Após retornar a sua casa, Thais foi trocar de roupa e depois procurou o seu gato, encontrou-o deitado parecendo uma bolinha no sofá da sala. Ela pegou um cobertor do quarto e se aconchegou perto dele. Apesar da chuva ter dado uma trégua, o vento congelante ainda açoitava a rua. Foi bom ter ficado próximo da Yara e de Daniel durante o pior momento da tempestade, aquilo tinha garantido um imenso alívio em seu coração. A verdade é que desde que se mudou para o bairro, vivia solitária com seu gato. Sabia que alguns vizinhos a chamavam de a”a velha dos gatos”, embora ela apenas tivesse um.
Antes de se mudar, Thais já viveu cinco anos casada com a mulher da sua vida. Alexandra era o seu nome, a garota por quem havia se apaixonado ainda no ensino médio, a garota mais extraordinária de todas havia sido sua primeira e única namorada. Foi com ela, que se descobriu lésbica e ao lado dela teve coragem suficiente para contar a família que era perdidamente apaixonada por uma mulher. Não foram tempos fáceis. Mas no fim, a aceitaram. O casamento ocorreu durante a graduação das duas, Thais cursando fisioterapia e Alexandra estudando nutrição.
As lágrimas começaram a brotar no rosto de Thais. Lembrar de Alexandra sempre iria doer um pouco. A verdade é que o grande amor de sua vida, havia partido numa noite de tempestade como aquela. Ela sempre se lembraria do acidente de carro que levou sua amada embora.
As lembranças conseguem queimar profundamente, foram tempos desesperadores e difíceis, mas graças aos seus amigos Ângelo e Martins, conseguiu seguir com a vida. Reviver o passado é doloroso, foi o que Thais pensou enquanto acariciava Greg. Lembrou-se da aflição ao retornar para casa após o enterro e não encontrar Alexandra esperando com um enorme sorriso. Um súbito desejo de mudança de teto pairou em sua mente após a morte, não poderia mais viver no mesmo teto sem ela. Conseguiu se organizar financeiramente e pesquisou inúmeras casas até encontrar um bairro barato com casas antigas. Não teve dúvidas, precisava de novos ares, então juntou suas reservas e se mudou.
Os trovões ecoavam e a ventania subitamente aumentou, Thais instintivamente abraçou o gato com mais firmeza. A energia elétrica ainda não havia voltado e suas preocupações pairavam na casa da vizinha.
Por mais que tentasse, não entendia como Yara poderia mexer tanto com a sua cabeça. A imagem dela amamentando sob a luz de velas, parecia tão familiar e reconfortante.
Lembrava-se dela antes da gravidez, sempre vestida com shorts curtíssimos e decotes profundos, a imagem de uma mulher sensual.
Mesmo com a mudança radical, Thais ainda conseguia enxergar a mesma mulher por quem tinha se apaixonado em segredo. Era a mesma Yara que gostava de ler tomando sol aos domingos de manhã, a que gostava de ouvir música eletrônica enquanto cozinhava e que meditava ouvindo mantras na garagem da casa.
Thais suspirou. Precisava dormir, afinal a sua agenda estaria cheia de pacientes. Precisava trabalhar muito, planejava fazer uma reforma em sua casa. Todos os dias, se questionava o porquê do preço baixo da casa, provavelmente por ser antiga e sempre precisar de algumas reformas. Virou-se de costas para o outro lado, os olhos começaram a ficar turvos e pouco a pouco, o corpo começou a relaxar. Quando estava quase pegando no sono ouviu um barulho estranho, como se algo estivesse despedaçando lentamente, até ouvir um baque, como se algo estivesse caído.
Abriu os olhos imediatamente. O som alto parecia ter vindo do lado de fora, precisava verificar se havia acontecido algo.
Enrolou-se no cobertor, pegou a lanterna e saiu em disparada pela porta da frente. A chuva não dava trégua e a luz da lanterna estava dificultando a visualização da rua.
Até que se deparou com um poste e um imenso galho que haviam caído no telhado da casa de Yara. O galho estava enroscado nos fios de comunicação e o poste de cimento havia derrubado parte da garagem e da sala.
Thais congelou por alguns instantes e o pior passou pela sua mente. A queda havia feito um estrago enorme, havia telhas quebradas, vidros e até tijolos.
Sem pensar, respirou fundo e correu em disparada em direção a casa da amiga. Tomou fôlego e gritou a plenos pulmões.
— Yara — em desespero.
Thais conseguia sentir seu coração acelerado e a adrenalina percorrendo as suas veias. Os segundos que demoram para ouvir alguma resposta pareciam uma eternidade.
— Estou aqui— Yara gritou em resposta, mas a voz parecia abafada.
