Amanda
Os ingleses são conhecidos por sua pontualidade, mas dessa vez fiz questão de chegar atrasada ao apartamento de Samantha. Não quero passar a imagem de que estou desesperada pelo acordo. Durante todo o dia, minhas preocupações me assolaram, não me deixando em paz nem por um minuto, e cheguei à conclusão de que me casar com esse estranho é o melhor caminho a seguir. Só preciso conhecê-lo melhor para ver se realmente tudo isso dará certo. Seja o que Deus quiser!
Toco a campainha, Samantha logo surge na porta, mas, ao invés de me fazer entrar, me empurra para fora. Então me avalia.
― Pelo visto veio direto do trabalho?
― Sim, por quê?
― Ainda bem. Adoro quando se veste assim. Está muito atraente.
Estou, mas prefiro o rosto lavado, do que essa maquiagem. Uma bela calça social ou jeans, não importa, do que esse vestido tubinho mostarda. Uma blusa legal ou camiseta, combinando com jaqueta ou blazer. Sapatos de salto baixo do que o alto que uso agora. Mas fazer o quê? Não deu para passar em casa.
― Por que me empurrou para fora? Para comentar das minhas vestimentas?
Ela sorri e junta as mãos.
― Não. Para te preparar. Karan é muito, mas muito gato. Não. Gato não. Gato não. Ele é um leão de bonito.
Samantha é exagerada na sua ótica sobre as coisas, por isso eu não me abalo com suas palavras.
― Você é uma mulher casada, então menos.
Ela ri.
― Sou casada, não cega.
Eu solto o ar dentro da minha máscara de proteção. Detesto ela!
― Bem, e daí que o cara é bonito? É apenas um acordo comercial, lembra?
― Então não quer saber nem um pouquinho como ele é antes de entrar?
Ela aguça minha curiosidade:
― Como ele é?
Samantha solta o ar em satisfação.
― Alto, musculoso, bronzeado. Os cabelos são cheios de um lindo castanho-escuro. Barba semicerrada. Olhos azuis do tipo céu aberto. E cheiroso, muito cheiroso.
― Hum, bom para ele.
― Bom para ele? Bom para você! Já pensou em se casar com um homem assim? E se no fundo ele é o cara ideal para você?
― Ele é sírio. Deve querer alguém de sua cultura. E pare já com isso! Você está me deixando mais nervosa do que estou. É apenas um acordo de negócios.
― Ué? Você não vive me dizendo que gostaria de conhecer alguém bacana. Quem sabe suas preces foram ouvidas?
― Samantha!
― Samantha o quê? Você deveria abrir mais o seu coração. Você sabe muito bem como está difícil encontrar um cara mais velho, interessante.
― Quantos anos ele tem?
― Se interessou, hein?
Faço uma careta para ela.
― Estou apenas curiosa. Ele é velho?
― Maduro. Deve ter uns trinta anos. Por aí. Idade ideal para você.
Cinco anos mais velho que eu.
Suspiro.
― Samantha. É apenas um acordo comercial. Então para de encher minha cabeça. Você mesma frisou isso várias vezes para me fazer aceitar.
― Querida, eu também pensava assim até conhecer o homem. Ele é um deus árabe.
― Vamos parar com essa história e entrar?
― Tudo bem. E que Deus te ajude.
Com essa deixa, ela abre a porta e entra no apartamento. Eu meneio a cabeça e depois de respirar fundo a sigo.
Samantha fecha a porta atrás de nós.
Avanço na sala enquanto meus olhos focam os três homens conversando no sofá da sala. Eles estão sem máscaras. Jonas, marido de Samantha. Vitor. E...
Deus!
Eu que andava, paro. Simplesmente estaco quando meus olhos focam o homem sentado do outro lado do sofá.
Ele é simplesmente deslumbrante. Samantha não exagerou quando o enalteceu. Ela costuma aumentar tudo, mas dessa vez ela fez jus a ele.
E mais!
Ele se veste muito bem.
Adorei a calça jeans escura que combina perfeitamente com a jaqueta de couro preta. A camisa branca semiaberta no peito revela uma massa de pelos negros.
Como se pressentisse meus olhos sobre ele, ele vira o seu rosto na minha direção e seus olhos azuis da cor "céu aberto", como Samantha havia descrito, se encontram com os meus e, nessa hora, posso dizer que não consigo controlar as reações do meu corpo.
Deus!
A cor deles unidas às suas sobrancelhas bem-feitas e grossas, cílios longos, rosto quadrado e queixo firme me fazem estremecer. Imediatamente sinto um frio na barriga enquanto meu coração dispara dentro do meu peito.
Samantha passa ao meu lado sussurrando no meu ouvido:
― Eu te avisei.
Fungo.
Bem. E daí que o cara é maduro e bonito? É um pequeno preço que tenho que pagar.
Karan se levanta, não sorri e não faz nenhum movimento para se aproximar de mim.
Num gesto nervoso, puxo todos meus cabelos longos para o lado direito. Corajosamente avanço em sua direção.
