—Meus Deus, é igualzinho a você,Yara.
Yara revirou os olhos, ainda estava cansada e com um pouco de dor nos pontos de sua pequena laceração na região genital. A posição em que estava deitada não a ajudava a relaxar. Seus únicos acompanhantes pareciam disputar para ver quem a irritava mais com discussões ridículas.
— Pode parar, Gui, ele acabou de nascer, e aí você já vem falando com quem ele se parece, ele ainda tem a cara padrão de bebê.
Respondeu Ariadne irritada com a presença masculina no quarto da maternidade.
Yara Santos, tentou se ajeitar mais uma vez, vestida com uma camisola pós-parto e um roupão felpudo, ao lado da prima, Ariadne e o melhor amigo, Guilherme, olhavam para o pequeno bercinho próximo da sua cama. Pela primeira vez, ela se deu conta do apuro em que se meteu.
Tinha noção de que era mais uma mãe solo entre tantas no Brasil, porém durante toda a gestação estava mais preocupada em ficar saudável do que planejar o que viria a seguir. Olhou para o pequeno pacotinho enrolado em um cobertor amarelo. Ele dormia profundamente.
Daniel havia nascido de um parto natural que levou quase vinte horas desde as primeiras contrações até ele ser recebido pelos braços da mais nova mamãe. Estava sozinha em sua casa quando as contrações começaram, mas teve coragem o suficiente para ligar para a ambulância sozinha e para as únicas pessoas que não viraram as costas quando contou da gravidez.
Yara suspirou. Estava cansada, com um pouco de dor e medo.
Aquele pequeno serzinho de menos de três quilos era seu filho, começou a imaginar tudo que viria a enfrentar sozinha: as necessidades básicas, a educação, anseios e frustrações…
Uma lista interminável e que a assustava. Teria que resolver problemas que nunca imaginou ter que solucionar.
— Olhe aqui, Daniel tem sim uma carinha parecida com a sua, Yara — continuou Guilherme, mostrando com o indicador da mão. — Olhe o formato bem redondo dos olhos, os lábios bem vermelhinhos e pelo jeito os olhos serão claros iguais aos avós, mas os cabelos, pelo visto, ficarão castanhos claros como o do Leonardo...
Ariadne interrompeu Guilherme, balançando o dedo indicador no ar.
— Nada disso, Gui, eu como terapeuta infantil já vi milhares de bebês e eles mudam muito e bem rápido, Daniel pode ficar mais parecido com o Leonardo do que com a Yara.
Guilherme olhou com raiva para Ariadne, a sinceridade a flor da pele dela o deixava cada vez mais irritado.
— Deus é bom, Ele não vai deixar isso acontecer.
Guilherme respirava furiosamente enquanto Ariadne fingia que não se importava em continuar discutindo.
Yara estava pensativa, não importava com quem Daniel iria se parecer no fim das contas , mas que ele crescesse saudável e feliz era seu novo objetivo de vida.
Percebendo que logo o embate entre Guilherme e Ariadne iria ficar cada vez mais ferrenho e que talvez a enfermeira fosse ficar brava, Yara começou a bancar a diplomata, fingindo uma voz doce e calma.
— Sei bem que Leonardo foi o maior canalha que já vi na minha vida, mas não muda o fato dele ser o pai e contribuir com seus genes para Daniel...
— Continua sendo um babaca mesmo sendo o pai da criança — acrescentou a prima, rispidamente.
Yara continuou:
— …por isso não devemos brigar pelo que ele fez e sim dar atenção ao Daniel.
Guilherme bufou.
— Ah, deixa eu ver se entendi, o imbecil do seu ex namorado é um canalha com você, dá no pé na primeira oportunidade que tem e não podemos falar a verdade sobre ele? Conta aí o que ele fez quando você disse que estava grávida, o que foi mesmo? Poderia refrescar a minha memória?
Yara revirou os olhos, desejava esquecer o que havia escutado.Antes mesmo que pudesse responder, a voz feminina e anasalada da prima já tinha se adiantado.
— Ele disse que não era o pai e simplesmente pegou o primeiro ônibus interestadual e sumiu. A clássica fuga do canalha que descobre ser pai — interrompeu Ariadne.
— Sem nem um beijinho de adeus, isso até lembra o meu pai e você ainda fica usando a aliança que o otário te deu? — zombou Guilherme.
Yara olhou primeiro em direção a sua aliança de compromisso na mão direita, após mirou na prima e após alguns instantes para o melhor amigo. Sua prima mais velha era extremamente diferente dela, com seu rosto redondo, cabelos coloridos de rosa e olhos orientais. As pessoas ficavam surpresas com Ariadne, ainda que tivesse uma aparência adolescente, era dona da própria empresa de terapia infantil, além de ser corajosa e competente para ensinar lutas marciais para meninas em seu trabalho voluntário aos fins de semana.
