O fim da tarde tingia o céu com tons suaves de laranja e dourado, enquanto Carly e Serina dividiam uma taça de sorvete, sentadas em uma mesa próxima à vitrine da sorveteria favorita da infância. Os avós moraram ali por anos, a mãe tinha crescido naquela rua.O lugar não havia mudado tanto, o letreiro "Gelato Kadosh" ainda piscava em azul neon. As mesas redondas com cadeiras coloridas, o som suave de um sax ao fundo. O aroma de casquinhas frescas misturava-se com risadas de crianças, e a sensação era reconfortante.Carly deu uma risadinha leve, o olhar perdido na rua.— Acabei falando sobre aquele assunto com Pedro. — Suspirou, como quem tira um peso dos ombros.Serina levantou os olhos, com espanto.— Carline, você foi atrás dele? — Indagou, enquanto pegava uma colherada de sorvete. — Quer dizer, você ama ele mesmo.A irmã passou o dedo pela lateral do copo onde derretia a combinação clássica: chocolate, baunilha e creme. O trio que nunca falhava.— Apesar de tudo... ainda gosto muito
A noite começava a ganhar vida no salão principal do El Dourado, cenário da tradicional cerimônia anual do hospital. Era o ápice do ano para os profissionais da saúde, um momento de reconhecimento pelas batalhas diárias e pelas vidas transformadas ao longo do caminho. Luzes sofisticadas refletiam nos lustres de cristal, enquanto uma música suave preenchia o ambiente.Os convidados trocavam sorrisos, brindes e abraços calorosos, celebrando com entusiasmo. E ali, em meio ao brilho da festa, estava a deslumbrante fisioterapeuta Carly Ramires. Seu nome ecoou pelos alto-falantes, chamando-a ao palco.Ela caminhou sob os holofotes com um sorriso mecânico, recebendo o prêmio de excelência profissional. O troféu nas mãos não suavizava o incômodo em seu peito. "O que eu estou comemorando, afinal?", pensou. Enquanto descia os degraus, os cumprimentos pareciam distantes.— Parabéns, Carly. Você merece! — diziam os colegas.Mas por dentro, ela sabia: aquele reconhecimento não era suficiente.À mar
O culto havia encerrado, Pedro estava sentindo-se leve. A comunhão daquele lugar sempre lhe trazia paz, mas, ultimamente, os dias não estavam fáceis. Principalmente porque tinha alguns sentimentos reclusos, algo que o inquietava. Nisso, acabou saindo com pressa da igreja. Enquanto caminhava em direção ao estacionamento, seu olhar foi atraído pela lanchonete da esquina.Lá estava ela, sozinha, distraída no celular, tomando um milkshake. Seus olhos paralisaram naquela imagem. A lembrança do primeiro encontro entre os dois surgiu com nitidez. Os olhos claros e expressivos, que à primeira vista pareceram assustados. Os lábios delicados, a postura confiante dela. Na época, ele chegou a imaginar que uma mulher como aquela só podia ser comprometida. Lhe tratou com respeito. Era muito preciosa. Mas ele estava chateado com ela, porque sem aviso algum, simplesmente... se afastou.Pedro hesitou. Devo ir até ela... ou é melhor ignorar isso? Pensou.A dúvida o fez andar de um lado para o outro, de
Para Pedro, o funeral do seu pai foi um dos momentos mais difíceis que ele enfrentou na vida. O homem que lhe ensinou tudo sobre fé, caráter e determinação, agora partia, deixando um vazio impossível de preencher. Durante a cerimônia, sua mãe estava inconsolável, e Pedro tentava ser forte por ela. Mas, no fundo, ele também estava destruído.Entre os rostos conhecidos que vieram prestar condolências, um, em especial, chamou sua atenção. Ele avistou de longe um homem alto, de terno impecável, óculos escuros e expressão séria que desceu de um carro preto e vinha caminhando na direção deles. Pedro não precisava de apresentações. Ele reconheceria seu irmão mais velho em qualquer lugar.— Gutto… — murmurou Pedro, engolindo a seco, surpreso.Gusttavo Filho, ou Gutto, como era chamado pelos mais íntimos e a família, ele morava em Nova York há anos. Advogado criminal, levava uma vida intensa e quase nunca vinha ao Brasil. Pedro mal se lembrava da última vez que o viu pessoalmente. O irmão reti
