Esse mês o acidente Nuclear de Chernobyl completou 30 anos.
30 anos desde que abandonei meu lar, 30 anos desde que o pior dia da terra aconteceu.
Há 30 anos atrás, eu não sabia que me encontraria nessa situação assustadora um dia. Andando pelas ruas da minha cidade completamente abandonada, radioativa e tomada por vegetação, sendo seguida por um grupo de turistas americanos e suas câmeras fotográficas.
Ando pelos lugares e não os reconheço, e nos que reconheço sinto uma pontada no coração. Posso ver meus filhos correndo e brincando, minha família, meus amigos. Todos felizes naquele lugar que agora é envenenado e abandonado, marcado pela dor e polvilhado de placas de PERIGO.
O clima é tenso. Os turistas comentam que sentem uma vibração ruim no lugar, nossa guia explica os locais que visitamos. Alguém comenta que pode sentir a radiação no ar e que tem medo de passar mal, outro fala sobre a possibilidade de esbarrar em um animal monstro deformado pela radiação, embora nossa guia garanta de que isso é improvável e de que a viagem por qual pagamos é segura.
Em contrapartida, todos nós já vimos fotos de animais mutantes na internet, e o pior, pessoas afetadas. Eu vi pessoalmente.
Mas o que fazer? Voltar correndo para a Van e dizer que desiste do tour?
Se fomos loucos de entrar em Chernobyl, teremos que ser loucos para ir até o fim.
Seja por loucura, coragem, curiosidade, ou no meu caso, autoterapia duvidosa; agora nós estamos na cidade-palco do maior desastre nuclear da história. Um lugar que já foi considerado o mais perigoso da terra.
Eu sou Tamara Ivanov, estava em Pripyat em 26 de Abril de 1986, dia do acidente Nuclear de Chernobyl. Minha casa foi a coisa menos valiosa que tive que deixar para trás, e mesmo 30 anos depois eu ainda me sinto radioativa, marcada. Enfrentar a cidade fantasma de Chernobyl de perto foi uma das formas que achei de tentar conviver com o que aconteceu comigo e com minha família.
Para mim, esquecer não deu certo. Por isso resolvi tentar aceitar.
Mas as pessoas vão esquecer.
Daqui há milhares de anos, caso o ser humano ainda não tenha se destruído por completo, o governo, ou seja lá o que vai controlar a vida das pessoas nessa época, irá considerar Chernobyl habitável. E as pessoas virão, porque a humanidade é assim. Se esquecerão das mortes, do sofrimento, dos bombeiros enterrados em caixões de chumbo e cobertos por cimento; e tudo estará bem. Afinal, não haverão mais pessoas como eu vivas e o acidente será apenas um registro na história mundial, provavelmente pequeno e apagado se comparado com os outros que ainda virão.
A verdade é que vai acontecer de novo. Eu não sei onde e nem quando, mas vai acontecer, pois os humanos vão continuar brincando com o que não podem controlar. Continuarão tentando manipular coisas maiores e mais poderosas do que eles, mexendo com a natureza, buscando riquezas e destruindo vidas de pessoas como eu.
Outros acidentes.
Outros desastres.
Outras mortes.
Continuará acontecendo enquanto a humanidade estiver sobre essa terra, e o que nos resta é torcer para que desastres como o de Chernobyl não aconteçam com nossas futuras gerações.
Eu acho que Chernobyl foi amaldiçoada desde sua fundação.
E quem a amaldiçoou foi a própria humanidade.
