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Capítulo 2: Memórias Queimadas

LANA MARTINS

Enquanto me maquio, minha imagem reflete no espelho da pequena penteadeira. Meus olhos, grandes e profundos, trazem uma expressão endurecida, como se tivessem aprendido a carregar muito mais do que alguém de vinte anos deveria. Meus cabelos encaracolados, agora presos em tranças apertadas, caem em torno do meu rosto, destacando as maçãs do rosto marcantes. Mas, por mais que tente me concentrar, as lembranças do acidente me perseguem sem piedade nesta noite silenciosa. Sentada aqui, ancorada na minha realidade, me perco no passado, revivendo o momento que mudou tudo.

~ Flash On ~

Naquela época, eu ainda trabalhava como garçonete e, apesar dos meus dezenove anos, todos me consideravam responsável e comprometida, mas, acima de tudo, ansiosa para melhorar de vida e ajudar minha família. Minha rotina era simples, quase previsível, entre a casa e o trabalho, e meu maior desejo era um futuro tranquilo ao lado dos meus pais e de Ana, minha irmãzinha.

Ana, com apenas cinco anos, era cheia de energia, com olhos castanhos vivos e cachinhos que caíam ao redor do rosto como pequenas molas. Sempre tinha um sorriso cativante e estava em busca de novas descobertas, fosse um brinquedo simples ou a menor das aventuras. Eu a adorava; sempre levava algo para ela no final do expediente, como um doce ou uma revistinha para pintar. Mesmo com a diferença de idade, éramos inseparáveis, e eu sentia um impulso imenso de protegê-la de tudo.

Naquela tarde, porém, tudo mudou. Estava no meu turno habitual, organizando pedidos e atendendo as mesas, quando meu chefe me chamou. A expressão dele estava carregada de seriedade.

— Lana, preciso que venha ao escritório. Tem alguém para falar com você.

Com meu coração acelerado, segui para o escritório e, ao chegar, encontrei dois policiais, sérios, com os olhos fixos em mim. O mundo pareceu diminuir sob meus pés enquanto eles falam. Cada palavra soava como uma pedra fria.

— Seus pais estavam voltando de uma viagem quando o carro deles derrapou na pista. Tentaram desviar de outro veículo, mas perderam o controle... — A voz do policial ecoava na minha mente, abafada, distante.

Eu não conseguia me mover nem respirar. A notícia parecia irreal. Meus pais, a quem me despedi apressadamente naquela manhã, estão mortos. E Ana, está sozinha em casa. O desespero me dominou.

Sem rumo, fui para casa cuidar de Ana, que ainda não entendia o que havia acontecido. Na mente infantil dela, nossos pais estavam apenas "fora", em algum lugar de onde poderiam voltar. Eu tentava esconder o sofrimento para dar alguma estabilidade à minha irmã.

Naquela mesma noite, recebi um telefonema do assistente social. Ele explicou os procedimentos legais e informou que eu poderia me tornar a tutora de Ana, mas precisaria provar estabilidade financeira e responsabilidade. Aquilo me deixou apavorada. Eu era apenas uma garota que trabalha como garçonete — como poderia cuidar de uma criança?

O peso da responsabilidade me esmagava. Sabia que não poderia pagar a educação de Ana com o salário que recebia, muito menos oferecer a vida que desejava para ela. Quando descobri o internato e o custo das mensalidades, meu coração quase  parou, mas era a melhor opção que eu tinha. Me comprometi a visitá-la o máximo possível e garantir que ela tivesse o melhor que eu pudesse proporcionar. Mas até essa promessa parecia difícil de cumprir. Com o emprego modesto, as dívidas começam a crescer, e percebi que precisava encontrar algo que me permitisse ganhar mais.

~ Flash Off ~

Saio das lembranças, volto-me para o espelho com os olhos marejados. Eu queria que meus pais pudessem ver o quanto estou me esforçando — o quanto luto para garantir um futuro para mim e para Ana.

Respiro fundo, enxugo as lágrimas e me preparo para o próximo cliente. É um magnata do ramo imobiliário, um homem de meia-idade, elegante e sempre pontual. Ele vem todas as quartas, no mesmo horário, e já temos uma rotina que se repete sem falhas. Conversamos sobre amenidades; ele me pergunta um pouco sobre minha vida, mas nunca demais, como se houvesse um limite invisível que ele preferisse manter.

Ao entrar no salão, ele já está à minha espera. Ao me ver, sorri, e caminho até ele com a postura que ele espera.

— Boa noite, My Amore — diz ele, levantando-se e segurando minha mão para um beijo suave.

— Boa noite, Senhor. Como foi sua semana? — pergunto, tentando manter a conversa leve, mesmo com a emoção presa na minha garganta.

Ele se recosta no sofá, observando-me com aquele olhar calculado.

— Movimentada, como sempre. O mercado imobiliário nunca dorme. E a sua semana? — Ele sorri de lado. — Espero que esteja cuidando de si.

Concordo, e trocamos algumas palavras sobre as novidades da cidade. A conversa flui enquanto bebemos, com a mesma familiaridade de sempre, até que, em seu estilo característico, ele toca levemente meu rosto e me guia pelas escadas em direção aos quartos.

Nossa rotina é sempre a mesma: conduzo-o ao quarto, onde uma música suave toca, criando um ambiente calmo, e inicio a massagem. Ele aprecia o toque leve das minhas mãos e, vez ou outra, trocamos beijos delicados, quase ensaiados. Estamos juntos ali, mas com limites cuidadosamente estabelecidos.

E, como de costume, ele murmura baixinho:

— Não passaremos disso, My Amore.

Ele se afasta o suficiente para que eu veja o sorriso satisfeito, como se reafirmar aquilo fosse tanto uma promessa quanto uma garantia. Sorrio, um pouco resignada, aceitando o que ele sempre deixa claro.

— Eu sei, senhor. Você sempre deixa isso claro.

Ele inclina a cabeça, com aquele tom de brincadeira séria que lhe é tão característico.

— Porque sei que existe algo na sua vida que a faz olhar para o nada de vez em quando, como se estivesse em outro lugar. E eu... bem, eu respeito isso.

Surpresa com sua percepção, assinto, sentindo-me mais exposta do que jamais estive. Ele segura minha mão por um instante, um gesto simples, mas que parece quase protetor. Há uma gentileza ali, uma cortesia incomum que, de algum modo, começo a admirar, mesmo sabendo que esse é o máximo que nossa relação pode alcançar.

— Obrigada, Sr. Almeida, por compreender — sussurro, agradecida pelo entendimento silencioso entre nós.

Ele acena em resposta, e, ao sair, lança-me um último olhar, que parece dizer tudo e nada ao mesmo tempo.

A noite segue naturalmente, cliente após cliente.

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