Thais precisava agir, não pensou duas vezes, pulou o portão destruído e se deparou com uma parte do imenso galho caído na porta de entrada bloqueando o caminho.
Procurou por alguma brecha onde pudesse se embrenhar para encontrar o bebê e a mãe. Espremeu-se entre um espaço minúsculo entre a árvore e a parede, com muito esforço conseguiu passar. Naquele instante começou a ouvir o choro abafado de Daniel. Se ele estava chorando, talvez não estivesse bem e Yara também poderia estar presa em algum lugar dos escombros.
Encontrou a porta da cozinha deformada, iluminou com a lanterna para ver o estrago. Não conseguia ver ninguém mas o choro continuava. Começou a forçar a porta para a passagem empurrando seu corpo contra. Tentou uma, duas e apenas na terceira conseguiu quebrar um pedaço da porta e abri-la. Depois que conseguiu irromper pela porta, viu Yara sentada no chão do outro lado do cômodo, com olhos arregalados e agarrada a Daniel, que chorava muito. Num impulso, Thais se jogou no chão ao lado, começou a verificar se estavam machucados.
— Vocês estão bem? — Thais perguntou, controlando as emoções de desespero que vinham à tona.
Yara estava trêmula. Ao que parecia ela precisava de alguns segundos para conseguir se recuperar do choque . Apenas balançou a cabeça de maneira afirmativa.
Thais retirou o cobertor das costas e colocou em torno da mãe e do bebê, ambos estavam gelados.
—Thais, eu não sei como aconteceu, eu estava deitado tentando dormir e aí ouvi o barulho e..— as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto — … ai eu vi que um galho caiu, estou com tanto medo.
Thais abraçou os dois.
— Daniel está bem? — perguntou Thais olhando ao redor da cozinha e visualizando o estrago da casa.
— Está bem...só assustado.
A chuva continuava a açoitar, com certeza a casa no momento não era nenhum abrigo que pudesse proteger uma mãe e seu bebê.Como ainda estava escuro, não poderia prever o quanto tudo aquilo poderia atrapalhar a estrutura da casa.
— Vamos para a minha casa — disse Thais com determinação — pegue o que precisa e vamos tentar passar pelos destroços.
Yara olhou para o teto, iria ser caro para arrumar o estrago. Mas no momento, precisava pensar em seu filho. Balançou a cabeça de maneira afirmativa, entregou Daniel para Thais e correu para pegar alguns itens no quarto.
Thais começou a balançar suavemente o bebê para tentar fazê-lo parar de chorar. Fazia anos que não segurava uma criança no colo, mas tentou se manter calma.Yara retornou rapidamente com uma pequena mochila de maternidade.
Ambas saíram pela porta da cozinha. Thais percebeu que seria ainda mais complicado conseguir passar por todos os obstáculos.
Thais devolveu o bebê aos braços de Yara e pegou a mochila, jogou-a por cima dos destroços para que caísse do outro lado. Agachou-se e passou de novo pelo vão entre o galho caído e a casa. Pegou a mochila e colocou nas costas.
Ofereceu os braços para que Yara a entregasse Daniel e assim, também conseguir passar. Thais teve que agachar mais ainda, para evitar que o bebê se molhasse. Yara o entregou.
Um alívio passou pela mente de Yara quando conseguiram sair para a rua, pelo menos seu filho já estava fora de perigo. Ela se esgueirou e com dificuldade, passou raspando pelo vão.
Thais com Daniel nos braços, e Yara correram em direção a outra casa.
