Venha, meu doce pesar

Emma

Eu estava terminando de me arrumar após o desjejum. O sol já tinha nascido, e em breve nós partiríamos  para Bibury, eu não queria atrasar meus benfeitores. Eles foram extremamente atenciosos comigo, e seus modos  eram tão gentis. Creio que os cavalheiros são todos assim.

Devem me considerar uma selvagem.

— Por que isso tem que ser tão difícil? — Eu gemi enquanto tentava seguir a dica do Senhor Thorpe e prender meus cabelos.

O fato de minha mão estar queimada também não ajudava, ela estava ardendo bastante, em alguns pontos tinha formado bolhas, outros, estava em carne viva.

Eu encarei a queimadura por alguns momentos, pensando em tudo o que tinha acontecido. Em questão de horas tudo foi tirado de mim, o meu lar, minha família, toda a minha vida. A única coisa que me resta são algumas mudas de roupa e  jóias que eu não posso usar. 

Uma batida na porta me tirou de meu devaneio. Eu a abri, encontrando a criada que me auxiliou ontem, eu nunca sequer sonhei em ter uma criada antes. Ela era alguns anos mais velha do que eu, aparentava ter a idade de minha mãe.

— Os cavalheiros pediram para verificar se você necessita de alguma ajuda — A mulher explicou, carregando algumas roupas de cama dobradas.

— Eu já estou terminando — Eu neguei.

— Isso quer dizer que você pretende sair assim? — Ela me mediu com as sobrancelhas arqueadas.

— Alguma coisa errada? — Eu  avaliei meu reflexo no espelho.

 Eu não fiz grande progresso no cabelo, mas estava preso e o vestido estava no lugar. Ele não combinava com minhas sandálias, mas eu não tinha opções.

A mulher se aproximou, colocando as roupas em cima da penteadeira e pegando algo por baixo dos tecidos dobrados.

— Espero que você não se ofenda, mas eu trouxe um sapato para você 

 Ela me sentou no pequeno banco em frente a penteadeira e colocou um par de sapatos no chão, antes de desfazer todo o meu trabalho no meu cabelo, o soltando mais uma vez.

— Como? — Eu pisquei atordoada quando ela começou a prender meus fios com cuidado.

— Meu nome é Anna. Eu vi que você usou essas sandálias ontem e esse vestido não parece ter sido comprado para você — Ela explicou.

— Eu sou Emma — Eu respondi constrangida — Não sabia que iriam reparar nos meus pés.

— Eu também vi a forma como você estava vestida antes — Ela continuou.

Aquilo fez meu coração disparar. Ela sabe o que eu sou, é claro que sabe. Mas o que ela fará a respeito? Eu nunca tive medo de deixar todos saberem minhas origens. Apesar dos temores de meu pai, eu me orgulhava delas, mas agora...

— Você é uma cigana? — Ela perguntou sem cerimônias, me surpreendendo. 

— Eu costumava ser — Eu abaixei o olhar para minha mão queimada. 

— Você e aquele rapaz estão fugindo juntos? — Ela me contornou ao terminar com meu cabelo, parando em minha frente para observar o resultado.

— De certa forma, eu acho — Eu franzi o cenho sem entender o que ela quis dizer com aquilo.

— Você acha? — Ela me encarou confusa. 

— Nosso acampamento foi atacado — Eu me abri  — Eu consegui fugir, mas não fui muito longe. Aqueles dois senhores me encontraram e estão me ajudando. Eu não tenho para onde ir, então aceitei a ajuda.

Eu não entendi o motivo de ter sido sincera com ela, Talvez eu a tenha considerado confiável, ou apenas precisava contar para alguém.

— Eu sinto muito — Ela se abaixou na minha frente segurando minhas mãos — O que foi?

Ela franziu o cenho ao notar uma pequena careta de dor devido a mão ferida. Eu virei a palma para cima, exibindo a queimadura.

— Isso é terrível! — Ela exclamou — Eu vou buscar o boticário, vamos cuidar disso.

— Não, não é necessário, eu estou bem!

— Isso deve estar doendo, querida — Ela me encarou com preocupação. 

— Eu não posso atrasar ainda mais a viagem deles — Eu expliquei, recebendo um suspiro compreensivo em troca — Eu já me queimei antes, não é nada. 

— Você parece ser tão jovem — Ana me avaliou, calçando os sapatos em mim — Quantos anos você tem?

— Eu fiz vinte em março — Eu expliquei. 

Nós estávamos na metade de agosto, a temperatura já tinha começado a ceder, logo estaríamos no outono. 

— Bem melhor agora — Ela se levantou, me incitando a seguir seu exemplo — Se você conseguir um belo chapéu, ficará perfeita.

— Não acho que eu terei um à disposição — Eu respondi, observando meu reflexo no espelho. 

Eu estava tão diferente do que costumava ser. Era como se tivesse sido transportada para algum outro universo onde mal podia me reconhecer.

— Você tem um belo cabelo — Ela sorriu tirando alguns fios da frente de meu rosto — Você pode sempre deixar alguns fios soltos. Fica muito bem assim.

Aquele gesto me trouxe a lembrança de minha mãe, apenas alguns dias atrás ela estava comigo, pintando meus olhos, me ajudando a me enfeitar. O que ela diria se ela estivesse comigo nesse momento? Ela se orgulharia? Me ensinaria como me portar?

Aqueles pensamentos abriram um buraco em meu coração. Ela não tem como me ajudar, me ensinar mais nada. Ela se foi, como tudo na minha vida. Eu lutei contra as lágrimas que ameaçavam sair. Eu não podia chorar agora, eu precisava ser forte, seguir em frente.

