Venha, minha doce cigana

Henry

Minha viagem a Melrose se estendeu mais do que os dez dias iniciais. Eu estava prestando consultoria ao meu amigo George Thorpe sobre uma fazenda que ele estava pensando em adquirir. Seria uma viagem rápida, mas ele insistiu em conhecer a cidade, retardando nosso retorno à Bibury, uma pequena vila no condado de Gloucestershire¹.

Eu estava observando a vitrine de uma loja de chapéus, imaginando se deveria levar algum presente para minha irmã, quando uma agitação tomou conta da cidade. Eu observei uma série de ciganos passar correndo por mim, iniciando uma apresentação na praça principal. 

Eu não me importei com aquilo, não era algo que me atraia. Mas George ficou encantado com tudo o que acontecia. Eu retomei minha atenção para a vitrine da loja quando senti um pequeno corpo colidindo com o meu.

Eu impedi a queda da jovem, a segurando pelo braço. Ela era uma criatura magnífica, os olhos bem desenhados que exibiam um brilho quase selvagem, longos fios negros que estavam soltos sob uma bandana cor de vinho e sua pele bronzeada se destacava, fazendo todas as outras parecerem pálidas e sem graça. 

Após uma breve reverência ela se embrenhou na multidão, correndo em direção à praça. Eu não pude deixar de segui-la, observando um homem empurrá-la para a porta da igreja. Aquele gesto me incomodou, mas logo a jovem se recuperou, iniciando uma dança, que provavelmente era a coisa mais bela e indecorosa que eu já tinha presenciado. 

Apesar de meu olhar ser atraído pela ocasional visão de suas pernas, eu tentei me concentrar em cada detalhe da jovem dançarina até que a chegada do reverendo acabou com  aquela festa me tirando daquele estado de fascinação, eu me afastei discretamente decidido a retornar ao hotel onde estávamos hospedados. Esse era o nosso último dia na cidade, nós partiríamos antes do amanhecer.

— Onde você estava? — George perguntou — Você desapareceu.

— Eu vi algo que chamou minha atenção — Eu desconversei — Desculpe.

— O Reverendo Gillies parece ser bem rígido — Ele comentou, observando os ciganos fugirem.

— Ele deve cuidar para que seu rebanho não seja contaminado pela imoralidade — Eu expliquei. — Geralmente todos temem isso.

— Você teme? — Ele perguntou despreocupado, se afastando um pouco.

— Eu não sou um reverendo — Eu zombei.

Foi nesse momento que as coisas se tornaram estranhas. Mais uma vez eu me encontrei com aquela cigana, sua voz rouca aliada àquele sorriso que ela exibia enquanto sua unha traçava linhas na palma de minha mão me causou arrepios. Como alguém pode ser tão bela?

Vê-la sendo arrastada para longe por aquele homem me incomodou bastante, como era sua vida? Ele a maltratava? Ele representava alguma coisa para ela?

Eu me abaixei pegando o pandeiro enfeitado com fitas que ela derrubou, a observando partir.

— Você não deveria se envolver — George comentou voltando para perto de mim — Como ele disse, eles sabem como se tratar.

— Claro — Eu murmurei observando o pandeiro em minha mão.

— Você vai guardar isso? — meu amigo franziu o cenho.

— Vamos voltar ao hotel — Eu informei, retomando o caminho ainda observando o pandeiro.

O restante do dia passou de forma lenta, eu não conseguia esquecer a voz rouca daquela cigana, a maneira exótica como ela pronunciava cada palavra, uma mistura do sotaque escocês com algum outro que eu não podia identificar.

Aquela mulher era fascinante. 

Mais uma vez me apanhei observando seu pandeiro, seria uma boa lembrança de nosso breve encontro, já que era pouco provável que voltássemos a nos encontrar. Nosso breve relacionamento terminaria ali, e eu desconhecia até mesmo o seu nome.

Nós tivemos um jantar agradável e nos recolhemos cedo, nós partiríamos com o nascer do sol no dia seguinte, deveríamos aproveitar ao máximo o tempo para a viagem. Passaríamos a noite em Preston antes de voltar para a estrada no dia seguinte. Se tudo desse certo, nós chegaríamos em Bibury em dois dias.

Pela manhã seguimos nosso plano, alugamos uma carruagem simples que nos levaria até metade do caminho, onde trocaríamos de condutor. Pensamos que teríamos uma viagem tranquila, mas uma turbulência nos acometeu poucos minutos depois de iniciar nosso trajeto, e logo depois o condutor parou os cavalos.

— O que aconteceu? — George questionou através da pequena janela de acesso que tinha na frente da carruagem.

— Perdoe-me senhor — O homem pediu — A jovem dama surgiu de repente.

Nós atropelamos alguém!?

