Narrado pelo ponto de vista do personagem Boris.
Tamara só me atendeu depois da quarta vez que liguei. Eu sabia que estava fazendo isso porque brigamos antes de eu vir de Brovary para Kiev me voluntariar, mas mesmo que ela só pensasse em me atender na décima vez, eu continuaria discando o número no telefone público até que a próxima pessoa da fila me acertasse uma pedra na cabeça.
— Sim?
— Senhor Igor, boa tarde. Passe para minha esposa, por favor. Aqui é o Boris.
— Que Boris?
O lado bom de se hospedar na casa do tio da Yulia era que ele sempre esquecia das brigas e confusões, o lado ruim é que também sempre se esquecia de você.
Narrado pela protagonista, Tamara.Eu não poderia dizer o que me doeu mais naqueles dias: saber que nunca iria voltar para casa, que Yuri podia ter câncer, que o filho da Yulia podia nascer com graves problemas ou que no meio de tudo isso Boris havia voltado para limpar Chernobyl.— Não faz sentido ele ter ido, já que não vamos voltar.— Você sabe porquê ele foi, seu marido é um herói. Eu teria feito o mesmo se não fosse a gestação da Yulia — Aleksey falou.— Slavutych... Será como uma sombra do que Chernobyl foi. Nunca será minha cidade.— Cui
Em 1987 nossa cidade da esperança estava pronta, ela havia sido construída as pressas para abrigar os sobreviventes e evacuados e por isso era horrível.Cada pais da União Soviética havia construído uma parte da cidade, e por esse motivo ela era bem bagunçada e as construções diversificadas. Era como se em uma rua você estivesse na Bielorrússia e na seguinte na Estônia.Eu sei que estava sendo mal agradecida, afinal ganhamos uma casa e não precisaríamos mais viver de favor, e até que nossa casa era de bom tamanho. Mas eu não conseguia simplesmente não comparar nossa refúgio com Chernobyl, e não deixava de pensar no fato de que eramos muito sortudos antigamente porque a região de Pripyat era um modelo de modernidade na Ucrânia Soviética.Slavutych era o que era, e nunca seria m
Levantei da cadeira e o mundo pareceu parar ao meu redor, corri atrás de Aleksey o mais rápido que pude, quase o alcançando.— Não sei o que fazer! — Aleksey gritou.O tempo parecia passar em câmera lenta enquanto corríamos até sua casa, as ruas distorcidas pareciam ficar cada vez maiores, como se não tivessem fim.— LIGA PRA EMERGÊNCIA!— O HOSPITAL MAIS PRÓXIMO FICA A HORAS DAQUI, NÃO SEI QUANDO VAI CHEGAR AJUDA!Se não estivéssemos em uma situação tão desesperadora eu teria gritado com ele, pois aquilo deveria ter sido previsto e eles deviam ter se preparado. Yulia nem deveria estar em Slavutych em uma época tão próxima de seu filho nascer.
Narrado pelo personagem Boris IvanovOlga e Tamara demoraram muito para voltar depois que saíram para o hospital, mas o que realmente me preocupou foi que não ligaram para dar notícias. Isso só me causou mais pavor, pois já estava esperando que algo horrível fosse acontecer, embora não soubesse exatamente o que seria.O tempo foi passando e quando estava prestes a sair procurando aquele hospital, as duas chegaram em uma ambulância. Quase desmaiei. Elas estavam calmas, mas não me enganei: estavam sedadas.— O que aconteceu!? — perguntei ao paramédico.— Elas estão bem. Só demos uma carona porque estão em choque e não podiam vir sozinha.— CHOQUE?
Narrado por Tamara IvanovComo conseguir continuar vivendo quando se decide morrer?Simples, você vive pelas pessoas que ama e não por si mesma. Mas e se você perdesse nesse meio tempo a pessoa que você mais ama?Quando Viktor Zelenski morreu, Lesya pôde finalmente dizer que estava sozinha no mundo. E mesmo com toda a minha dor eu pensei que ao menos ainda tinha minha família ao meu lado. E como Boris também havia sido liquidador, talvez em pouco tempo o infeliz destino de Viktor se repetisse com ele. Todos os momentos ao seu lado deveriam ser considerados dádivas, pois, dependendo da forma como a radiação se manifestasse em seu corpo, eu sentiria tanta pena que rezaria todos os dias para ele enfim morrer e sentir paz.Qu
Há três dias eu não sabia o que era uma comida descente ou um banho. Me recusei a sair do lado de Yuri. Não me afastei dele nem mesmo quando os médicos me aconselharam à sair para tomar um ar. Eu sabia que aqueles dias eram os últimos e não queria perder um segundo. Diferente de Boris que preferiu não ver o processo doloroso do câncer em uma criança de perto, eu não conseguia me afastar.A parte mais difícil foi quando ele parou de falar, de contar suas histórias ou fazer suas perguntas.Ele havia acabado de acordar, mas seus olhos ainda estavam meio fechados. Estava magro e pálido, os dedos se enrolando fracamente no lençol branco do leito. Seus lábios finos como uma linha escondiam um sorriso que não existia mais. Dá última vez que havia lhe dado um banho seu corpo estava tão pequeno que parecia ter encolhido. Foi a última vez que o peg
Esse capítulo não se trata de um flashback. Estamos agora no futuro (2016) enquanto Tamara está no tour em Chernobyl, logo após reviver as lembranças. Boa Leitura!— Aqui encerramos nosso passeio, a agência agradece a todos pela preferência. Esperamos que sua experiência em Chernobyl tenha sido a melhor possível. Agora vamos voltar para van, esperamos chegar em Kiev antes que escureça.Olena indicou o caminho para que voltássemos para a van novamente. Eu não sabia ao certo que horas eram, mas o sol estava baixo no céu e a luminosidade parecia diminuir aos poucos.Como eu me sentia?Essa é uma pergunta muito difícil de se responder. Não sei exatamente o que esperava indo até Chernobyl, eu simplesmente sen
Dois dias depois de entrar em Chernobyl, voltei para a Slavutych. Eu fugia do 26 de abril todos os anos, não gostava do ar fúnebre que a cidade tomava, dos discursos e das lamentações. Os mais velhos relembravam o passado sombrio e os mais novos ouviam as histórias com um lenço na mão. Todos iam ao memorial aos engenheiros e bombeiros que morreram por nós, rezar e deixar velas e flores.É um momento único. Algo que precisamos fazer e que ensinamos as crianças que deve ser feito. Enquanto uma pessoa deixar uma rosa para um bombeiro em 26 de abril, significa que nossa história ainda é importante para alguém, que ainda se lembram dos que partiram, dos que sobreviveram e que há uma esperança de mudança para os que ainda estão por vir.Eu sei que sou apenas uma mulher com uma história triste e com genética propensa ao câncer. Sei que não vão parar para me ouvir, para perguntar como consegui chegar até aqui e carregar comigo o peso do acidente nuclear todos esse anos. Se