O cheiro de magia corrompida enchia o ar. Denso. Podre. Uma neblina púrpura rastejava pelo campo de batalha como uma serpente viva. Eu a sentia tentar se enroscar nas raízes da minha alma, mas a empurrei de volta com um rugido vindo do meu centro. Meu olhar atravessou o caos até encontrá-lo. Ele. O homem que um dia partilhou comigo o ventre. O mesmo rosto, os mesmos olhos. Mas tão diferentes agora. Eu era lobo. Ele era sombra. Ele me viu também. E sorriu. Aquela curva fria dos lábios, que nunca pertenceu a mim. O sorriso que um irmão não deveria dar ao outro. Ele caminhou entre os corpos, abrindo espaço como se o próprio campo de batalha o temesse. — Caelum. — Sua voz era baixa, mas ressoava nos ossos. — Eu sabia que nos encontraríamos aqui. Parei à sua frente, firme. Os sons da guerra sumiram. Como se o mundo prendesse o fôlego. — Sempre soube que terminaria assim entre nós, irmão. — Ah, você sempre foi bom em prever tragédias, não é? — Ele deu um passo adiante. — Mas nunca
A terra parecia pulsar sob meus pés. O cheiro de magia corrompida se espalhava como veneno, encharcando o ar, pressionando contra minha pele como um peso invisível. Eu sentia Freiren se agitar sob minha carne, inquieta, pronta. Meus dedos apertavam com firmeza os cabos das espadas gêmeas, cada uma pulsando com minha energia, respondendo ao chamado do sangue. À minha frente, o campo se abria em um círculo silencioso. Os sons da guerra haviam se distanciado, como se o mundo entendesse que aquele instante exigia respeito. E ali, no centro de tudo, ele me esperava. O feiticeiro. Alto, magro como um galho seco, com olhos tão negros que pareciam fendas no tecido do mundo. Seu manto esvoaçava sem vento. A presença dele curvava o ar ao redor. Havia algo de impossível em sua forma — como se ele pertencesse a outro tempo, ou a nenhum. — Finalmente — ele disse, a voz ressoando como um sussurro dentro do meu crânio. — A herdeira do sangue antigo. A mãe das luas renascidas. Dei um passo
O silêncio depois da batalha era mais ensurdecedor que o próprio caos da guerra. Meus passos eram lentos enquanto caminhava de volta pela trilha marcada por magia queimada e terra revirada. O cheiro de sangue ainda pairava no ar, misturado ao aroma mais sutil das ervas que Lis deixara atrás de si — sinais da proteção mágica que ela conjurara para manter o campo seguro. Atrás de mim, cambaleante, o feiticeiro seguia preso por correntes encantadas. As runas brilhavam num tom prateado-violeta, selos ancestrais trançados por minha magia com a força de gerações. Ele não dizia uma palavra. O olhar vazio, como se finalmente compreendesse o peso de sua derrota. Ao longe, ouvi os primeiros sons do nosso acampamento. Vozes. Risos abafados. O choro de um bebê que provavelmente havia sido retirado às pressas durante o ataque. O som da vida persistindo, mesmo diante da morte. Respirei fundo. Atravessamos o último trecho de floresta até emergir na clareira onde nossos aliados estavam reuni
Dez anos depois O vento sopra suave no alto das colinas, trazendo consigo o perfume das flores silvestres que cobrem o campo. O céu está limpo, azul como as águas sagradas do lago da Lua, e o sol brilha com generosidade. As crianças correm entre as árvores, gargalhando, e seus risos se misturam ao som distante de tambores em celebração. Hoje é um dia de festa. Hoje celebramos paz. Estou de pé na varanda da mansão, observando os pequenos pés descalços cortarem a relva. Meus filhos, agora com dez anos, crescem com a força da linhagem que carregam no sangue e o brilho da magia ancestral nos olhos. Aurora tem o olhar de Caelum — firme, profundo — mas a sensibilidade da minha linhagem, capaz de sentir a energia do mundo como se fosse um segundo coração. Ela ainda prefere as flores às armas, mas Lis já a treina com feitiços antigos. Sua conexão com a Lua é intensa. Quando ela dança sob o luar, até os espíritos silenciam para assistir. Já Auren... ele é pura chama. Um guerreiro em cada