Pedro estava exausto. O luto pesava sobre seus ombros como uma corrente invisível que o arrastava para um vazio difícil de escapar. Desde o enterro do pai, sua mente não encontrava descanso. As lembranças vinham e iam, cada uma delas carregada de culpa e saudade. Carly percebeu isso. Então, assim que ela o viu entrar pelo elevador para ir embora de mais um expediente, ela correu para o acompanhar. Ele mal a cumprimentou. Seu olhar estava perdido, os olhos avermelhados denunciavam as noites sem sono. Sem pensar muito, ela o envolveu em um abraço firme, como se quisesse segurá-lo no presente, impedindo que ele se perdesse em sua própria dor.Erguendo o olhar para o teto, ela murmurou suavemente:— Vamos sair daqui? Ir para algum lugar? O que acha?Pedro hesitou, sem entender, piscando algumas vezes antes de responder.— Como assim? Você não está com pressa para ir para casa?Ela sorriu de leve.— Agora, meu compromisso é com você! Serei sua terapeuta hoje. Acredito que você precisa de a
O vento frio soprava pela fresta da porta entreaberta, carregando consigo um som inquietante e dramático, "Moonlight Sonata - Beethoven." Carly, ainda criança, espiava o quarto dos pais, segurando a respiração, sentindo seu coração bater acelerado no peito. Na sacada, sua mãe estava parada, com os cabelos bagunçados pelo vento noturno, segurando Serina, ainda bebê nos braços. Seu olhar parecia distante, perdido em um ponto além da escuridão. Algo na cena fazia Carly estremecer. De repente, a porta do quarto se abriu com força, e seu pai surgiu apressado.— O que você pensa que está fazendo?! — a voz dele soou como um trovão na noite.Ele avançou rapidamente, segurando o braço da esposa com firmeza e arrancando Serina de seus braços. Carly viu quando sua mãe desabou na cama, chorando de forma desesperada, como se sua alma estivesse em pedaços.— Você enlouqueceu? — o pai gritou, a voz carregada de medo e desespero.A mãe apenas soluçava, escondendo o rosto entre as mãos, incapaz de re
Pedro não conseguia raciocinar muito bem naquela noite. Depois do pedido e do beijo que deu em Carly, sua mente estava um verdadeiro caos. Se antes já se preocupava com seus sentimentos, agora precisava lidar com as consequências de suas atitudes. Ao chegar em casa, percebeu que sua mãe ainda estava acordada. A luz do quarto dela permanecia acesa, e, assim que ele passou pelo corredor, Helena chamou seu nome.— Pedro, aconteceu alguma coisa? Você parece assustado.Ele hesitou por um momento, evitando encará-la diretamente.— Não, está tudo bem, mãe. Só estou meio cansado.Helena o observou por alguns instantes da porta, como se tentasse decifrá-lo.— Tem certeza? Você está com uma cara de culpado… Sei quando algo está te incomodando.Pedro respirou fundo, mantendo a postura firme.— Só um dia longo, mãe! Vou tomar um banho e descansar. Sem dar espaço para mais perguntas, seguiu para o quarto dele. Helena não insistiu, mas também não parecia convencida. Ela tinha até "nome" para quem
O hospital estava em seu ritmo acelerado quando Carly recebeu um chamado para a ala de reabilitação. Como fisioterapeuta especializada em traumatologia, era comum que fosse requisitada para casos de recuperação de traumas mais complexos. Mas, a maneira como tudo foi informado a deixou intrigada.— Dra. Carly, você foi requisitada para um caso de reabilitação na área VIP. — avisou a secretária do setor.Ela parou de revisar os prontuários e franziu o cenho.— O que aconteceu?— Ainda não temos detalhes. A informação que circula é que o paciente sofreu uma queda de cavalo. Teve múltiplas fraturas nas costelas e uma contusão severa na perna direita. Parece um caso sério.Carly assentiu, processando a informação.— Quem solicitou minha presença para o caso? A secretária hesitou.— O pedido veio diretamente do Dr. Alberto.A menção ao nome dele a fez se retesar, com um nó no estômago. Carly não gostava dele. E tinha as suas razões.Dr. Alberto Farias não era apenas o diretor do setor de