Narrado por Tamara Ivanov
Como conseguir continuar vivendo quando se decide morrer?
Simples, você vive pelas pessoas que ama e não por si mesma. Mas e se você perdesse nesse meio tempo a pessoa que você mais ama?
Quando Viktor Zelenski morreu, Lesya pôde finalmente dizer que estava sozinha no mundo. E mesmo com toda a minha dor eu pensei que ao menos ainda tinha minha família ao meu lado. E como Boris também havia sido liquidador, talvez em pouco tempo o infeliz destino de Viktor se repetisse com ele. Todos os momentos ao seu lado deveriam ser considerados dádivas, pois, dependendo da forma como a radiação se manifestasse em seu corpo, eu sentiria tanta pena que rezaria todos os dias para ele enfim morrer e sentir paz.
Qu
Há três dias eu não sabia o que era uma comida descente ou um banho. Me recusei a sair do lado de Yuri. Não me afastei dele nem mesmo quando os médicos me aconselharam à sair para tomar um ar. Eu sabia que aqueles dias eram os últimos e não queria perder um segundo. Diferente de Boris que preferiu não ver o processo doloroso do câncer em uma criança de perto, eu não conseguia me afastar.A parte mais difícil foi quando ele parou de falar, de contar suas histórias ou fazer suas perguntas.Ele havia acabado de acordar, mas seus olhos ainda estavam meio fechados. Estava magro e pálido, os dedos se enrolando fracamente no lençol branco do leito. Seus lábios finos como uma linha escondiam um sorriso que não existia mais. Dá última vez que havia lhe dado um banho seu corpo estava tão pequeno que parecia ter encolhido. Foi a última vez que o peg
Esse capítulo não se trata de um flashback. Estamos agora no futuro (2016) enquanto Tamara está no tour em Chernobyl, logo após reviver as lembranças. Boa Leitura!— Aqui encerramos nosso passeio, a agência agradece a todos pela preferência. Esperamos que sua experiência em Chernobyl tenha sido a melhor possível. Agora vamos voltar para van, esperamos chegar em Kiev antes que escureça.Olena indicou o caminho para que voltássemos para a van novamente. Eu não sabia ao certo que horas eram, mas o sol estava baixo no céu e a luminosidade parecia diminuir aos poucos.Como eu me sentia?Essa é uma pergunta muito difícil de se responder. Não sei exatamente o que esperava indo até Chernobyl, eu simplesmente sen
Dois dias depois de entrar em Chernobyl, voltei para a Slavutych. Eu fugia do 26 de abril todos os anos, não gostava do ar fúnebre que a cidade tomava, dos discursos e das lamentações. Os mais velhos relembravam o passado sombrio e os mais novos ouviam as histórias com um lenço na mão. Todos iam ao memorial aos engenheiros e bombeiros que morreram por nós, rezar e deixar velas e flores.É um momento único. Algo que precisamos fazer e que ensinamos as crianças que deve ser feito. Enquanto uma pessoa deixar uma rosa para um bombeiro em 26 de abril, significa que nossa história ainda é importante para alguém, que ainda se lembram dos que partiram, dos que sobreviveram e que há uma esperança de mudança para os que ainda estão por vir.Eu sei que sou apenas uma mulher com uma história triste e com genética propensa ao câncer. Sei que não vão parar para me ouvir, para perguntar como consegui chegar até aqui e carregar comigo o peso do acidente nuclear todos esse anos. Se
Esse mês o acidente Nuclear de Chernobyl completou 30 anos.30 anos desde que abandonei meu lar, 30 anos desde que o pior dia da terra aconteceu.Há 30 anos atrás, eu não sabia que me encontraria nessa situação assustadora um dia. Andando pelas ruas da minha cidade completamente abandonada, radioativa e tomada por vegetação, sendo seguida por um grupo de turistas americanos e suas câmeras fotográficas.Ando pelos lugares e não os reconheço, e nos que reconheço sinto uma pontada no coração. Posso ver meus filhos correndo e brincando, minha família, meus amigos. Todos felizes naquele lugar que agora é envenenado e abandonado, marcado pela dor e polvilhado de placas de PERIGO.O clima é tenso. Os turistas comentam que sente
O que faz uma pessoa normal, levando em conta os padrões da sociedade que definem a palavra "normal", sair do conforto de seu lar e entrar com um contador Geiger no pescoço em um local contaminado e que provavelmente vai te matar ou deixar gravemente doente se você demorar muito tempo?O que leva uma pessoa normal a fazer isso, eu não sei. Falo dessa forma porque não sou uma pessoa normal.Mas eu era, até o dia 25 de Abril de 1986.Existem muitos fatores que destroem o psicológico de alguém: perder alguém da família, se mudar, perder a casa, o trabalho, ver as pessoas que ama sofrendo, lidar com doenças... Eu passei por tudo isso, então posso justificar quando vos digo que não sou normal, mesmo te
01:23.Foi o horário que acordei naquela manhã.Superstição ter prestado atenção nesse detalhe? Talvez uma pitada de loucura.Não importa, o fato é que depois de ver esse horário no despertador do quarto de hóspedes da casa de Olga não consegui mais pegar no sono.Andei frequentando psicólogos durante os últimos anos, de forma que com esforço adquiri o hábito de dormir sem medicamentos. Os pesadelos ainda existiam, mas pelo menos conseguia acordar sem gritar quando eles aconteciam, o que era um grande alívio para Boris.Após alguns minutos de contemplaç&
Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por
Após minha peculiar decisão ser tomada, fui à biblioteca pública e com a ajuda de um jovem e algumas burocracias consegui reservar minha visita pela internet e pagar com o cartão de crédito.Era estranho ter que pagar para entrar no lugar no qual vivi vários anos da minha vida, e ainda mais receber uma lista inteira de coisas que não se podiam fazer por lá.A van com destino a Chernobyl partiria de Kiev no dia seguinte, e eu havia sido a última pessoa a reservar lugar. Preferi fazer aquilo o mais rápido possível, para não correr o risco de desistir. Era bem provável que qualquer pessoa com essa brilhante ideia desistisse e cancelasse tudo, ainda mais uma pessoa que viveu pessoalmente as tragédias daquela cidade. Sendo assim, não era conveniente esperar nenhuma próxima viagem.E claro, nin