DAVINAO cheiro de roupa esquecida e um leve perfume floral envelhecido pairava no ar. Minha mãe estava na cama, imóvel, como se o tempo tivesse parado para ela. Seus olhos estavam abertos, mas vazios, fixos no teto.O quarto estava mergulhado em penumbra. As cortinas grossas bloqueavam a luz do sol que tentava, insistentemente, atravessar as janelas.— Mãe... — Minha voz soou mais suave do que eu pretendia, quase como um pedido. Entrei no quarto com cuidado, como quem invade um santuário quebrado. Já se passou um mês. Trinta longos e sufocantes dias desde que perdemos o papai.Ela não respondeu. Nem piscou.Me aproximei da cama, inclinando-me para alcançar seu olhar.— Eu sei que está doendo, mas... eu também estou aqui, mãe. Eu preciso de você. — Meus olhos começaram a arder, mas eu segurei o choro. Alguém precisava ser forte.Mais uma vez, silêncio.Suspirei, passando a mão pelo rosto. A cada dia, a esperança de trazê-la de volta parecia diminuir. Era como se a morte do papai tivess
DAVINA—Você não deveria está aqui! — Gutemberg falou, o maxilar trancado e a voz mortal, o tipo de tom que faz a nuca arrepiar.Eu pisquei, completamente desnorteada. Não o via fazia um mês, e agora ele estava ali, na porta de Meia-noite, parecendo mais carrancudo e ameaçador do que nunca.— Eu… — as palavras simplesmente desapareceram da minha boca. — Eu só… trouxe um bolo.Ótimo, Davina. Isso definitivamente vai deixar as coisas menos estranhas.Gutemberg arqueou uma sobrancelha, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Meia-noite apareceu atrás dele, como se o tivesse chamado com o pensamento.— Você trouxe. — ele disse, empurrando Gutemberg para o lado de forma displicente. Seus olhos semicerrados passaram por mim, do bolo nas minhas mãos até o meu rosto. Era quase como se ele estivesse com preguiça de lidar comigo, mas ainda assim curioso o suficiente para não me dispensar.— Tem morango nisso aí? — Meia-noite perguntou, apontando com o queixo para o bolo.Eu balancei a c
DAVINAO relógio parecia zombar da minha falta de paciência. A última aula do dia sempre se arrastava, mas, hoje, cada segundo parecia uma eternidade. Não era culpa do professor, ele fazia o possível para nos manter interessados, mas a sensação persistente de ser observada me tirava qualquer foco.Principalmente, porque eu sabia de onde vinham os olhares.Tom.Eu fingia não notar, mas os olhares dele eram óbvios, mesmo que ele tentasse ser discreto. Toda vez que ele achava que eu não estava olhando, lá estava ele, encarando. Antes, isso teria me feito corar. Hoje, só fazia o sangue ferver nas minhas veias.Ele tinha a audácia de me encarar assim enquanto ainda repostava fotos felizes com a noiva grávida nas redes sociais. "Nossa família está crescendo", dizia a legenda da última postagem dela.Sus
DAVINAEu estava tentando manter a compostura, mas a forma como Gutemberg me olhava me dava nos nervos. Era aquele olhar que dizia que ele sabia algo que eu não sabia. Algo que ele estava guardando, e isso me irritava ainda mais. Então, quando ele finalmente abriu a boca, eu já sabia que vinha coisa ruim.— O que foi? — ele perguntou, com aquele tom zombeteiro que fazia minha paciência evaporar. — Tá achando que o Meia-noite vai te convidar para um chá da tarde se você continuar levando bolo pra ele?Minhas sobrancelhas se ergueram, e eu encarei ele como se tivesse perdido a cabeça.— Do que você está falando? — cuspi, cruzando os braços.Ele deu de ombros, o sorriso torto brincando em seus lábios, mas os olhos dele pareciam... chateados? Não. Isso era impossível. Gutemberg não se chateava com nada.
GUTEMBERGO som dos talheres tilintando contra os pratos caros me fazia querer gritar. A mansão dos meus pais nunca foi um lar; sempre foi um museu, um palco onde a felicidade era apenas uma encenação barata. E hoje não era diferente.Minha mãe, sentada na cabeceira da mesa com um sorriso forçado, falava sobre um jantar beneficente que Jimmy, meu pai, planejava realizar em breve.— Eles vão amar a ideia, querida. Quem não gostaria de ajudar crianças carentes? — A voz dela era doce, mas sem alma. Apenas um eco de quem ela costumava ser.Fingi estar interessado, cortando o pedaço de carne no meu prato sem realmente pensar em comê-lo. Eu sabia que ela não acreditava em uma palavra do que dizia. As doações, as festas, tudo era para alimentar o ego de Jimmy e manter as aparências.Olhei para ela e senti aquele aperto familiar no peito. Seu cabelo loiro platinado estava perfeitamente arrumado, o corte elegante acima dos ombros. Ela parec
GUTEMBERGDeixei o banheiro com a toalha pendurada no ombro, secando meu cabelo molhado. Ainda estava processando as palavras de Timmy quando parei de repente no corredor. Apertei os olhos, tentando entender se estava imaginando coisas. Talvez fosse minha mãe, ou minha avó. Mas não.Eu parei na porta da sala, e lá estava ele. Gutemberg.Ele estava sentado confortavelmente no sofá, como se fosse dono da casa. Uma perna cruzada casualmente sobre o joelho, as mãos apoiadas nos braços do móvel. Ele usava uma camisa preta que destacava os ombros largos, jeans escuros e botas. Havia algo novo nele, uma corrente fina de ouro com um pingente de cristal pendurado. Parecia uma coisa velha, mas intrigante. Os dedos, cobertos de anéis, batiam suavemente no sofá como se ele estivesse esperando por algo ou alguém.Ele ergueu os olhos e sorriu de leve ao me ver parada ali, completamente congelada, com uma expressão provavelmente ridícula.— Você vai ficar me encarando como uma pequena fã? É um pouco
DAVINA— Você só pode estar de brincadeira!A voz de Timmy ecoou pela sala como um trovão, me fazendo girar sobre os calcanhares. Ele entrou furioso, com o cabelo ainda molhado, apesar de já ter tomado banho antes de mim. Num piscar de olhos, ele agarrou Gutemberg pelo colarinho.— O que você acha que está fazendo? — ele rosnou, os olhos brilhando de raiva.Gutemberg o encarou, surpreso, levando um segundo para entender de onde Timmy tinha surgido.— Como diabos você entrou aqui? — Gutemberg perguntou, incrédulo.Timmy soltou uma risada seca, cheia de ironia.— Eu deveria perguntar o mesmo para você. Mas isso não importa agora. O que importa é que você quebrou o nosso acordo.— Acordo? — repeti, confusa, olhando de um para o outro.Timmy ignorou minha pergunta e apertou mais o co
DAVINAEstreitei os olhos.— Então? O que vocês estão escondendo?— Nada — Timmy respondeu rápido demais, desviando o olhar.Hmmm.Mentiroso.— Não mente. — Minha voz estava carregada de mágoa, mas também de determinação. — Eu consigo sentir. Vocês estão escondendo alguma coisa.Gutemberg suspirou, esfregando a nuca, enquanto Timmy parecia à beira de explodir.— Não estamos escondendo nada — Gutemberg disse, mas o tom dele não era convincente.— Você é um péssimo mentiroso — retruquei, encarando os dois. — Digam logo. O que mais vocês sabem?Timmy bufou, chutando o chão com força antes de se virar para mim.— Você não vai gostar, Davina.