Venha, meu doce destino

Emma

Eu me concentrei no caminho à minha frente enquanto seguia Roux em silêncio pelas ruas, tentando não atrair atenção desnecessária. Nós encontramos os outros nos esperando entre algumas árvores fora da cidade. Eu balancei meu braço para me livrar do aperto antes de ir em direção ao grupo.

— Aonde você pensa que vai? — Ele me agarrou novamente pelo braço, voltando a apertá-lo.

— Isso está machucando! — Eu exclamei em Romani¹, atraindo a atenção de todos.

— O que você estava conversando com aquele homem? — Ele rosnou. 

— Eu não estava conversando nada — Eu tentei me livrar de novo — Me solta!

— O que você pretende Emma? — Ele me mediu — Você sempre recusa todos os arranjos de casamento de seu pai, e sempre parece rejeitar nossa cultura.

— O que isso quer dizer? 

— Quer dizer que o seu pai ficará sabendo disso! — Ele me puxou para perto de seu corpo, abaixando a voz — Você sabe o que pensamos sobre casamentos com eles.

A forma como Roux pronunciou "eles" me irritou. 

— Não sei se você se lembra, mas meu pai se casou com uma "deles" — Eu retruquei.

— E foi o maior erro que ele cometeu.

Eu concentrei minha força na mão que estava livre acertando em cheio o seu rosto, fazendo com que ele me soltasse.

— Emma — Lash se aproximou enquanto eu massageava o lugar onde ele apertou, com certeza eu teria alguma marca por isso — Eu acho melhor a gente voltar agora.

— Eu não falarei nada dessa vez Roux — Eu me virei — Mas se um dia você voltar a me tratar assim, pode ter certeza de que o meu pai ficará sabendo.

Lash me escoltou até o acampamento, enquanto Roux nos seguia mau humorado. Assim que chegamos, eu me tranquei no meu vardo em busca de um pouco de paz. Às vezes eu odiava ter que ir até as cidades, o acampamento era sempre tão tranquilo.

Uma batida na porta chamou minha atenção, eu me levantei da cama e a abri encontrando meu pai parado ali, me observando.

— Eu vou ter que sair mais uma vez? — Eu perguntei apreensiva.

— Vamos caminhar, minha criança — Ele indicou com a cabeça.

— Eu estou cansada — Eu tentei fugir.

— Isso não foi um convite, Emma — Seu olhar se tornou duro.

Eu respirei fundo e sai do vardo, descendo os degraus em sua direção. 

— Você deveria calçar os sapatos — Ele sugeriu — Sua mãe sofreria de um ataque de nervos ao te ver assim.

— Vamos logo, pai — Eu pedi.

Nós caminhamos em silêncio até estarmos longe do acampamento. Eu estranhava toda aquela interação. Eu adorava meu pai, mas ele nunca permitiu que eu me aproximasse.

— Onde está seu pandeiro? — Ele questionou quebrando o silêncio.

— Eu o perdi na cidade — Eu expliquei, me abaixando para colher uma flor.

— O perdeu? 

— O que ele te falou? — Eu me ergui, me virando de frente para meu pai.

Meu pai era um homem alto, seus cabelos eram compridos e ele estava com cinquenta anos e era quatorze anos mais velho que minha mãe. Eu gostava de pensar que eles eram felizes, apesar de nunca terem se casado oficialmente.

— Roux me disse que você presenteou um homem na cidade — Meu pai se sentou à sombra de uma árvore — vamos conversar sobre isso?

— Eu não fiz tal coisa — Eu me sentei ao seu lado.

— Você deve me contar sobre esse homem, Emma.

— Eu não poderia cumprir o seu desejo — Eu suspirei — Eu não sei nada sobre o homem. Eu esbarrei com ele enquanto fugia e derrubei o pandeiro.  Roux não confia em mim!

— E você pode culpá-lo? — Meu pai perguntou, me chocando.

— O que você disse? — Eu pisquei algumas vezes.

— Você nunca se misturou com nosso povo, Emma — ele suspirou observando o céu — As jovens do bando estão sempre juntas, e você fica o tempo todo trancada no Vardo. 

— Pai.

— Eu sei que às vezes nossa vida é confusa, mas você nunca a abraçou de verdade — Ele prosseguiu — As jovens da sua idade estão todas comprometidas, e você foge de qualquer compromisso que nós conseguimos para você.

— Eu desejo me casar por amor! 

— Amor é superestimado — Ele prosseguiu — Você agindo dessa forma, conhecendo homens na cidade, só aumentam a desconfiança da nossa gente sobre você, minha filha.

— Você conheceu minha mãe em uma cidade — Eu apontei — Você se casou por amor.

— E isso me trouxe a um ponto onde minha própria filha rejeita suas origens. Você acha que eu não percebo o quanto sua mãe rejeita nossos costumes?

— Isso não é verdade.

— E por que ela te ensinou tantas coisas? — Ele me interrompeu — Você sabe ler e escrever.

— E isso sempre foi útil.

— Mas não é nosso costume — Ele me encarou — Você não compreende? 

— Não — Eu balbuciei — Creio que eu não. Eu não compreendo porque somos rejeitados, e não compreendo porque deveria odiá-los.

— Você é minha filha, Emma. Mas eu sempre tenho a impressão de que você nos deixará na menor oportunidade — Ele se levantou me oferecendo a mão para me auxiliar.

— O que você espera que eu faça para provar minha lealdade? — retruquei — Me case?

— Com um dos nossos — Ele confirmou — Temos bons rapazes aqui, você pode ser feliz.

