O vento cortava a floresta como uma lâmina invisível, uivando entre as árvores altas, como se fosse uma criatura à procura de algo que perdera há muito tempo. Eu era pequena demais para entender o que acontecia, mas naquela noite tudo parecia estranho. Era como se a própria terra respirasse errado, inquieta. O medo se espalhava no ar, tocando cada folha, cada ramo, enquanto eu observava meus pais com os olhos arregalados.
Meu pai, Alistar, o antigo líder do Clã Lunar, mantinha os ombros rígidos, os olhos fixos no horizonte. Minha mãe, Lira, aparentava calma, mas sua expressão carregava uma gravidade que deixava meu peito apertado. Não compreendia o peso das palavras sussurradas dentro da nossa cabana de madeira, isolada no coração da floresta, mas sabia — com a certeza que só os instintos oferecem — que algo estava errado. A noite estava mais escura. Mais pesada. Como se o próprio céu conspirasse contra nós.
— Eles vão nos encontrar, Alistar— disse minha mãe, a voz baixa, mas carregada de presságio.
— Eu sei — ele respondeu, sombrio como a noite que se adensava ao nosso redor.
Ele se abaixou até mim e, ao tocar meu rosto, senti a força contida no gesto.
— Izzy, fique tranquila. Estamos fazendo o melhor por você. A Lua… ela nos guia.
Meus pais sempre diziam que eu era diferente. Especial. Mas nunca explicavam por quê. Naquela noite, no entanto, percebi que os segredos não poderiam ser guardados por muito mais tempo. O olhar de meu pai era grave, como quem prepara alguém para carregar um destino maior do que os próprios ombros podem suportar.
O medo era quase palpável. Eu não sabia o que ele significava, mas sentia que algo grande se aproximava. Algo irreversível. A escuridão parecia devorar a pouca luz ao redor, criando um mundo onde o desconhecido ditava as regras.
Tudo começara quando completei três anos. Foi naquela idade que ela apareceu — minha loba. Freiren. Uma criatura de pelagem branca como a neve e olhos profundos como o inverno. Diziam que não era comum os Lycans se conectarem tão cedo aos seus lobos interiores. Mas comigo… foi diferente. Sempre foi.
A primeira vez que a vi, soube imediatamente que minha vida jamais voltaria a ser a mesma. Ela se aproximou em silêncio, mística, como se tivesse esperado o momento exato para surgir. Nosso vínculo foi instantâneo. Intenso. Uma conexão que escapava ao natural. E, por isso mesmo, foi vista como aberração.
O clã, mesmo os mais sábios, rejeitou o que não compreendia. Meus pais, marcados pelo medo e pela coragem, decidiram me proteger da única forma que podiam: fugindo. Deixaram para trás o clã, a liderança, a vida em comunidade. Construíram uma cabana na floresta, longe de olhares curiosos, onde me ensinaram a esconder o que eu era. A ocultar Freiren. A fingir que não havia lobo dentro de mim. E então um dia, eu simplesmente a deixei de ouvi-lá dentro de mim.
Aprendi cedo a usar máscaras. A domar minha essência. Eles me diziam que era para o meu bem, mas eu sentia o peso de cada mentira. À medida que os anos passavam, crescia a certeza de que havia algo em mim que nem mesmo eles conseguiam entender — ou enfrentar.
Aos oito anos, já carregava a angústia de viver uma verdade silenciada. A floresta, com suas sombras e sussurros, era o único lugar onde eu sentia que poderia ser quem realmente era. E mesmo ela parecia respirar diferente nas noites de lua cheia. Nessas ocasiões, o medo em casa se tornava uma presença sólida, quase visível. Algo espreitava. Algo aguardava.
E naquela noite… o momento chegou.
Os primeiros rugidos vieram como ecos distantes. Mas logo se tornaram próximos. Vorazes. Senti meu corpo se tensionar, o instinto de Freiren despertando como uma labareda. Olhei para meus pais, que já se preparavam. Havia desespero nos olhos de mãe. Determinação sombria no rosto de meu pai.
— Eles estão aqui — ele murmurou, com a voz partida ao meio.
Me encarou então, e eu nunca esquecerei aquele olhar. Era despedida e amor em um só gesto.
— Corra, Isadora. Agora. Não olhe para trás.
Meu coração explodiu no peito. As pernas hesitaram, mas obedeci. O vento frio da noite mordia meu rosto enquanto eu corria floresta adentro. Queria gritar, voltar, abraçá-los… mas tudo que ouvia era a ordem em sua voz: corra.
Atrás de mim, o som da batalha se desenrolava num pesadelo de sangue e fúria. As criaturas surgiam como sombras, olhos dourados e vermelhos brilhando na escuridão. Meus pais resistiram como puderam. Mas sabíamos… sabíamos que não havia vitória naquela luta.
