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As crianças de Chernobyl - 2016

Passamos a manhã muito bem, consegui pegar um pouco no sono antes do nascer do sol, quando acordei Olga já tinha preparado o café e Ivan havia saído para procurar emprego.

Aproveitamos o tempo juntas, eu não estava vindo em Kiev com muita frequência e o trabalho dela na galeria de artes não permitia que fosse a Slavutych.

Resolvi que não iria falar sobre o anúncio e a ideia louca que me ocorreu de visitar Chernobyl, se algo sobre isso saísse da minha boca deixaria a pobre Olga assustada. Não quis estragar o sorriso que seu rosto trazia naquela linda manhã, que havia nos trazido um clima mais quente e agradável.

Queria ter percebido antes que o sorriso de Olga tinha um motivo em especial, e que por trás dele havia dor escondida. Se eu houvesse visto teria me preparado para alguma possível conversa desconfortável que pudéssemos vir a ter.

Mas não percebi.

Todos sabemos que os sorrisos mais belos escondem por trás de si as maiores dores.

— Nós estamos pensando em adotar.

— Adotar?

— Sim. Ivan e eu conversamos e achamos a possibilidade viável, desde que ele consiga emprego para complementar nossa renda.

Fiquei em silêncio, não sabia o que dizer.

Minha filha era uma mulher perfeitamente fértil, mas mesmo assim...

— O que a senhora acha?

— Acho muito bom. Bem que vocês estão precisando da animação de uma criança por aqui. — Tentei sorrir, mas não conseguia ficar feliz. Eu havia tido a oportunidade de ser mãe, não fazia a menor ideia do sofrimento por qual Olga passou ao tomar a decisão de não ter filhos. Ao ser obrigada a tomar essa decisão. Não me sentia capaz de opinar naquele momento, mas no íntimo sabia que adotar uma criança seria ótimo para Olga, era sua melhor opção.

— Sabe, estou fazendo isso por causa do Ivan, é realmente muito importante pra ele. Deixei claro no dia do nosso casamento que não pretendia ter filhos.

— Não é porque você estava lá que seu filho vai nascer com alguma...

— Deformidade?

— Desculpe, não era a palavra que eu queria usar.

Talvez fosse melhor me calar, aquele era um assunto proibido entre nós. Era tão comum não falarmos sobre isso, que até evitávamos automaticamente conversar sobre qualquer coisa relacionada a crianças quando estávamos juntas.

Não era como se qualquer filho que Olga trouxesse ao mundo estivesse condenado a nascer com mutações causadas por sua exposição a radiação, principalmente com os cuidados e tratamentos que existem. Todo esse medo dela era resultado de ter visto o que aconteceu com o bebê de minha melhor amiga.

— Olga, eu sinto muito por aquele dia. Sinto muito por você ter visto o filho da Yulia.

— Eu sei...

— Eu não devia ter deixado você se aproximar, mas eu estava com ela. Mais do que todos ela precisava de ajuda naquele momento.

— A senhora acha que o fato de não querer ter filhos hoje tem relação com ter visto como o bebê da Yulia nasceu?

— Eu sei disso. Talvez você escolhesse correr o risco de uma gravidez se não fosse por...

— Não vamos falar sobre isso. Vamos aproveitar o tempo juntas, nos divertir.

A ideia de Olga de diversão se resumia a tentar reproduzir quadros famosos, ou fazer os seus próprios. Sua arte era linda, mas minha falta de jeito com pincéis me tornavam mais uma observadora do que participante ativa.

Entrei em um pequeno devaneio enquanto a observava pintar, não conseguia tirar o anúncio da visita a Chernobyl da cabeça. Eu sentia uma imensa vontade de voltar lá, e não sei como explicar isso.

Mas não pense, por favor, que estava entrando em uma fase crítica de loucura, ou que queria procurar minha velha casa e enlouquecer lá dentro, se é que ela ainda está inteira depois que a natureza e a vida selvagem tomaram conta da nossa cidade.

Você verá que durante o nosso passeio, serei a turista que menos trará problemas. Na verdade, meus colegas turistas foram interessados em ver a Chernobyl do futuro, depois do desastre. Já eu, fui em busca do passado. E foi no passado em que estive a maior parte do tour.

Sim, eu iria voltar lá.

Nesses trinta anos que tentei esquecer, tudo que experimentei foi dor, terapia e chorar escondida da minha família.

Talvez estivesse na hora de enfrentar.

É verdade, eu sou uma leiga em psicologia e essa minha ideia de entrar nas ruínas de meu pior pesadelo com certeza seria reprovada por profissionais qualificados e pela maioria das pessoas.

O que tenho a dizer em minha defesa, é que eu estava cansada de fugir do meu passado, de tomar ansiolíticos e fingir que não sei a dor que cada colega de Slavutych carrega nos ombros. Estava cansada de evitar assuntos, e cansada de correr para chorar quando alguém me perguntava onde eu morava ou quantos filhos tenho.

Faz parte da natureza do ser humano fugir do passado, apesar de ser ele o único responsável por nosso presente.

Mas será que é possível fugir do passado? E se for, será que isso é bom?

Se seria bom esquecer de tudo, eu não sei. Mas garanto que fugir do passado é impossível, pois foi somente ele quem criou a pessoa que me tornei hoje. Ele faz parte de mim. E mesmo que eu tente evitar certas conversas, uma hora ou outra ele vai aparecer.

Vai me dizer que minha filha tem medo de engravidar e ter um filho doente ou deformado.

Vai me dizer que eu sou de Slavutych, cidade dos evacuados e sobreviventes de Chernobyl.

O passado não pode me dizer quantos filhos eu tenho, mas pode dizer quantos eu tive. E talvez a única forma das coisas melhorarem, seja parar de fugir dele e o aceitar. Afinal, ele não vai a lugar nenhum, sempre vai estar aqui. Não pode ser alterado, e o que nós humanos, pequenos brinquedos do tempo podemos fazer, é aprender a conviver com ele.

— O que acha do quadro mãe? Eu devia usar cores mais escuras no oceano?

— O quê?

Olga riu.

— Nada, esquece.

E minha decisão de voltar a Chernobyl foi tomada.

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