GUTEMBERGMe sentei na beira do colchão enquanto o peso da noite passada pairava como um nevoeiro sufocante. A boate, KJ, o caos... Tudo uma bagunça que eu sabia que acabaria em um confronto inevitável com meu pai. A madrugada tinha sido longa, e o relógio já marcava quase oito da manhã. Eu não dormi nem um minuto. Como poderia?Só que isso era o de menos. O que realmente queimava em mim era outra coisa. Pryia.KJ tinha traficado minha ex, o pior, é que havia uma chance real de meu pai estar envolvido. Não podia falar o nome dela, nem mesmo cogitar que ele soubesse sobre nossa ligação. Eu precisava descobrir se foi um golpe consciente ou apenas coincidência.Encostei na bancada da cozinha, em um dos poucos móveis que eu mesmo tinha escolhido. O esconderijo era funcional, discreto, mas nada aqui parecia meu. Fiz um café e bebi, então tomei um banho e troquei de roupa, escolhendo algo que não chamasse atenção. Olhei rapidamente para o espelho rachado do banheiro. Meus olhos estavam fund
GUTEMBERGAssim que abri a porta do apartamento, a cena que me aguardava me atingiu como um soco no estômago. Davina estava lá, no meio da sala, mas não estava sozinha.Timmy e Aaron flanqueavam os lados dela como anjos protetores. Ou talvez como demônios prontos para destruir o mundo por ela. Eles me encararam com olhares duros, como se qualquer movimento em falso fosse o suficiente para que partissem para cima de mim.Mas não eram eles que prendiam minha atenção. Era Davina.Os olhos dela estavam inchados e vermelhos, como se ela tivesse chorado a noite inteira. O cabelo despenteado caía em mechas rebeldes sobre os ombros, e as roupas que ela usava, um moletom folgado e uma blusa larga, a faziam parecer menor do que realmente era.Ela parecia... quebrada. Quebrada de uma forma que eu nunca tinha visto antes. E tão triste. Uma tristeza que parecia devorar cada parte dela, deixando só os pedaços.Por um momento, me vi sem palavras. Era difícil associar essa figura à Davina que eu conh
DAVINAO vestido preto parecia estranho no meu corpo. Ele era simples, sem detalhes, apenas uma peça reta que eu nunca teria escolhido usar por vontade própria. Mas não era sobre mim. Nada disso era.A barra do vestido roçou na pele dos meus joelhos quando me virei para o espelho. Meus olhos estavam inchados, vermelhos, como se eu tivesse chorado mais do que meu corpo era capaz de suportar. Mas a verdade é que o choro tinha parado horas atrás, substituído por um vazio que latejava na minha cabeça e apertava meu peito. Meu cabelo estava preso de qualquer jeito, eu não tinha energia para me importar. Passei o dedo nos lábios rachados, sentindo a textura áspera, como se fosse uma lembrança física de tudo que eu estava tentando apagar.O quarto ao meu redor parecia menor do que nunca. As paredes que costumavam me acolher agora pareciam sufocar. O cheiro do novo aromatizante de limão que comprei se misturava ao perfume floral que minha mãe borrifou no corredor, tentando mascarar o cheiro d
DAVINATimmy estava ali, encostado na parede do corredor, com os braços cruzados e uma expressão difícil de decifrar. Seu cabelo estava bagunçado, como se ele tivesse passado as mãos por ele repetidas vezes, e havia um cansaço em seus olhos que parecia espelhar o meu.Então eu o vi de verdade. A calça jeans preta, os coturnos impecáveis, a camisa social cinza que moldava os ombros largos dele de um jeito que eu nunca tinha reparado antes. Era diferente. Novo. Ele estava bonito demais para um dia como esse, e eu não conseguia parar de olhar.Meu coração apertou, não pela dor do luto, mas por outra coisa, algo que queimava na base do meu estômago e subia até minha garganta. Era errado pensar nisso agora, mas eu não conseguia evitar a lembrança de como os lábios dele se sentiram contra os meus, como se ele soubesse exatamente como me desmontar.E Deus, eu queria sentir aquilo de novo. Queria que ele cruzasse os poucos passos que nos separavam, me puxasse para perto e me fizesse esquecer d
