01:23.
Foi o horário que acordei naquela manhã.
Superstição ter prestado atenção nesse detalhe? Talvez uma pitada de loucura.
Não importa, o fato é que depois de ver esse horário no despertador do quarto de hóspedes da casa de Olga não consegui mais pegar no sono.
Andei frequentando psicólogos durante os últimos anos, de forma que com esforço adquiri o hábito de dormir sem medicamentos. Os pesadelos ainda existiam, mas pelo menos conseguia acordar sem gritar quando eles aconteciam, o que era um grande alívio para Boris.
Após alguns minutos de contemplação de minha própria fragilidade, desisti de procurar o sono nas profundezas da mente. Não era bom ficar parada apenas pensando, manter minha cabeça ocupada era uma preocupação constante. Afinal, almas machucadas precisam de agitação, pois ficando paradas se perdem em um lugar muito obscuro para saírem ilesas.
Tirei meu roupão da mala e peguei um cigarro da carteira, a noite estava muito fria para sair do conforto de casa e do alcance do aquecedor, mas indo até a sala de estar percebi que a porta para o jardim estava entreaberta. Olga podia estar acordada.
A grama recém-cortada estava molhada da chuva de dois dias atrás. Mais a frente, Ivan olhava as estrelas, também com um cigarro. Ele era uma pessoa considerada normal, então talvez sua alma pudesse se dar ao luxo de observar o céu noturno sem se partir.
Apesar de o pequeno espaço florido no fundo da casa pegar boa parte da iluminação dos postes na rua, ainda era possível identificar no céu algumas constelações. Tão longe dos humanos e consequentemente tão seguras.
Me aproximei de Ivan e toquei seu ombro.
— Sem sono?
— Sim.
— Está tudo bem?
— Eu que pergunto, por que não está no quarto com Olga?
Ivan tirou o isqueiro do bolso e me estendeu, acendi meu cigarro e ele jogou o dele antes de continuarmos a conversa.
— Gosto de vir até aqui a noite, para pensar.
— Dessa eu não sabia.
— Talvez seja um sintoma da faculdade de filosofia.
Nós dois sorrimos. Me concentrei em uma poça de água em meio a grama enquanto ele ainda olhava para o céu. Ivan Litvak havia sido uma luz na vida de minha filha. Sem ele, ela talvez ainda vivesse em Slavutych, e tudo que eu mais queria sempre foi afastar ela daquele lugar.
Os dois se conheceram na Universidade de Kiev Taras Shevchenko, um ano depois de Olga começar o curso de Artes. Depois da faculdade Olga ficou em Kiev com Ivan, e apesar do vazio que Boris e eu sentimos por nos mantermos afastados, ficamos felizes pelo progresso dela. Eu adoraria ter a oportunidade de me mudar para lá, perto da minha filha e longe da famosa "Cidade dos sobreviventes de Chernobyl" mas nosso financeiro não nos permitia, e mesmo querendo eu não podia fugir de quem eu sou.
Esquecer, sempre foi essa a minha busca. E lembrar sempre foi minha perdição.
— Quando pretende ir embora de Kiev?
— Já quer se livrar de mim?
— Claro que não, minha sogra. Mas fico pensando em Boris. Ele está mesmo bem sozinho?
— Ele se vira bem, e de qualquer forma só quero ficar mais alguns dias.
— Me preocupo com a saúde dele.
— Eu também.
Nos mantemos em silêncio. O sofrimento que Boris havia enfrentado com os dois tumores não havia sido fácil. Com minha depressão, Ivan assumiu um importante papel em nossas vidas cuidando dele. Algo pelo que eu devia agradecer a ele todos os dias.
— Não gosta de observar as estrelas, Tamara?
— Prefiro deixar minha mente sempre ocupada do que livre para pensar. Ontem mesmo comecei a observar um quadro na sua sala, e fiquei me perguntando se meus quadros e porta-retratos foram saqueados de Chernobyl, ou se ainda estão lá no mesmo lugar.
Ivan não respondeu.
— Seria uma volta no tempo, não acha? Ir até lá e entrar na minha antiga casa.
— Seria perigoso... E doloroso.
Percebi como ele ficava sem jeito para falar sobre aquele assunto. Eu sabia que ele se sentia privilegiado e até indigno de ter Olga como esposa, isso pelo simples fato de Chernobyl ter sido apenas mais uma notícia que leu no jornal.