Por outro lado, Guilherme era a imagem de competência, vestido com seu terno azul marinho, camisa social branca e gravata, fazia muito tempo que não atendia mais como terapeuta ocupacional em um ambulatório, havia trocado pelas salas de aula, tornou-se docente e coordenador do curso de Terapia Ocupacional da maior faculdade do estado.
Ele e Yara foram colegas na escola infantil, haviam feito tudo juntos até o ensino médio. Após cada um seguiu seu caminho, Guilherme foi para a Terapia Ocupacional, enquanto que Yara decidiu se tornar professora de literatura e resolveu aplicar-se para o curso de Letras.
Tanto a prima quanto o amigo foram o suporte emocional de Yara durante a gestação, considerava os dois como seu porto seguro após todos que conhecia terem virado as costas.
Mas, naquele instante, ambos a estavam deixando extremamente irritada. Massageou as têmporas em movimentos circulares, precisava manter-se calma para não ter um acesso de raiva no meio da maternidade e incomodar as outras pessoas. Com esforço enorme, tentou responder da maneira mais educada que pode.
— Olha, eu admito que o Leo não é um exemplo de nada nesta vida, mas sinto que vivemos um romance especial.
Ariadne revirou os olhos com desgosto, retrucou.
— Eu acho que só você viveu isso, afinal ele não se importou com sua vida em nenhum momento.
O que ela disse, parecia uma bofetada no rosto, o sangue ferveu de raiva mas ainda assim precisava manter o controle sobre si, cerrou os punhos com força. Respirou fundo e tentou contornar a situação que estava saindo do controle.
— Eu sei que vocês não gostavam dele, mas talvez Daniel sinta falta de uma figura paterna por perto— ponderou Yara, com calma — E, admito que eu também sentirei falta dele por perto.
Ariadne e Guilherme se entreolharam espantados, Yara percebeu o momento que a prima ficou vermelha de raiva e o melhor amigo parecia respirar cada vez mais fundo numa tentativa de manter a calma.
— Deixa eu ver se entendi, se eu ficar por perto de vocês não seria uma suposta figura masculina, apenas um enfeite na sua mente? —questionou Guilherme. — Ai amiga, pare com isso, as crianças precisam se sentir amadas e seguras, além do mais essa história de figuras masculinas ou femininas não funcionam desta forma.
Yara revirou os olhos, não era para ficar se chateando com discussões bobas no dia do nascimento do seu primeiro filho, era um dia para se comemorar. Uma dorzinha de cabeça começou a surgir e parecia que iria piorar caso a discussão continuasse. Precisava ser firme e dar um basta na situação.
— Pare de levar tudo para o lado pessoal, eu acho que uma criança precisa de um pai. — reiterou Yara— Em nenhum momento quis te ofender, Gui, eu apenas gostaria de ter alguém ao meu lado.
Ariadne balançou a cabeça de maneira negativa, ela gostava de discussões e não parecia sair afetada de nenhum conflito em que se metia. Yara por sua vez, apenas queria ficar em silêncio mas a prima não queria concordar com nenhuma das suas ideias.
— Com seu histórico de homens e seu “dedo podre” para se apaixonar, não acho que vai conseguir algum do jeito que espera — afirmou Ariadne.
Os três ficaram se olhando,Yara ficou surpresa, afinal sabiam bem do seu histórico amoroso, mas era primeira vez que ficava evidente que apenas se metia em relacionamentos tóxicos e abusivos.
O silêncio durou alguns instantes. O suficiente para Ariadne pensar em mais algum argumento para continuar a discussão.
— Ei, que tal Thais? — propôs Ariadne.
— Thais? —Yara ficou imóvel.
—Thais Pontes, sua vizinha da frente — expôs Ariadne com um grande sorriso malicioso.
Yara respondeu com uma cara feia para a prima.
—Tenho plena consciência de quem você está falando, só não sei porquê sugeriu uma mulher.
Não era mentira que já havia beijado algumas mulheres em festas ou que admirava outras, mas se relacionar com uma, aí já era demais para Yara.
— Não minta para nós, sabemos que é bisexual ou pan, tanto faz para gente— Ariadne alegou— Você só consegue mentir para a sua mãe e ela finge que acredita, apesar de tudo isso ainda acho que Thais seria uma esposa ótima para você.
Yara permaneceu imóvel e quieta, o suor começou a brotar em lugares inconvenientes, com as mãos trêmulas fingiu que se ajeitava na cama, não sabia que seu segredo era conhecido para eles.