Vitor se levanta quando me nota, seguido pelo marido de Samantha.
― Karan, essa é Amanda Lawrence, a garota que te falei.
Karan se inclina.
― Prazer em conhecê-la.
Lindo isso! Gostei!
Ele se ergue e olha para mim.
― Prazer em conhecê-lo, Karan.
― Amanda, retira a máscara. Não há ninguém contaminado aqui. ― Samantha surge ao meu lado dizendo.
Eu a olho insegura. Não por causa da máscara, mas eu me sinto mais protegida agora dentro dela.
― Não é bem assim. Eu mesmo relutei muito em retirá-la aqui. Há muitas pessoas assintomáticas ― Karan diz cheio de sotaque lindo, um que eu gosto muito. Droga, não deveria ― Se não quiser retirar tudo bem.
Hum. O vocabulário dele é bom… pensei que ele mal falasse o inglês.
― O Covid só mata velho. E não há nenhum idoso aqui ― O marido de Samantha, elucida.
― Não sei não. Já teve casos de pessoas da nossa idade morrendo ― Vitor combate.
Engraçado. Ele diz isso e não está usando máscara.
― Eu concordo com Jonas. É besteira ficar assim ― Samantha insiste.
Deus, resolvo retirar a droga da máscara antes que comecem uma discussão....
― Tudo bem, sem máscara então ― digo. Os olhos azuis do deus árabe imediatamente seguem o meu gesto enquanto minhas mãos retiram o zorro invertido do meu rosto ― Pronto!
― Bem. Agora, vamos deixá-los às sós e darmos uma voltinha no condomínio― Samantha diz arrastando os dois homens.
― Não precisa. ― Digo, de repente, me sentindo acanhada por ficar sozinha com Karan.
― Precisa sim. E vocês enquanto conversam se sirvam de alguma bebida. Há vinho, cerveja e refrigerante na geladeira. Se estiverem com fome, tem uma torta de frango maravilhosa no forno.
― Obrigada Samantha, mas acho que Amanda, como eu, prefere se deliciar de tudo isso quando voltarem ― Karan diz com sua voz grossa e modulada.
― Karan está certo. Vai em paz. Esperaremos vocês voltarem― digo com um sorriso para ela.
― Está certo. Então vamos homens.
Todos vestem a máscara e saem.
Encaro Karan que aponta o outro sofá à sua frente. Caminho lentamente até lá e me sento.
Mesmo com uma certa distância, sinto seu perfume, um aroma suave com um toque almiscarado. Exótico. Delicioso. Realmente esse homem cheira bem. Penso, de repente, apreciando a ideia de ficar sozinha com ele.
― Bem.... ― Digo com um sorrisinho sem graça iniciando a conversa, mas seu rosto vai se fechando e seus olhos azuis se tornam tão gélidos nos meus que meu sorriso morre e eu me calo.
― O que sabe sobre mim? ― ele questiona sem perda de tempo.
Meu coração está muito agitado, por isso puxo o ar buscando calma, enquanto seus olhos azuis seguram os meus.
― Não muito. Apenas que tem o dinheiro que preciso para liquidar minhas dívidas. Que é garçom e que trabalhamos em períodos diferentes, e por isso quase não nos encontraremos no meu apartamento caso haja o casamento.
― Então sabe o suficiente. É isso mesmo. Tenho o dinheiro que precisa, vamos trabalhar em horários diferentes, e nos finais de semana tentarei não quebrar sua rotina.
Seus olhos me desafiam a aceitar suas palavras sem questionamentos.
― Não acha normal eu querer conhecer melhor o homem que compartilharei o mesmo teto? Quero que me convença de que é uma boa pessoa. Só isso.
