheia ao que aconteceria dentro de alguns minutos. A morte batia à porta de todas as casas de Pripyat, e se dirigia com uma rapidez inimaginável até a usina.O núcleo do reator nuclear da unidade quatro já estava condenado. A vida que existia em Chernobyl já estava condenada. Nem mesmo os operários sabiam o que estava havendo, e a radiação ainda iria nos espreitar por muito tempo antes de sabermos.Talvez seja minha imaginação, mas en