Apesar da discussão, Daniel permanecia adormecido em seu bercinho. Ariadne sorriu triunfante, sabia que havia ganhado uma pequena vantagem. Guilherme encarou Yara, ele estava analisando o que poderia investir para conseguir um triunfo como Ariadne havia feito.
— Pelo que eu sei, ela é doce, inteligente, gentil e boa pessoa — expôs Guilherme com tranquilidade— me parece um modelo ideal de ser humano e não de figuras que sua mente retrógrada insiste em continuar.
A prima pegou o celular e começou a pesquisar nas redes sociais para mostrar mais detalhes sobre Thais. Virou a tela em direção a Yara e começou a apontar os pontos fortes.
— Eu como uma boa stalker, já fiz uma pequena investigação, descobri que ela é uma fisioterapeuta, tem sua própria clínica no centro da cidade— explicou Ariadne com tranquilidade— Além de que ela também dá alguns cursos de formação, ou seja ela é incrível e está ali, pertinho de você, o que é muito conveniente, basta atravessar a rua.
Antes mesmo que Yara pudesse abrir a boca, Guilherme colocou mais lenha na discussão:
— Aposto que ela seria uma ótima esposa, além do que eu li uma pesquisa esses dias sobre sexo entre mulheres, parece que são mais interessantes, se é que me entende…
Yara ficou olhando para os dois, estava incrédula demais para acreditar em tudo que estava ouvindo. A maternidade não era lugar para falar sobre sexo entre mulheres ou seu ex-namorado. A situação parecia não acabar nunca. Precisava de uma estratégia para derrotar os dois, sabia que eles adoravam ser polêmicos e disputavam entre si. Talvez se mentisse que concordava, a disputa poderia parar.
Resolveu jogar o jogo deles, mas antes precisava fingir de sonsa, Yara começou a questionar se estavam conversando sobre a mesma pessoa.
— Estamos conversando sobre Thais? Eu não consigo imaginar — replicou Yara.
Ariadne afirmou com a cabeça.
— Além de tudo isso, ela é gostosa.
Ariadne encarou Guilherme, parecia confusa com a última fala do amigo. Yara percebeu a confusão na face da prima, talvez eles começassem uma nova discussão em que a pauta não seria a sua vida.
— Gui, você não é gay?- Perguntou Ariadne perplexa.
— Claro que não, sou hétero apenas não sou um cara babaca como o Leo - explicou Guilherme.
O silêncio pairou no ambiente por alguns instantes, dando a Yara um momento para pensar em sua estratégia para acabar de vez com a disputa infantil. Decidiu ser sutil e ao mesmo tempo assertiva.
— Eu agradeço o apoio recebido, mas Thais é uma vizinha muito legal, mas eu gosto mesmo de pessoas com aquele quê de…
Ariadne bufou e interrompeu a prima.
— Canalha? Eu acho que ela pode te surpreender.
— Além de ser muito gostosa — sorriu Guilherme maliciosamente com o comentário.
Yara encarou os dois com cara feia, havia acabado de parir um filho, não estava interessada sobre qualquer possível relacionamento com a sua vizinha. Encarou seu bebê, tão pequeno e tranquilo, como poderia assumir o papel de mãe? Como iria cuidar de um ser tão indefeso e de si mesma? De onde tiraria tamanha força interior para essa tarefa? E o que significava aquela palavra tão pequena e com tamanho significado?