Eu não deixaria ninguém presenciar minhas lágrimas.

— Eles estão te aguardando — Anna sorriu para mim — Acho que é hora de você ir.

— Obrigada — Eu agradeci, pegando minha sacola e seguindo a criada. 

É hora de ir.

O que eu estou fazendo? Eu mal os conheço e estou confiando minha vida a eles. Isso é uma loucura. A cada passo o medo tentava me dominar, mas eu o empurrava para longe, para o fundo de minha alma com toda aquela angústia que me assolava.

Anna me guiou até o cômodo onde Henry e eu conversamos na noite passada. Ele e George estavam ali travando uma conversa quando eu entrei. Os dois se levantaram ao me ver, fazendo uma breve reverência. Anna fechou a porta atrás de mim, me deixando ali com os dois.

— Você prendeu o cabelo — Henry me avaliou. 

Sua expressão não revelava muito, ele gostou?

— Sim — Eu forcei um sorriso, levando a mão até o cabelo — Anna me ajudou.

— Está pronta para ir? — George se aproximou me oferecendo o braço, recebendo um olhar questionador do amigo. 

— Claro — Eu garanti envolvendo seu braço com minha mão — Nós podemos ir.

— Por que você ainda está com isso? — Ele apontou para minha sacola.

— São meus pertences — Eu o encarei confusa.

— Você não vai mais precisar disso — Ele respondeu — poderia deixar aqui, seria estranho uma dama aparecendo com uma sacola assim.

— Deixar? — Eu arregalei os olhos, me desvencilhando dele — Eu não posso deixar, são minhas roupas, minhas joias!

— Srtª Ferguson, essas coisas não vão servir mais — Ele tentou me explicar — Venda as joias, deixe as roupas, e...

— Não! — Eu exclamei dando um passo para longe dele, recebendo um olhar surpreso de Henry — Isso é tudo o que restou da minha vida, vocês não podem me obrigar a me livrar disso.

— Essa não é mais sua vida Srtª Ferguson — Ele insistiu — Você precisa entender que não podem descobrir que você é uma cigana, eles não entenderiam!

— Então eu vou passar a fingir que minha vida antes disso nunca existiu? — As lágrimas começaram a queimar meus olhos enquanto eu tentava segurá-las — Meus pais nunca existiram?

— Não foi o que eu quis dizer, mas as pessoas que te receberão evidentemente irão estranhar caso você apareça carregando isso — Ele respondeu frustrado — São apenas roupas que você não irá mais vestir, você pode se livrar disso.

— Minha mãe morreu para me dar isso — Eu abracei a sacola, deixando as lágrimas rolarem quando minha mente voltou a vagar para aquele momento — Ela estaria viva se não tivesse voltado para buscar a sacola. Isso é tudo o que me restou dela.

— Srtª Ferguson — George tentou se aproximar, me fazendo dar um passo para trás.

— Ele tem razão — Henry que estava se limitando a observar a cena, finalmente se manifestou — Irão estranhar se você aparecer carregando apenas uma sacola.

Eles não entendem, mesmo depois de tudo o que eu falei. Devem imaginar que somos perversos demais para nos importarmos com os que partem.

— Eu agradeço por terem cuidado de mim até aqui — Eu abaixei a cabeça — Foi muita gentileza com uma jovem desconhecida, mas eu acho melhor seguir meu caminho. Talvez eu encontre outros.

— Srtª Ferguson, eu tenho plena certeza que encontraremos uma maneira — o Sr Thorpe me chamou quando eu fiz uma breve mesura antes de me virar para a porta.

Eu estou sozinha agora, como eu consegui perder tudo duas vezes em menos de dois dias? Eu achei que teria esperanças de reconstruir algo da minha vida, mas o que eu posso fazer agora?

— Emma — Eu senti ambas as mãos de Henry em meus braços, me impedindo de me mover. 

Eu pisquei atordoada, com o calor das mãos do homem em contato com minha pele. Por que ele se importa se eu vou embora ou não?

Ele me virou em sua direção, me observando enquanto eu piscava, tentando obrigar as lágrimas a pararem de sair.

— Deixe sua sacola com o Sr Thorpe — Ele instruiu — Nós vamos atrás de uma mala para que você possa guardar suas coisas.

— Uma mala? 

— Ele tem razão — Henry me soltou — Será estranho se você aparecer com essa sacola, mas também será estranho se você aparecer de mãos vazias.

— Eu não tenho dinheiro para comprar uma mala — Eu apontei o óbvio.

— Eu tenho, não se preocupe com isso — Ele retirou a sacola de minha mão com cuidado, estendendo ao amigo.

— Eu não tenho como retribuir — Eu olhei em seus olhos tentando entender o que se passava em sua mente.

— Eu não estou esperando uma retribuição — Ele garantiu.

— Então por que? — Eu insisti na tentativa de encontrar uma resposta. 

— Eu quero que você fique bem — Ele respondeu como se fosse óbvio.

Eu não pude impedir minhas lágrimas de voltarem a cair. Por que ele se importa? Ele nem me conhece. Por que alguém se importaria?

Eu me aproximei, e antes que ele pudesse reagir eu encostei ambas as mãos em seu peitoral, descansando minha cabeça ali, o deixando tenso e sem reação. Eu pensei em me afastar por um momento, mas então seus braços me envolveram, me transmitindo mais uma vez aquele calor.

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