O vento cortava a floresta como uma lâmina invisível, uivando entre as árvores altas, como se fosse uma criatura à procura de algo que perdera há muito tempo. Eu era pequena demais para entender o que acontecia, mas naquela noite tudo parecia estranho. Era como se a própria terra respirasse errado, inquieta. O medo se espalhava no ar, tocando cada folha, cada ramo, enquanto eu observava meus pais com os olhos arregalados.Meu pai, Alistar, o antigo líder do Clã Lunar, mantinha os ombros rígidos, os olhos fixos no horizonte. Minha mãe, Lira, aparentava calma, mas sua expressão carregava uma gravidade que deixava meu peito apertado. Não compreendia o peso das palavras sussurradas dentro da nossa cabana de madeira, isolada no coração da floresta, mas sabia — com a certeza que só os instintos oferecem — que algo estava errado. A noite estava mais escura. Mais pesada. Como se o próprio céu conspirasse contra nós.— Eles vão nos encontrar, Alistar— disse minha mãe, a voz baixa, mas carregada
Dez anos.Dez longos anos desde que o sangue de meus pais manchou a floresta.Dez anos de sombras e silêncio, onde a solidão se fez minha única companheira, e a culpa, meu inimigo mais fiel.A magia que envolvia minha infância se dissolveu. O mundo, agora sombrio, me devolveu uma mulher feita — marcada por um destino que jamais escolhi.Minha rotina era previsível, e até o desconforto me parecia confortável. O trabalho como empregada na casa do Alfa dos Clãs, aquela mansão de pedra e madeira na borda da floresta, era tanto meu refúgio quanto minha prisão.Movia-me como um fantasma, varrendo corredores, servindo refeições, tentando ser invisível — sempre esperando a Lua me chamar.Mas ela não o fazia mais.Apenas me observava, silenciosa, como se soubesse que eu ainda não estava pronta para o que viria.Vivia entre os lobos, mas não era deles. Para todos, eu era apenas uma órfã resgatada após o ataque do Clã Selvagem.Sem passado. Sem nome.Mas dentro de mim queimava algo — uma força in
A mansão estava silenciosa quando a noite finalmente caiu. As paredes, feitas de pedra fria, mantinham os ecos dos passos que, durante o dia, se haviam apressado pelas imponentes escadas e corredores. Agora, o único som era o vento que assobiava entre as frestas das janelas, como se a própria casa estivesse respirando. Eu estava sozinha em meu quarto.O quarto. O único lugar no mundo onde eu realmente sentia que podia respirar. Mas, ao mesmo tempo, era o lugar que mais me lembrava de quem eu era — ou melhor, de quem eu não era.A cama simples no chão, um colchão de palha velho que mal conseguia esconder as rachaduras do piso de madeira, era tudo o que eu tinha. Não havia luxo. Não havia conforto. Apenas a solidão e o vazio que eu carregava dentro de mim todos os dias.Durante o dia, minha vida era uma rotina sem fim. Acordava antes do amanhecer para começar as tarefas na mansão. Limpava, cozinhava, fazia o que fosse necessário para manter as coisas em ordem, tudo sem ser notada. O tra
O som dos passos apressados ecoava pelos corredores da mansão, mas eu não me movi. Estava parada na janela de meu quarto, olhando para o luar, perdida em meus próprios pensamentos. Lá fora, a floresta parecia tranquila, mas dentro de mim tudo estava em ruínas. O vínculo, a dor, o sofrimento que me consumiam — parecia que a lua havia se afastado de mim, deixando-me à deriva em um mar de desesperança.Eu sabia que algo estava por vir. Não sabia exatamente o quê, mas o clima dentro da mansão havia mudado. Havia uma tensão no ar, algo pesado, como se a própria terra estivesse se preparando para um grande acontecimento.Então, ouvi os passos dele. Rafael. Como se o som de seus pés no piso de madeira soubesse exatamente quando ele me encontraria. Seu cheiro invadiu meus sentidos antes mesmo que ele chegasse à porta. Eu não me virei para olhá-lo, não queria enfrentar os olhos dele, aqueles olhos que, apesar de me rejeitarem, continuavam a me consumir com um poder que eu não conseguia ignorar