DAVINAMeu corpo congelou no lugar, meus pés pressionando contra a terra suja do cemitério. Minha sorte é que os sapatos eram fechados na parte de cima, então eu não precisava me preocupar em carregar a areia de volta para casa. Não que isso importasse.— Aquele maldito!Ele era o responsável por tudo isso. Pela morte do meu pai, pela destruição da minha família, pelo buraco negro que agora engolia tudo à minha volta.KJ estava ali, de pé, como se fosse um convidado qualquer, um espectador inocente. Mas os olhos dele... Eles me encaravam de volta, desafiadores, sabendo exatamente o que eu estava pensando.Minha respiração ficou mais pesada, e um calor tomou conta de mim, queimando o vazio que eu sentia até agora.— Davina — Timmy chamou meu nome, a voz baixa e urgente ao meu lado, como se pudesse sentir que algo estava errado.Mas eu não conseguia desviar o olhar.Eu queria gritar, queria arrancá-lo dali e fazê-lo pagar por cada lágrima que minha mãe derramava, por cada noite de insôn
DAVINAO quarto da mãe estava mais escuro do que eu me lembrava, mesmo com a luz do abajur acesa. Eu a ajudava a se deitar na cama que, de algum jeito, parecia ainda maior e mais vazia naquela noite. Há apenas algumas horas, estávamos no cemitério, e agora minha mãe parecia ainda mais fora de si do que quando Pryia partiu. Seus olhos estavam opacos, perdidos em algum lugar que eu não conseguia acompanhar.Enquanto puxava o cobertor até os ombros dela, senti um peso esmagador. Tinha certeza de que minha mãe estava se culpando por colocar meu pai para fora ao invés de ajudá-lo, por não conseguir salvar a família de se despedaçar. Mas a verdade é que ela fez o possível. O vício do meu pai com os jogos era algo que só ele podia vencer.Quisesse ou não, ele havia deixado uma parte da família danificada. Pryia fugiu sem sequer se despedir, buscando uma vida melhor, uma vida que não nos incluía. E agora ele estava morto. Muita tragédia para uma única pessoa carregar. Eu sentia pena da minha
DAVINA— KJ agiu por conta própria.Algo no olhar de Gutemberg não combinava com suas palavras, como se ele não estivesse completamente certo do que dizia.Antes que eu pudesse pressioná-lo mais, Aaron soltou um grito.— Ai, merda! — ele exclamou, balançando a mão no ar. Claramente tinha se queimado com o frango quente.Eu ergui uma sobrancelha, enquanto Timmy resmungava.— Idiota.Aaron ignorou o comentário e soprou os dedos, pegando um pedaço de frango com mais cuidado dessa vez. A cena me distraiu por um segundo, mas logo voltei minha atenção para Gutemberg.— E você? — Gutemberg se virou para Timmy, estreitando os olhos. — O que você sabe sobre meu pai?Timmy o encarou, os dois medindo forças em silêncio. Claro que tinham que transformar tudo em uma disputa de egos. Não resisti: levantei, fui até a tigela de frango e peguei uma coxa. Caminhei até a geladeira, abri e peguei o ketchup. Sem cerimônia, espalhei um pouco no frango e dei uma mordida.— Urgh, você é estranha — Aaron recla
DAVINAAs luzes amareladas iluminavam o ambiente com um calor acolhedor, mas o clima entre nós era tudo menos leve. Aaron encostou-se na mesa, com uma expressão despretensiosa, enquanto falava.— Foi assim que conheci o KJ — disse ele, girando a caneca de chá nas mãos. Seu tom era casual, mas carregado de algo mais profundo. — Descobri que fui adotado de forma ilegal. Meus pais me compraram de KJ.Houve um silêncio sufocante. O som do ponteiro do relógio na parede parecia se amplificar, marcando cada segundo de tensão no ar.Aaron deu de ombros, como se estivesse comentando algo trivial.— Provavelmente minha mãe biológica é uma drogada ou alguém muito pobre. É assim que o tráfico de pessoas funciona, não?Encostei-me no balcão com uma xícara de chá nas mãos, deixando escapar um suspiro baixo. Eu estava sentada no banco mais próximo da janela. Gutemberg, por outro lado, estava mais quieto do que o normal, seus olhos fixos na mesa, enquanto Timmy cruzava os braços e franzia a testa. Ele