Eu saí da carruagem olhando em volta, encontrando uma garota de costas, recolhendo algumas peças de ouro da estrada.

— Nós não a acertamos por pouco, senhor — O condutor avisou.

— Você se machucou? — Eu me aproximei com cuidado, pelos seus trajes, se tratava de uma das ciganas.

 O que aconteceu com ela?

A jovem se virou em minha direção, me surpreendendo. Ela tinha a pele suja de fuligem, parte de sua roupa estava queimada e seu rosto estava marcado por lágrimas. Seu olhar aterrorizado enquanto tentava se afastar me confundiu. Ela não parecia disposta a se afastar ontem.

Murmurando alguma coisa em uma língua que eu não compreendia, ela se virou em direção à floresta. Seu corpo ficou tenso ao ouvir algumas vozes entre as árvores, eu segui seu olhar, notando o que parecia ser um incêndio a uma certa distância, as vozes passaram a ficar mais nítidas enquanto o terror da cigana crescia  a cada instante.

— Foi tudo por nada — Ela sussurrou, dando um passo para trás. 

Eu não entendo o que está acontecendo, mas estava claro que eu não poderia deixá-la. Algo está terrivelmente errado aqui.

— Entre na carruagem — Eu indiquei, pousando a mão em seu ombro.

— Não — Ela se afastou bruscamente — Você é um deles!

— Um deles? — Eu questionei chocado. 

Ela estava indecisa, alternando o olhar entre a carruagem e a floresta, provavelmente cogitando quais seriam suas chances de escapar.

— Eu não sei quem eles são — Eu tentei mais uma vez — Mas eu não vou te machucar.

— Tenho certeza de que era a cigana da praça — Alguém comentou, fazendo com que ela desse um passo em minha direção.

— Vamos — Eu a conduzi, dessa vez sem protestos, até a carruagem.

George nos encarou alarmado, enquanto eu fechava as cortinas e indicava para o condutor que nos colocasse em movimento. 

Nós não conseguimos avançar muito antes que um homem correndo do lado de fora gritasse algo em escocês com o condutor. Ele parou mais uma vez a carruagem,  respondendo na mesma língua.

— Vá para o chão — Eu sussurrei para a jovem — E se mantenha em silêncio.

Ela me obedeceu sem discutir, se encolhendo no pouco espaço disponível. Eu abri a cortina, observando o homem parado ali ao lado da minha janela. Alguns outros estavam a uma distância considerável, observando o que acontecia.

— Posso ajudá-lo?

— Nós estamos procurando uma cigana — Ele indicou com o sotaque carregado — Vocês a viram passar por aqui?

— Sinto muito, nós não vimos nada — Eu neguei — Estamos apenas de passagem.

— Nós encontramos uma pulseira de ouro na estrada — O homem insistiu.

— Ontem na cidade foi a única vez que nos encontramos com algum cigano, Senhor — George respondeu — A garota fez algo?

— Ela fugiu — Ele deu de ombros — O Reverendo Gillies decidiu antecipar a caça aos ciganos deste ano.

Meu olhar seguiu instintivamente em direção ao chão, a jovem cigana  exibia o mais puro terror em seu olhar. 

— Nós queimamos o acampamento deles e conseguimos matar alguns — Ele prosseguiu despreocupado — mas aquela menina escapou de uma daquelas carroças quando ateamos fogo.

Tentaram queimá-la viva? 

Eu voltei a observar seu rosto sujo de fuligem, outra vez encharcado de lágrimas.

— Desculpe Senhores, nós temos uma longa viagem até Bristol — George interrompeu o homem com um olhar duro, enquanto eu cerrava os punhos, sentindo meu sangue ferver. 

Como podem organizar uma caçada à humanos?

— Certo, certo — O homem bateu na lateral da carruagem — Façam uma boa viagem, cavalheiros.

Eu voltei a fechar a cortina, conforme o condutor nos colocava mais uma vez em movimento. Eu a ajudei a se erguer do chão, e se sentar ao meu lado, já que George estava sentado de frente para mim.

— Bristol? — Eu observei meu amigo.

— É melhor que não saibam para onde estamos indo — Ele desconversou.

— Você está ferida? — Eu questionei a cigana sentada ao meu lado sem obter resposta.

Ela ficou encarando a sacola que repousava em seu colo, parecendo  atônita.

— Você pode nos contar o que aconteceu? — George tentou em vão.

— Pode ao menos nos dizer seu nome? — Eu pedi, aquilo atraiu sua atenção. 

Ela me encarou por um tempo antes de respirar fundo.

— Emma... Ferguson — Ela mordeu o lábio — Meu nome é Emma Ferguson.

Ferguson? Esse é o sobrenome de uma família importante de Edimburgo. Por que uma cigana se chama assim? 

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