Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.
Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.
Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.
Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por trás dele havia dor escondida. Se eu houvesse visto teria me preparado para alguma possível conversa desconfortável que pudéssemos vir a ter.
Mas não percebi.
Todos sabemos que os sorrisos mais belos escondem por trás de si as maiores dores.
— Nós estamos pensando em adotar.
— Adotar?
— Sim. Ivan e eu conversamos e achamos a possibilidade viável, desde que ele consiga emprego para complementar nossa renda.
Fiquei em silêncio, não sabia o que dizer.
Minha filha era uma mulher perfeitamente fértil, mas mesmo assim...
— O que a senhora acha?
— Acho muito bom. Bem que vocês estão precisando da animação de uma criança por aqui. — Tentei sorrir, mas não conseguia ficar feliz. Eu havia tido a oportunidade de ser mãe, não fazia a menor ideia do sofrimento por qual Olga passou ao tomar a decisão de não ter filhos. Ao ser obrigada a tomar essa decisão. Não me sentia capaz de opinar naquele momento, mas no íntimo sabia que adotar uma criança seria ótimo para Olga, era sua melhor opção.
— Sabe, estou fazendo isso por causa do Ivan, é realmente muito importante pra ele. Deixei claro no dia do nosso casamento que não pretendia ter filhos.
— Não é porque você estava lá que seu filho vai nascer com alguma...
— Deformidade?
— Desculpe, não era a palavra que eu queria usar.
Talvez fosse melhor me calar, aquele era um assunto proibido entre nós. Era tão comum não falarmos sobre isso, que até evitávamos automaticamente conversar sobre qualquer coisa relacionada a crianças quando estávamos juntas.
Não era como se qualquer filho que Olga trouxesse ao mundo estivesse condenado a nascer com mutações causadas por sua exposição a radiação, principalmente com os cuidados e tratamentos que existem. Todo esse medo dela era resultado de ter visto o que aconteceu com o bebê de minha melhor amiga.
— Olga, eu sinto muito por aquele dia. Sinto muito por você ter visto o filho da Yulia.
— Eu sei...
— Eu não devia ter deixado você se aproximar, mas eu estava com ela. Mais do que todos ela precisava de ajuda naquele momento.
— A senhora acha que o fato de não querer ter filhos hoje tem relação com ter visto como o bebê da Yulia nasceu?
— Eu sei disso. Talvez você escolhesse correr o risco de uma gravidez se não fosse por...
— Não vamos falar sobre isso. Vamos aproveitar o tempo juntas, nos divertir.
A ideia de Olga de diversão se resumia a tentar reproduzir quadros famosos, ou fazer os seus próprios. Sua arte era linda, mas minha falta de jeito com pincéis me tornavam mais uma observadora do que participante ativa.
Entrei em um pequeno devaneio enquanto a observava pintar, não conseguia tirar o anúncio da visita a Chernobyl da cabeça. Eu sentia uma imensa vontade de voltar lá, e não sei como explicar isso.
Mas não pense, por favor, que estava entrando em uma fase crítica de loucura, ou que queria procurar minha velha casa e enlouquecer lá dentro, se é que ela ainda está inteira depois que a natureza e a vida selvagem tomaram conta da nossa cidade.
Você verá que durante o nosso passeio, serei a turista que menos trará problemas. Na verdade, meus colegas turistas foram interessados em ver a Chernobyl do futuro, depois do desastre. Já eu, fui em busca do passado. E foi no passado em que estive a maior parte do tour.
Sim, eu iria voltar lá.
Nesses trinta anos que tentei esquecer, tudo que experimentei foi dor, terapia e chorar escondida da minha família.
Talvez estivesse na hora de enfrentar.
É verdade, eu sou uma leiga em psicologia e essa minha ideia de entrar nas ruínas de meu pior pesadelo com certeza seria reprovada por profissionais qualificados e pela maioria das pessoas.
O que tenho a dizer em minha defesa, é que eu estava cansada de fugir do meu passado, de tomar ansiolíticos e fingir que não sei a dor que cada colega de Slavutych carrega nos ombros. Estava cansada de evitar assuntos, e cansada de correr para chorar quando alguém me perguntava onde eu morava ou quantos filhos tenho.
Faz parte da natureza do ser humano fugir do passado, apesar de ser ele o único responsável por nosso presente.
Mas será que é possível fugir do passado? E se for, será que isso é bom?
Se seria bom esquecer de tudo, eu não sei. Mas garanto que fugir do passado é impossível, pois foi somente ele quem criou a pessoa que me tornei hoje. Ele faz parte de mim. E mesmo que eu tente evitar certas conversas, uma hora ou outra ele vai aparecer.
Vai me dizer que minha filha tem medo de engravidar e ter um filho doente ou deformado.
Vai me dizer que eu sou de Slavutych, cidade dos evacuados e sobreviventes de Chernobyl.
O passado não pode me dizer quantos filhos eu tenho, mas pode dizer quantos eu tive. E talvez a única forma das coisas melhorarem, seja parar de fugir dele e o aceitar. Afinal, ele não vai a lugar nenhum, sempre vai estar aqui. Não pode ser alterado, e o que nós humanos, pequenos brinquedos do tempo podemos fazer, é aprender a conviver com ele.
— O que acha do quadro mãe? Eu devia usar cores mais escuras no oceano?
— O quê?
Olga riu.
— Nada, esquece.
E minha decisão de voltar a Chernobyl foi tomada.