— Eu não farei isso — Eu neguei — Eu respeito seus desejos, pai. Mas não posso me comprometer com tal desejo.

— Isso foi o que o casamento por amor me trouxe — ele me encarou com frieza — minha própria filha desafia minhas ordens.

Eu senti seus olhos marejados com suas palavras e não pude suportar o olhar decepcionado em seu rosto. Corri para a segurança do meu vardo, o deixando para trás. Apesar de suas palavras, eu nunca pensei em ir embora. Eu apenas sentia a necessidade de me sentir parte de algum lugar, e eu não me sentia assim com as jovens do bando.

Apesar de me sentir exausta pela fuga de antes, eu não pude dormir. Minha mente migrava da discussão com meu pai para aquele par de olhos castanhos que me analisaram com tanta destreza mais cedo. Eu ficava relembrando cada reação dele em nosso breve encontro. Algum dia vou encontrá-lo?

Creio que não, minha mãe me avisou que estava tudo certo para nossa partida pela manhã. Ele ficará apenas em minha lembrança.

Eu aproveitei a luz do sol para me banhar em um pequeno lago que tinha nos arredores, e me juntei a todos em volta da fogueira durante a noite. Depois do jantar, meu pai nos entreter com música, passando a entoar um canto em sua língua natal. Eu permiti que a melodia me envolvesse, deixando meu corpo se mover de maneira fluida com o ritmo, e para minha surpresa, minha mãe decidiu me acompanhar. 

O olhar que meu pai nos lançava indicava o orgulho que ele sentia de sua família, apesar de tudo. Assim que a música terminou, ele se levantou e veio até onde estávamos, nos envolvendo em um abraço, beijando minha testa antes de beijar minha mãe.

Essa é a última lembrança agradável que eu tenho dessa parte de minha história. 

Eu estava dormindo, nós partiríamos assim que amanhecesse, então eu tinha que estar bem descansada. Perto do nascer do sol, um barulho me despertou. Me sentei na cama olhando em volta assustada.

— O que foi isso? — Eu sussurrei ao ouvir um grito abafado vindo do lado de fora.

Estava prestes a sair do Vardo quando a porta foi escancarada e minha mãe entrou correndo, a fechando em seguida.

— O que está acontecendo? — Eu arregalei os olhos quando ela pegou uma sacola de pano e passou a jogar algumas roupas e jóias dentro.

— Eles nos encontraram — Elinor sussurrou — Mataram o seu pai, nós temos que fugir.

— O que!? — Eu arregalei os olhos.

— Abaixe a voz — Ela sussurrou — Seu Vardo é o mais escondido, creio que não vão encontrá-lo.

— Mãe, o que está acontecendo? — As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto ao notar o olhar de puro medo que minha mãe exibia.

— O povo da cidade — Ela enxugou uma lágrima que escorreu de seu olho — Eles nos encontraram há alguns minutos, começaram a invadir os vardos e matar a todos.

— Tem mais um aqui — Nós fomos silenciadas por uma voz do lado de fora.

Minha mãe me indicou que mantivesse silêncio, escorregando para o chão. Eu segui seu exemplo me sentando ao lado da cama de frente para ela. Ela se esforçava para chorar em silêncio, encarando  a porta aterrorizada. 

— Faça como os outros e vamos voltar — outra voz instruiu.

Nós vamos morrer. Nós vamos mesmo morrer.

Minha mãe e eu esperamos por alguns minutos a porta ser aberta nos trazendo a nossa sentença.

— Devem ter partido — Ela suspirou aliviada — Vamos.

— E se estiverem lá fora? — Eu não me movi.

— Emma, nós temos que fugir daqui. — Elinor segurou minha mão, me puxando em direção à porta, apenas me dando tempo de calçar minhas sandálias antes de correr.

Mas antes que pudéssemos sair dali, o lugar foi envolto em chamas. 

Eles vão nos queimar vivas! 

— Mãe! — Eu gritei sentindo o calor me envolver. Metade de meu vardo tinha se tornado um verdadeiro inferno, a outra metade seria apenas uma questão de tempo.

— A janela — Ela tossiu, me obrigando a subir na cama — Nós podemos sair pela janela. 

O teto foi todo tomado pelas labaredas enquanto eu abria a janela, Eu me virei, vendo minha mãe retornar para perto da porta para pegar a sacola que ela tinha separado mais cedo.

— O que você está fazendo? Deixe isso.

— Nós precisamos  — Ela jogou a sacola em minha direção — Agora saia.

Eu pulei de qualquer maneira, sentindo o calor aumentar em meu braço direito quando a manga de minha blusa se incendiou. Eu consegui arrancar a manga em chamas, queimando minha mão no processo. Onde está minha mãe.

Eu me virei para o vardo, apenas para encontrá-lo completamente envolto em chamas.

— Mãe? — Eu chamei em desespero — Mãe, onde você está?

— Emma — Sua voz saiu abafada por uma tosse — Corra...

— Você perdeu o juízo? — Eu chorei — Eu não vou sair daqui sem você!

— Por favor, fuja — Ela implorou.

— Eu ouvi algo por aqui — Uma voz masculina chamou minha atenção.

Eu lancei um último olhar para o Vardo em chamas, meus olhos varreram todo o nosso acampamento, era um verdadeiro inferno. Ela não vai sair, ela não tem nenhuma chance. Alguns passos se aproximaram fazendo com que eu saísse de meu torpor. Eu corri entre as árvores com as lágrimas cegando meus olhos constantemente.

Eu tinha que correr pela minha vida.

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¹ idioma  cigano

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