Quando o silêncio caiu, foi como se o mundo tivesse sido engolido. Um silêncio denso, profundo, final.
Continuei correndo. O corpo em choque, os pés movendo-se por instinto. Não sabia para onde ia. Só sabia que precisava fugir. Quando cheguei a um riacho, as pernas cederam. Cai de joelhos. As lágrimas vieram, quentes e salgadas, misturando-se à água gelada. Não sabia se chorava pelos que perdi… ou pelo vazio que se abria dentro de mim.
Horas depois, fui encontrada à beira da floresta. Quase inconsciente. O Clã Lunar me acolheu sem saber o que carregava comigo. Sem entender o laço profundo entre mim e a loba branca que um dia os aterrorizou. Me trataram como órfã. Como sobrevivente. Mas o destino… ah, ele sempre soube a verdade.
Cresci entre eles, protegida pelas mesmas leis que um dia expulsaram meus pais. Mas dentro de mim, Freiren uivava por liberdade. Por verdade. Por justiça. Um dia, me tornaria alguém que desafiaria os próprios deuses, que rasgaria os fios do destino com as garras da vontade.
Mas o preço seria alto.
E a Lua… a Lua sempre soube. Ela apenas esperava. Esperava o momento certo para revelar seu verdadeiro rosto. E o que estava por vir, eu sequer ousava imaginar.
Dez anos.Dez longos anos desde que o sangue de meus pais manchou a floresta.Dez anos de sombras e silêncio, onde a solidão se fez minha única companheira, e a culpa, meu inimigo mais fiel.A magia que envolvia minha infância se dissolveu. O mundo, agora sombrio, me devolveu uma mulher feita — marcada por um destino que jamais escolhi.Minha rotina era previsível, e até o desconforto me parecia confortável. O trabalho como empregada na casa do Alfa dos Clãs, aquela mansão de pedra e madeira na borda da floresta, era tanto meu refúgio quanto minha prisão.Movia-me como um fantasma, varrendo corredores, servindo refeições, tentando ser invisível — sempre esperando a Lua me chamar.Mas ela não o fazia mais.Apenas me observava, silenciosa, como se soubesse que eu ainda não estava pronta para o que viria.Vivia entre os lobos, mas não era deles. Para todos, eu era apenas uma órfã resgatada após o ataque do Clã Selvagem.Sem passado. Sem nome.Mas dentro de mim queimava algo — uma força in
A mansão estava silenciosa quando a noite finalmente caiu. As paredes, feitas de pedra fria, mantinham os ecos dos passos que, durante o dia, se haviam apressado pelas imponentes escadas e corredores. Agora, o único som era o vento que assobiava entre as frestas das janelas, como se a própria casa estivesse respirando. Eu estava sozinha em meu quarto.O quarto. O único lugar no mundo onde eu realmente sentia que podia respirar. Mas, ao mesmo tempo, era o lugar que mais me lembrava de quem eu era — ou melhor, de quem eu não era.A cama simples no chão, um colchão de palha velho que mal conseguia esconder as rachaduras do piso de madeira, era tudo o que eu tinha. Não havia luxo. Não havia conforto. Apenas a solidão e o vazio que eu carregava dentro de mim todos os dias.Durante o dia, minha vida era uma rotina sem fim. Acordava antes do amanhecer para começar as tarefas na mansão. Limpava, cozinhava, fazia o que fosse necessário para manter as coisas em ordem, tudo sem ser notada. O tra
O som dos passos apressados ecoava pelos corredores da mansão, mas eu não me movi. Estava parada na janela de meu quarto, olhando para o luar, perdida em meus próprios pensamentos. Lá fora, a floresta parecia tranquila, mas dentro de mim tudo estava em ruínas. O vínculo, a dor, o sofrimento que me consumiam — parecia que a lua havia se afastado de mim, deixando-me à deriva em um mar de desesperança.Eu sabia que algo estava por vir. Não sabia exatamente o quê, mas o clima dentro da mansão havia mudado. Havia uma tensão no ar, algo pesado, como se a própria terra estivesse se preparando para um grande acontecimento.Então, ouvi os passos dele. Rafael. Como se o som de seus pés no piso de madeira soubesse exatamente quando ele me encontraria. Seu cheiro invadiu meus sentidos antes mesmo que ele chegasse à porta. Eu não me virei para olhá-lo, não queria enfrentar os olhos dele, aqueles olhos que, apesar de me rejeitarem, continuavam a me consumir com um poder que eu não conseguia ignorar