A noite estava tempestuosa.Os raios cortavam o céu e os trovões preenchiam os ouvidos de Thais Santos, enquanto ela lia um artigo científico no notebook sentada em sua cama. Estava terminando mais uma pós-graduação e finalizava um trabalho de conclusão.As luzes começaram a piscar, uma, duas, até que tudo se apagou.Um súbito arrepio percorreu toda a sua espinha, não se lembrava se havia salvo as atualizações feita no documento.Respirou fundo. Naquele momento não podia fazer nada a respeito disso. O som do vento balançando as árvores a deixavam ansiosa, além de que não gostava de ficar na escuridão. Lembrou-se de ter gua
Após retornar a sua casa, Thais foi trocar de roupa e depois procurou o seu gato, encontrou-o deitado parecendo uma bolinha no sofá da sala. Ela pegou um cobertor do quarto e se aconchegou perto dele. Apesar da chuva ter dado uma trégua, o vento congelante ainda açoitava a rua. Foi bom ter ficado próximo da Yara e de Daniel durante o pior momento da tempestade, aquilo tinha garantido um imenso alívio em seu coração. A verdade é que desde que se mudou para o bairro, vivia solitária com seu gato. Sabia que alguns vizinhos a chamavam de a”a velha dos gatos”, embora ela apenas tivesse um.Antes de se mudar, Thais já viveu cinco anos casada com a mulher da sua vida. Alexandra era o seu nome, a garota por quem havia se apaixonado ainda no ensino médio, a garota mais extraordinária de todas havia sido sua primei
Yara despertou pela manhã com os sons metálicos de máquinas cortando alguma coisa. Forçou-se a raciocinar sobre tudo que tinha ocorrido na noite anterior. Daniel ainda dormia na cama ao seu lado.Após chegar na casa de Thais, ela lhe ofereceu a sua própria cama para que pudessem dormir e foi dormir no sofá com o gato.Ela se lembrou da tragédia da noite anterior e imaginou como estaria a sua casa. Com certeza o conserto ficaria uma fortuna, por mais que estivesse recebendo sua licença-maternidade, provavelmente não conseguiria realizar a reforma e lidar com as novas despesas. Ela se sentou na cama, precisava ter um plano. Não podia mais levar a vida como se não houvesse amanhã. Forçou-se a pensar, talvez tivesse algum direito ou garantia para ao menos a
Depois de se despedir do último paciente, Thais tirou o jaleco longo e branco, alongou a coluna que fez alguns estalos, sentiu a tensão muscular na região lombar. Havia atendido muitos pacientes complexos e agora começava a pagar o preço. Ela sabia que se não se cuidasse poderia começar a ter dores na coluna. Mas antes de ir embora, a sala de atendimento precisava ser limpa e arrumada para o dia seguinte, algo que Thais realizava com muito esmero.Estava exausta, sempre se perguntava o por quê lotava tanto agenda, tinha chego num ponto da carreira que poderia se dar ao luxo de ter mais tempo livre para, quem sabe, desenvolver um hobbie. Sempre quis aprender pole dance Yara afastou-se rapidamente, com o rosto avermelhado, conseguia sentir as bochechas queimando como se alguém tivesse jogado brasas em sua pele.Thais empalideceu, por um segundo duvidou de sua sanidade, perguntou se realmente por milésimos de segundos ela havia sido beijada.As duas ficaram se entreolhando, por sorte, Daniel resmungou e Yara ficou aliviada por ter uma desculpa para sair da cozinha.Thais observou enquanto saía e deu um sorrisinho levando uma das mãos aos lábios, estava contente e um pouco envergonhada. Pegou o celular e mandou uma mensagem de áudio sussurrando para Ângelo.— Acho que minha vizinha me beijou.De repente começou a sentir oNegação
Yara retornou rapidamente para o quarto.O coração queria sair pela boca, as mãos tremiam e a boca estava seca.Retirou os fones de ouvido, a imagem da mulher nua no banho havia sido demais para ela, precisava se afastar fisicamente de Thais. quanto mais rápido conseguisse arrumar a casa, mais cedo se afastaria da atração estúpida e sem sentido que não fazia a menor ideia de onde tinha vindo.Sentou-se na cama. Respirou fundo algumas vezes.Após se acalmar, percebeu o quanto estava sendo ridícula ao querer repelir Thais, afinal ela foi a única que não mediu esforços para ajudar. Ela havia enfrentado uma tempestade, entrou nos escombros e lhe deu abrigo, ela havia feito mais por ela do sua própria família. Pr
Guilherme dirigia com calma seu carro prata pelas ruas da cidade, até demais para o gosto de Yara. Talvez o amigo estivesse com medo de dirigir com um bebê a bordo. Mas não tinha outra escolha, não tinha com quem deixá-lo, Ariadne estava trabalhando e outras pessoas da família não queriam nem saber dela, inclusive a mãe dela.Como não tinha carro, não achou que fosse necessário comprar um bebê conforto para transportar Daniel. Olhava a todo o momento pela janela e pelos espelhos retrovisores, estava apreensiva com receio de algum policial multá-los pela falta de segurança.Por sorte, não encontraram nenhum policial ou guarda de trânsito pelo caminho, logo o subúrbio de casas antigas foi dando lugar a pequenos prédios de cinco andares,
Thais entrou em sua clínica, um dia longo e trabalhoso iria se iniciar. O balcão estava um caos. Era uma situação incomum. Para a sua surpresa e descontentamento, havia prontuários acumulados, algumas fichas de evolução soltas e canetas espalhadas.Aquilo era estranho, ela se aproximou e observou por alguns instantes em silêncio, Ângelo parecia uma criança animada que ganhou um brinquedo novo de Natal, fazia poses engraçadas e dancinhas. Ela se deu conta, que talvez fosse o celular.Ângelo não se deu conta da chegada da amiga, estava fascinado com seu novo celular, pela primeira vez teria um decente para tirar fotos e se divertir nas redes sociais. Quando foi tirar mais uma, Thais rapidamente o abraçou e sorriu para conseguir ser capturada na fotografia.