Uma vez ele me disse que a nuvem radioativa havia feito toda a população da Ucrânia e da Bielorrússia terem sua cota de sofrimento. Depois percebi que ele se sentia fraco perto de mim, e que comparada a ele eu era uma lenda por ter passado por tudo que passei; pelo menos de acordo com suas convicções.
Não sei o que as pessoas veem de heróico no sofrimento humano.
— Uma vez a Olga me disse que minha vida ainda gira em torno de Chernobyl, que não consegui superar.
— Ela também não superou. Nem o mundo ainda superou.
— Tenho certeza que ela não pensa ou fala sobre isso o tempo todo.
— Hoje está frio. Vamos entrar e conversar lá dentro. Posso preparar um chá.
Seu desconserto ficou ainda mais evidente com aquelas palavras e resolvi não insistir naquele assunto. Ele não precisava e nem merecia compartilhar das minhas más experiências. E eu não queria que o sol nascesse presenciando meu choro em seu colo. Por isso, apaguei o cigarro e entrei. Acabei fazendo o chá eu mesma, e depois de fingir ter ido dormir, ouvi o som de seus passos subindo as escadas para o próprio quarto.
Há essa altura, já eram 03:48. Não custava nada esperar mais um pouco e depois levantar para fazer o café da manhã dos dois.
Peguei meu celular na mesinha de cabeceira e comecei a fazer pesquisas. Não sabia mesmo usar muitas outras funções de smartphones. Entrei em um site qualquer, e por fim, um maldito anúncio apareceu.
Excursão: Zona de exclusão de Chernobyl e Pripyat, saindo de Kiev.
Minha primeira ideia foi fechar. Eu sabia que o acidente havia se tornado alvo de curiosidade popular e no começo me incomodei um pouco. Mas o ser humano tinha mesmo a tendência a se interessar por esse tipo de coisa. Bom, pelo menos alguns.
Não estava com vontade de ver mais fotos da minha cidade destruída, e nem de pessoas sem noção que iam visitar o local e ficavam sorrindo e fazendo poses.
Eram basicamente um bando de jovens do século XXI fazendo poses de dança no cenário destruído do maior acidente nuclear da história, como se estivessem se divertindo sob os cadáveres de várias pessoas mortas e abrindo sorrisos em um lugar de grande sofrimento, apenas para postar em uma rede social ou se fazer de corajoso.
E claro, o governo faturava grana com isso. O turismo de Chernobyl lucrava. E não importava sob quantos cadáveres os turistas iam posar, eles estariam pagando pra isso.
O que deveria ser uma visita sobre conscientização, visando mostrar a todos as consequências da ambição humana e de sua insistência de mexer com o desconhecido, se transformou em um circo pra quem gosta de coisas macabras.
Isso me surpreendia cada vez mais.
Não acho que Chernobyl devia ser fechada aos visitantes, se for realmente seguro como dizem. Sobre isso, não posso opinar, não sou inteligente e pouco sei sobre ciência. Mas também me disseram no dia da explosão que estávamos seguros, então se me dizem que voltar lá hoje é seguro eu não acredito.
De qualquer forma, deviam avaliar se uma pessoa realmente tem bom senso antes de deixá-la entrar. Só para ter certeza de que ninguém fez uma pose sensual para uma foto no instagram sob o cadáver de outra pessoa.
Acabei entrando no anúncio, e sabendo que se eu tivesse interesse poderia entrar lá por um valor que eu tinha.
Mas por que faria isso?
Passei a minha vida toda tentando esquecer de Chernobyl, e cada vez mais percebia que estaria ligada até a morte àquele lugar. Então por que ter me interessado por voltar?
Talvez porque a única forma de conviver com o passado seja aceitando-o. E para aceitar precisamos enfrentar.
Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por
Após minha peculiar decisão ser tomada, fui à biblioteca pública e com a ajuda de um jovem e algumas burocracias consegui reservar minha visita pela internet e pagar com o cartão de crédito.Era estranho ter que pagar para entrar no lugar no qual vivi vários anos da minha vida, e ainda mais receber uma lista inteira de coisas que não se podiam fazer por lá.A van com destino a Chernobyl partiria de Kiev no dia seguinte, e eu havia sido a última pessoa a reservar lugar. Preferi fazer aquilo o mais rápido possível, para não correr o risco de desistir. Era bem provável que qualquer pessoa com essa brilhante ideia desistisse e cancelasse tudo, ainda mais uma pessoa que viveu pessoalmente as tragédias daquela cidade. Sendo assim, não era conveniente esperar nenhuma próxima viagem.E claro, nin
Enfim chegamos, eu ainda estava dentro da Van, não havia pulado para fora durante o trajeto. Fui a última a descer e me mantive de cabeça baixa. Chernobyl estava bem a minha frente, e eu não conseguia olhar. Não me atrevia a encarar.Era coisa da minha cabeça, eu sei. Mas eu podia sentir. Podia sentir a radiação queimando a minha pele, ou talvez até a minha alma.A fronteira estava logo ali, Ben tirava fotos de Hannah. Fiquei perto do casal, que deram as mãos e aguardaram o restante das instruções de Olena.— Pessoal, precisaremos seguir a trilha. Por favor não...Um soldado que guardava a fronteira arrastou Hannah e Ben para que pud
— Não sabe mesmo o que vai fazer quando sair do colegial, Tamara?— Eu não sei.Era de fato nosso último dia de aula. O último dia de aula do último ano. E eu era a única moça que não estava animada para por fim àquele ciclo. Sempre tive problemas com despedidas.— Meu pai quer que eu vá embora de Chernobyl.— Você quer ir embora daqui?Yulia me ofereceu seu melhor sorriso. O sorriso sonhador de qualquer jovem que sonhava em ir para Kiev, uma cidade independente, cheia de oportunidades e cuja a economia não dependia de uma usina.Não é que tivéssemos medo da usina. Naquele época não ligavamos muito para ela. Era só uma construção gigante que nem havia sido oficialmente inaugurada, e que boa parte dos nossos colegas queriam trabalhar. Não sabíamos sobre o veneno que era guardado lá dentro e os perigos que ela representava a nossa vida.Eramos apenas jovens comuns que dormiam nas aulas de química.— Eu quero muito ir embora daqui, e não
A piscina Azure era sinônimo de diversão na nossa cidade. Pelo menos para os jovens e aqueles que gostavam de nadar, como Yulia. Não estava sempre lotada, tirando nos finais de semana, e era bem conservada pela população.Algumas pessoas diziam que nossa piscina era tão importante para a cidade quanto a usina.Meio exagerado, mas pelo menos a piscina não matou ninguém.Duas semanas após o final da aulas Yulia me convidou a dá um mergulho, e acabei por aceitar, afinal os estudos dela em Kiev já estavam praticamente certos. Seria legal da minha parte passar o máximo de tempo ao seu lado.Desde muito jovem sempre fui mais observadora do que ativa, então apenas fiquei sentada enrolada em uma toalha enquanto Yulia nadava batendo de vez em quan
25 de abril de 1986 - Um dia antes da explosão na usina— Quando vamos poder brincar no parque?— Você viu a roda gigante? Aposto como a mamãe não vai nos deixar subir naquela altura.— Dependendo do comportamento de vocês, eu deixo.Aquele foi nosso último dia como uma família feliz, depois daquela madrugada tudo seria dor sofrimento e dúvida. Se eu soubesse que aquele era o último café da manhã em casa com meus filhos, não teria os mandado para a escola. E nem teria deixado Boris ir trabalhar. Nós teríamos tido o melhor dia de nossas vidas, e não mais um dia qualquer.Acho que já mencionei que o problema com as últimas vezes é que nunca sabemos quando elas estão acontec
Estavam todos dormindo quando aconteceu. Meus filhos, meu marido, e a maior parte da cidade estava adormecida naquela hora.Quanto a mim, tinha acabado por acordar uns 20 minutos antes. Chequei se estava tudo bem com as crianças e me distraí preparando um pouco de chá.Estava completamente alheia ao que aconteceria dentro de alguns minutos. A morte batia à porta de todas as casas de Pripyat, e se dirigia com uma rapidez inimaginável até a usina.O núcleo do reator nuclear da unidade quatro já estava condenado. A vida que existia em Chernobyl já estava condenada. Nem mesmo os operários sabiam o que estava havendo, e a radiação ainda iria nos espreitar por muito tempo antes de sabermos.Talvez seja minha imaginação, mas en
— A usina nuclear está pegando fogo! A usina nuclear está pegando fogo!Yuri varria para um canto os cacos de porcelana do carpete enquanto eu surtava.— Quer que eu acorde o pai?— Para que? Ele não é bombeiro.— A senhora está muito nervosa.— Isso pode ser perigoso.— Mas como pode ser perigoso? É só fogo. Os bombeiros vão apagar e amanhã vamos saber do que aconteceu.— Eu não sei, mas lá e um lugar que gera eletricidade. Esse incêndio pode se alastrar ou algo do tipo. E você ouviu a explosão.Yuri parou de varrer e ficou p