Após minha peculiar decisão ser tomada, fui à biblioteca pública e com a ajuda de um jovem e algumas burocracias consegui reservar minha visita pela internet e pagar com o cartão de crédito.Era estranho ter que pagar para entrar no lugar no qual vivi vários anos da minha vida, e ainda mais receber uma lista inteira de coisas que não se podiam fazer por lá.A van com destino a Chernobyl partiria de Kiev no dia seguinte, e eu havia sido a última pessoa a reservar lugar. Preferi fazer aquilo o mais rápido possível, para não correr o risco de desistir. Era bem provável que qualquer pessoa com essa brilhante ideia desistisse e cancelasse tudo, ainda mais uma pessoa que viveu pessoalmente as tragédias daquela cidade. Sendo assim, não era conveniente esperar nenhuma próxima viagem.E claro, nin
Enfim chegamos, eu ainda estava dentro da Van, não havia pulado para fora durante o trajeto. Fui a última a descer e me mantive de cabeça baixa. Chernobyl estava bem a minha frente, e eu não conseguia olhar. Não me atrevia a encarar.Era coisa da minha cabeça, eu sei. Mas eu podia sentir. Podia sentir a radiação queimando a minha pele, ou talvez até a minha alma.A fronteira estava logo ali, Ben tirava fotos de Hannah. Fiquei perto do casal, que deram as mãos e aguardaram o restante das instruções de Olena.— Pessoal, precisaremos seguir a trilha. Por favor não...Um soldado que guardava a fronteira arrastou Hannah e Ben para que pud
— Não sabe mesmo o que vai fazer quando sair do colegial, Tamara?— Eu não sei.Era de fato nosso último dia de aula. O último dia de aula do último ano. E eu era a única moça que não estava animada para por fim àquele ciclo. Sempre tive problemas com despedidas.— Meu pai quer que eu vá embora de Chernobyl.— Você quer ir embora daqui?Yulia me ofereceu seu melhor sorriso. O sorriso sonhador de qualquer jovem que sonhava em ir para Kiev, uma cidade independente, cheia de oportunidades e cuja a economia não dependia de uma usina.Não é que tivéssemos medo da usina. Naquele época não ligavamos muito para ela. Era só uma construção gigante que nem havia sido oficialmente inaugurada, e que boa parte dos nossos colegas queriam trabalhar. Não sabíamos sobre o veneno que era guardado lá dentro e os perigos que ela representava a nossa vida.Eramos apenas jovens comuns que dormiam nas aulas de química.— Eu quero muito ir embora daqui, e não
A piscina Azure era sinônimo de diversão na nossa cidade. Pelo menos para os jovens e aqueles que gostavam de nadar, como Yulia. Não estava sempre lotada, tirando nos finais de semana, e era bem conservada pela população.Algumas pessoas diziam que nossa piscina era tão importante para a cidade quanto a usina.Meio exagerado, mas pelo menos a piscina não matou ninguém.Duas semanas após o final da aulas Yulia me convidou a dá um mergulho, e acabei por aceitar, afinal os estudos dela em Kiev já estavam praticamente certos. Seria legal da minha parte passar o máximo de tempo ao seu lado.Desde muito jovem sempre fui mais observadora do que ativa, então apenas fiquei sentada enrolada em uma toalha enquanto Yulia nadava batendo de vez em quan
25 de abril de 1986 - Um dia antes da explosão na usina— Quando vamos poder brincar no parque?— Você viu a roda gigante? Aposto como a mamãe não vai nos deixar subir naquela altura.— Dependendo do comportamento de vocês, eu deixo.Aquele foi nosso último dia como uma família feliz, depois daquela madrugada tudo seria dor sofrimento e dúvida. Se eu soubesse que aquele era o último café da manhã em casa com meus filhos, não teria os mandado para a escola. E nem teria deixado Boris ir trabalhar. Nós teríamos tido o melhor dia de nossas vidas, e não mais um dia qualquer.Acho que já mencionei que o problema com as últimas vezes é que nunca sabemos quando elas estão acontec
Estavam todos dormindo quando aconteceu. Meus filhos, meu marido, e a maior parte da cidade estava adormecida naquela hora.Quanto a mim, tinha acabado por acordar uns 20 minutos antes. Chequei se estava tudo bem com as crianças e me distraí preparando um pouco de chá.Estava completamente alheia ao que aconteceria dentro de alguns minutos. A morte batia à porta de todas as casas de Pripyat, e se dirigia com uma rapidez inimaginável até a usina.O núcleo do reator nuclear da unidade quatro já estava condenado. A vida que existia em Chernobyl já estava condenada. Nem mesmo os operários sabiam o que estava havendo, e a radiação ainda iria nos espreitar por muito tempo antes de sabermos.Talvez seja minha imaginação, mas en
— A usina nuclear está pegando fogo! A usina nuclear está pegando fogo!Yuri varria para um canto os cacos de porcelana do carpete enquanto eu surtava.— Quer que eu acorde o pai?— Para que? Ele não é bombeiro.— A senhora está muito nervosa.— Isso pode ser perigoso.— Mas como pode ser perigoso? É só fogo. Os bombeiros vão apagar e amanhã vamos saber do que aconteceu.— Eu não sei, mas lá e um lugar que gera eletricidade. Esse incêndio pode se alastrar ou algo do tipo. E você ouviu a explosão.Yuri parou de varrer e ficou p
Capítulo narrado pelo ponto de vista da personagem YuliaGlukhov.03 horas e 23 minutos antes da explosão.Quando terminei de me arrumar para o trabalho, o relógio se aproximava das 10 da noite. O uniforme branco do hospital se tornou apertado por conta dos 4 meses de gestação. Tentei ajeitar o crachá de recepcionista várias vezes acima do peito, mas aquilo parecia tão desconfortável naquele dia que o deixei sobre a cômoda.Enquanto terminava uns últimos retoques na maquiagem, fiz uma ligação para Aleksey, como de costume. Estava tudo normal até então. Pelo menos para mim. A mágica já estava aconte