Yara despertou pela manhã com os sons metálicos de máquinas cortando alguma coisa. Forçou-se a raciocinar sobre tudo que tinha ocorrido na noite anterior. Daniel ainda dormia na cama ao seu lado.Após chegar na casa de Thais, ela lhe ofereceu a sua própria cama para que pudessem dormir e foi dormir no sofá com o gato.Ela se lembrou da tragédia da noite anterior e imaginou como estaria a sua casa. Com certeza o conserto ficaria uma fortuna, por mais que estivesse recebendo sua licença-maternidade, provavelmente não conseguiria realizar a reforma e lidar com as novas despesas. Ela se sentou na cama, precisava ter um plano. Não podia mais levar a vida como se não houvesse amanhã. Forçou-se a pensar, talvez tivesse algum direito ou garantia para ao menos a
Depois de se despedir do último paciente, Thais tirou o jaleco longo e branco, alongou a coluna que fez alguns estalos, sentiu a tensão muscular na região lombar. Havia atendido muitos pacientes complexos e agora começava a pagar o preço. Ela sabia que se não se cuidasse poderia começar a ter dores na coluna. Mas antes de ir embora, a sala de atendimento precisava ser limpa e arrumada para o dia seguinte, algo que Thais realizava com muito esmero.Estava exausta, sempre se perguntava o por quê lotava tanto agenda, tinha chego num ponto da carreira que poderia se dar ao luxo de ter mais tempo livre para, quem sabe, desenvolver um hobbie. Sempre quis aprender pole dance Yara afastou-se rapidamente, com o rosto avermelhado, conseguia sentir as bochechas queimando como se alguém tivesse jogado brasas em sua pele.Thais empalideceu, por um segundo duvidou de sua sanidade, perguntou se realmente por milésimos de segundos ela havia sido beijada.As duas ficaram se entreolhando, por sorte, Daniel resmungou e Yara ficou aliviada por ter uma desculpa para sair da cozinha.Thais observou enquanto saía e deu um sorrisinho levando uma das mãos aos lábios, estava contente e um pouco envergonhada. Pegou o celular e mandou uma mensagem de áudio sussurrando para Ângelo.— Acho que minha vizinha me beijou.De repente começou a sentir oNegação
Yara retornou rapidamente para o quarto.O coração queria sair pela boca, as mãos tremiam e a boca estava seca.Retirou os fones de ouvido, a imagem da mulher nua no banho havia sido demais para ela, precisava se afastar fisicamente de Thais. quanto mais rápido conseguisse arrumar a casa, mais cedo se afastaria da atração estúpida e sem sentido que não fazia a menor ideia de onde tinha vindo.Sentou-se na cama. Respirou fundo algumas vezes.Após se acalmar, percebeu o quanto estava sendo ridícula ao querer repelir Thais, afinal ela foi a única que não mediu esforços para ajudar. Ela havia enfrentado uma tempestade, entrou nos escombros e lhe deu abrigo, ela havia feito mais por ela do sua própria família. Pr
Guilherme dirigia com calma seu carro prata pelas ruas da cidade, até demais para o gosto de Yara. Talvez o amigo estivesse com medo de dirigir com um bebê a bordo. Mas não tinha outra escolha, não tinha com quem deixá-lo, Ariadne estava trabalhando e outras pessoas da família não queriam nem saber dela, inclusive a mãe dela.Como não tinha carro, não achou que fosse necessário comprar um bebê conforto para transportar Daniel. Olhava a todo o momento pela janela e pelos espelhos retrovisores, estava apreensiva com receio de algum policial multá-los pela falta de segurança.Por sorte, não encontraram nenhum policial ou guarda de trânsito pelo caminho, logo o subúrbio de casas antigas foi dando lugar a pequenos prédios de cinco andares,
Thais entrou em sua clínica, um dia longo e trabalhoso iria se iniciar. O balcão estava um caos. Era uma situação incomum. Para a sua surpresa e descontentamento, havia prontuários acumulados, algumas fichas de evolução soltas e canetas espalhadas.Aquilo era estranho, ela se aproximou e observou por alguns instantes em silêncio, Ângelo parecia uma criança animada que ganhou um brinquedo novo de Natal, fazia poses engraçadas e dancinhas. Ela se deu conta, que talvez fosse o celular.Ângelo não se deu conta da chegada da amiga, estava fascinado com seu novo celular, pela primeira vez teria um decente para tirar fotos e se divertir nas redes sociais. Quando foi tirar mais uma, Thais rapidamente o abraçou e sorriu para conseguir ser capturada na fotografia.
A papelada fazia a cabeça de Yara doer. A prefeitura fornecia o serviço, desde que preenchesse inúmeros formulários e fossem carimbados pelo cartório da cidade. Além disso, havia a possibilidade de ter que pagar uma multa caso não fizesse corretamente toda a burocracia. Não seria tão fácil quanto havia se informado, mas ela não poderia se dar ao luxo de desistir. Daniel era apenas um bebê e precisava de um teto para viver. Após sair do guichê de atendimento segurando o filho, Yara percebeu que poderia começar a dar entrada em alguns protocolos, pelo menos poderia facilitar o trabalho que teria. Guilherme estava perplexo, jamais havia pensado que era tão burocrático, algo que era um direito de uma pessoa em situação de vulnerabilidade, afinal, ela era uma mãe solo sem a única casa que chamava de lar. Yara respirou fundo, a cabeça estava latejando mas não
Thais se despediu do último paciente. Suas costas estavam doendo por conta do dia longo de trabalho. O relógio da parede já marcava sete horas da noite. Nem tinha se dado conta do horário, até que o seu estômago roncou. Ela se dirigiu até a recepção e se despediu de Ângelo, que ainda brincava com o celular novo.Pegou o carro no estacionamento para ir embora, quando sentiu um estranho arrepio percorrer a sua espinha. Virou a cabeça para trás, era uma sensação esquisita como se alguém a observasse de longe.A rua parecia deserta. Os postes iluminavam da mesma maneira e nada estava fora do lugar.— Devo estar ficando paranoica — murmurou para si enquanto abria a porta do carro e começou a dir