O que faz uma pessoa normal, levando em conta os padrões da sociedade que definem a palavra "normal", sair do conforto de seu lar e entrar com um contador Geiger no pescoço em um local contaminado e que provavelmente vai te matar ou deixar gravemente doente se você demorar muito tempo?O que leva uma pessoa normal a fazer isso, eu não sei. Falo dessa forma porque não sou uma pessoa normal.Mas eu era, até o dia 25 de Abril de 1986.Existem muitos fatores que destroem o psicológico de alguém: perder alguém da família, se mudar, perder a casa, o trabalho, ver as pessoas que ama sofrendo, lidar com doenças... Eu passei por tudo isso, então posso justificar quando vos digo que não sou normal, mesmo te
01:23.Foi o horário que acordei naquela manhã.Superstição ter prestado atenção nesse detalhe? Talvez uma pitada de loucura.Não importa, o fato é que depois de ver esse horário no despertador do quarto de hóspedes da casa de Olga não consegui mais pegar no sono.Andei frequentando psicólogos durante os últimos anos, de forma que com esforço adquiri o hábito de dormir sem medicamentos. Os pesadelos ainda existiam, mas pelo menos conseguia acordar sem gritar quando eles aconteciam, o que era um grande alívio para Boris.Após alguns minutos de contemplaç&
Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por
Após minha peculiar decisão ser tomada, fui à biblioteca pública e com a ajuda de um jovem e algumas burocracias consegui reservar minha visita pela internet e pagar com o cartão de crédito.Era estranho ter que pagar para entrar no lugar no qual vivi vários anos da minha vida, e ainda mais receber uma lista inteira de coisas que não se podiam fazer por lá.A van com destino a Chernobyl partiria de Kiev no dia seguinte, e eu havia sido a última pessoa a reservar lugar. Preferi fazer aquilo o mais rápido possível, para não correr o risco de desistir. Era bem provável que qualquer pessoa com essa brilhante ideia desistisse e cancelasse tudo, ainda mais uma pessoa que viveu pessoalmente as tragédias daquela cidade. Sendo assim, não era conveniente esperar nenhuma próxima viagem.E claro, nin
Enfim chegamos, eu ainda estava dentro da Van, não havia pulado para fora durante o trajeto. Fui a última a descer e me mantive de cabeça baixa. Chernobyl estava bem a minha frente, e eu não conseguia olhar. Não me atrevia a encarar.Era coisa da minha cabeça, eu sei. Mas eu podia sentir. Podia sentir a radiação queimando a minha pele, ou talvez até a minha alma.A fronteira estava logo ali, Ben tirava fotos de Hannah. Fiquei perto do casal, que deram as mãos e aguardaram o restante das instruções de Olena.— Pessoal, precisaremos seguir a trilha. Por favor não...Um soldado que guardava a fronteira arrastou Hannah e Ben para que pud
— Não sabe mesmo o que vai fazer quando sair do colegial, Tamara?— Eu não sei.Era de fato nosso último dia de aula. O último dia de aula do último ano. E eu era a única moça que não estava animada para por fim àquele ciclo. Sempre tive problemas com despedidas.— Meu pai quer que eu vá embora de Chernobyl.— Você quer ir embora daqui?Yulia me ofereceu seu melhor sorriso. O sorriso sonhador de qualquer jovem que sonhava em ir para Kiev, uma cidade independente, cheia de oportunidades e cuja a economia não dependia de uma usina.Não é que tivéssemos medo da usina. Naquele época não ligavamos muito para ela. Era só uma construção gigante que nem havia sido oficialmente inaugurada, e que boa parte dos nossos colegas queriam trabalhar. Não sabíamos sobre o veneno que era guardado lá dentro e os perigos que ela representava a nossa vida.Eramos apenas jovens comuns que dormiam nas aulas de química.— Eu quero muito ir embora daqui, e não
A piscina Azure era sinônimo de diversão na nossa cidade. Pelo menos para os jovens e aqueles que gostavam de nadar, como Yulia. Não estava sempre lotada, tirando nos finais de semana, e era bem conservada pela população.Algumas pessoas diziam que nossa piscina era tão importante para a cidade quanto a usina.Meio exagerado, mas pelo menos a piscina não matou ninguém.Duas semanas após o final da aulas Yulia me convidou a dá um mergulho, e acabei por aceitar, afinal os estudos dela em Kiev já estavam praticamente certos. Seria legal da minha parte passar o máximo de tempo ao seu lado.Desde muito jovem sempre fui mais observadora do que ativa, então apenas fiquei sentada enrolada em uma toalha enquanto Yulia nadava batendo de vez em quan
25 de abril de 1986 - Um dia antes da explosão na usina— Quando vamos poder brincar no parque?— Você viu a roda gigante? Aposto como a mamãe não vai nos deixar subir naquela altura.— Dependendo do comportamento de vocês, eu deixo.Aquele foi nosso último dia como uma família feliz, depois daquela madrugada tudo seria dor sofrimento e dúvida. Se eu soubesse que aquele era o último café da manhã em casa com meus filhos, não teria os mandado para a escola. E nem teria deixado Boris ir trabalhar. Nós teríamos tido o melhor dia de nossas vidas, e não mais um dia qualquer.Acho que já mencionei que o problema com as últimas vezes é que nunca sabemos quando elas estão acontec