Eu não sabia o que esperar da cerimônia. Sabia apenas que seria um marco na minha vida, e não um marco qualquer. Era o tipo de evento que mudaria tudo. Ou, pelo menos, era o que o Clã esperava. O casamento de Rafael e Selene não seria apenas uma celebração de união. Seria uma afirmação do poder, da hierarquia, da separação entre os que pertencem e os que estão destinados a viver à margem.Minha mente estava um turbilhão de pensamentos enquanto eu me preparava, ou melhor, enquanto tentava me preparar para o que estava por vir. O vestido que me deram era simples, sem brilho, sem luxo. Nada mais do que um reflexo de minha posição dentro daquele mundo. Eu não era importante o suficiente para merecer algo especial.Naquela manhã, antes de sair para me juntar ao Clã, o silêncio no meu interior foi quebrado de maneira inesperada. Freiren, minha loba, a presença que eu sempre mantive escondida, que raramente falava comigo, apareceu em minha mente com uma clareza que me assustou. Sua voz era s
A cerimônia era tudo o que eu esperava e temia. A mansão do clã estava tomada por uma vibração frenética, lobos de todas as idades reunidos em celebração, aguardando o momento em que Rafael e Selene fariam seus votos sob a luz da lua. Eu os observei de longe, fingindo que estava ali apenas para cumprir o meu papel de empregada, mas o peso no meu peito era quase insuportável.Rafael estava deslumbrante em sua postura de líder, o Alfa que todos respeitavam. Ele falava com autoridade e charme, sorrindo para Selene como se ela fosse a única coisa que importava. Enquanto isso, eu era apenas uma sombra, um eco na periferia daquele mundo brilhante.Mas esta noite seria diferente.Essa noite eu seria finalmente livre.Freiren estava comigo, como sempre. Mas, ao contrário do habitual, sua presença não era silenciosa. Ela pulsava dentro de mim, ansiosa e determinada, como uma fera que esperou muito tempo para ser libertada. Suas palavras ecoavam em minha mente desde a manhã, me guiando, me prep
A floresta era um labirinto de sons e sombras, uma tapeçaria intricada tecida com o sussurro das folhas, o canto dos pássaros e o crepitar de galhos sob o vento. Mas, para Freiren, não era apenas um labirinto; era um lar. Cada galho quebrado sob suas patas, cada folha farfalhando ao toque do vento, cada aroma terroso que dançava no ar, tudo fazia parte de uma sinfonia complexa e harmoniosa que apenas ela entendia. Após anos aprisionada, escondida dentro de mim como uma chama adormecida, Freiren estava finalmente livre. A escuridão que a sufocava havia se dissipado, revelando uma força e uma determinação que eu mal podia imaginar.E ela corria. Corria com a força de mil tempestades, como se tentasse compensar todo o tempo perdido. Cada passo era uma declaração de independência, uma rejeição das correntes invisíveis que a prendiam. Todo o tempo em que passou aprisionada, observando o mundo através de uma janela embaçada, agora se transformava em pura energia, impulsionando-a para frente
A lua estava alta no céu, sua luz prateada banhando a floresta com um brilho etéreo. A escuridão ao meu redor parecia infinita, como se a noite nunca fosse chegar ao fim. Meu corpo, em forma lupina, se movia rápido, quase sem pensar. As folhas secas estalavam sob minhas patas, e o vento gelado cortava meu pelo negro como a noite. Há dias eu não descansava, mas sabia que não poderia parar. Não até encontrar as respostas que buscava. Não enquanto aquele fardo, aquela questão, ainda pairasse sobre mim como uma tempestade iminente.“Encontre sua Luna ou escolha uma loba do clã.”As palavras do conselho ecoavam em minha mente, sem cessar. A pressão que sentia aumentava a cada dia. Meus próprios guerreiros, aqueles que sempre me seguiram sem questionar, agora me olhavam com uma preocupação disfarçada, sussurrando entre si. Ser um Alfa sem uma Luna era um tabu para muitos. Não porque eu não fosse forte o suficiente ou incapaz de liderar. Não era isso. Mas matilha acreditava que a verdadeir
A chuva caía em torrentes, uma cortina incessante que envolvia a floresta. O som do impacto das gotas sobre as folhas e o solo parecia um tambor que batia furiosamente, refletindo o tumulto interno que tomava conta de mim. Cada gota era uma lembrança constante da nossa vulnerabilidade, um lembrete implacável de que estávamos sendo caçadas. O chão se transformava rapidamente em um emaranhado escorregadio de lama e folhas mortas. A cada passo, sentia a terra ceder sob minhas patas, dificultando ainda mais nossa fuga. Estávamos nos afundando no terreno traiçoeiro, mas não havia escolha. A perseguição estava mais próxima do que nunca, e a única chance de sobrevivermos era se conseguíssemos despistar os Rogue's que nos seguiam implacavelmente.A exaustão pesava sobre mim como uma mortalha. Cada músculo doía, cada respiração era um esforço. As batalhas recentes haviam nos cobrado um preço alto, deixando-nos à beira do colapso. Mas eu sabia que não podia ceder. Não podia permitir que o cansa