Ele parece ter dificuldade para focar meu rosto, ainda apreciando a vista. De repente, eu me sinto bem com isso. Faz tanto tempo que ninguém olha para mim desse jeito. Sei que sou culpada por isso, ultimamente tenho me mantido invisível, saído pouco.― O que quer saber mais sobre mim? ― questiona secamente.Eu empino meu nariz, encarando o arrogante e que, infelizmente, é lindo demais para não ser notado.― Gostaria de saber por que você escolheu viver aqui? Geralmente os sírios buscam refúgio na Sérvia, Alemanha, Suécia, entre outros países.Ele solta o ar e olha para o chão, como se fugisse de meus olhos. Quando olha para mim, os sulcos da testa estão mais profundos, sua respiração sai do normal, seu olhar expressa dor, tristeza, solidão.― Antes da guerra civil estourar, eu viajei como turista para cá com meus pais e meu irmão caçula. Foi bom estar com eles aqui. Por isso escolhi esse país para recomeçar.Eu engulo em seco. Será que morreram todos? Por isso ele me encara com essa t
Minutos depois, estou sentada no sofá, bebendo uma taça de vinho gelado, refletindo sobre a conversa que tive com aquele sírio. Chego à conclusão: não terei problemas com Karan. Ele é um homem introspectivo e sabe bem os seus limites. Então, por que estou me sentindo tão estranha?A porta se abre, e meus amigos entram, tirando as máscaras e rindo muito de algo. Todos param de falar quando me veem sozinha no sofá.―E Karan? ―Samantha me questiona, e seu rosto se torna severo. ―Espera aí! Você não o colocou para correr, não é? Não haverá casamento, é isso?―Sim, haverá. Ele ficou de marcar a data.Samantha solta o ar.―Puxa! Que bom! Mas, onde ele está?―Foi embora.―Ele disse por que foi embora? ―Vitor me questiona.―Disse que estava cansado.Vitor balança a cabeça em negativa.―Desculpa dele. Hoje o movimento foi baixo. Esse vírus tem atrapalhado muito os comércios e restaurantes.Samantha se vira para eles:―Rapazes, por que não vão colocando a mesa? Só vou trocar uma palavrinha com
AmandaCom o dinheiro para liquidar minhas dívidas as preocupações acabaram, mas não estou em paz. Eu me sinto agitada.Não sei por que me sinto assim?Era para eu estar comemorando por ele ter agido de forma arredia, seca; no entanto, algo naquele sírio mexeu comigo.Ele conseguiu o impossível: despertar minha atenção.Por ser maduro e bonito?Não. Não é isso.Claro que sua masculinidade me atraiu bastante, mas acredito que seja mais do que isso. Talvez por ele ser diferente dos caras vazios de hoje em dia. Um bando de babacas mais chegados aos prazeres da carne do que no intelectual.Dou uma inspirada funda e me viro do outro lado da cama. Meus olhos nesta hora focam o rádio-relógio.Uma hora da manhã.Deus! Preciso dormir para amanhã enfrentar mais um dia de trabalho.Duas semanas depois...Casamento de Amanda Lawrence e Karan Bar QamarAmandaDeus! Estou nervosa como uma verdadeira noiva! Penso sentindo o suor frio surgindo na minha testa. Não deveria. As dívidas estão pagas, é só
―Oi, Karan. Não sei se reparou, mas temos plateia. Achei melhor que todas as garotas do meu trabalho acreditassem nessa far...Karan interrompe o que eu ia dizer quando ele retira sua máscara e dá um passo em minha direção. Então ele ergue sua mão e retira a minha com delicadeza e a entrega para mim. Eu a pego da mão dele tentando ignorar minhas pernas trêmulas, dizendo para mim mesma que isso não significa nada para mim. Quase infarto quando sinto seu braço me envolvendo e me puxando ao encontro de sua montanha de músculos. Seu perfume me deixa quente e atordoada. Ergo meu rosto para ele enquanto o seu desce e sua testa pousa na minha. Fica um tempo assim e então seu lindos olhos azuis procuram os meus e eu leio neles o que ele está prestes a fazer.―Relaxe.Relaxar?Eu precisaria estar morta para ignorar esse homem. A perfeição destes olhos azuis sombreados por cílios longos e negros. A barba escura bem-feita. Os lábios cheios na medida certa, os dentes certinhos e muito brancos, fo
Começamos a fazer poses bonitas para o fotógrafo, nossos corpos ajustados às exigências da câmera, enquanto os sorrisos se tornam apenas sombras de felicidade fabricada. Cada clique captura um teatro bem ensaiado, o quadro de um casal apaixonado que não existe de verdade. Mas é quando sinto seus dedos apertarem minha cintura, com mais intenção do que o esperado, que meu coração dispara e uma avalanche de sentimentos toma conta de mim.Seus lábios ainda pressionam os meus, e por um momento, é como se o mundo ao nosso redor desaparecesse, deixando apenas a presença dele e a força irresistível desse toque. Os flashes continuam, me lembrando que tudo isso é apenas um cenário, uma farsa para os outros. Ainda assim, a raiva cresce em mim como uma chama alimentada por oxigênio. Raiva de como ele me afeta, de como cada parte de mim parece ceder àquele contato, enquanto eu sei que para ele não é nada mais do que uma cena bem atuada.Sua mão escorrega para o meu quadril, apertando com firmeza,
Sigo até o meu apartamento, com Karan logo atrás. O som dos passos dele parece ecoar mais alto no corredor, como se cada um fosse um lembrete da presença pesada que ele traz. Quando alcançamos a porta, abro e seguro-a para que ele entre. Assim que ele cruza o limiar, fecho a porta, sentindo o clique da tranca como uma confirmação da nossa convivência inevitável.Ao encará-lo na sala, uma sensação desconfortável me atinge: o ambiente parece menor, quase sufocante. A altura de Karan e o porte de seus ombros, que já chamavam atenção antes, agora parecem dominar o espaço. Minhas mãos se entrelaçam nervosamente, e percebo que minha calma escapou sem eu perceber.— Como sabe, você terá um quarto para dormir — começo, a voz levemente trêmula, mas tentando soar firme. — E, caso os agentes nos façam uma visita, sua cama deve estar sempre arrumada para passar a impressão de que é um quarto de hóspedes.Dou uma pausa, observando-o, mas ele não dá nenhum sinal de reação. Nem uma palavra, nem um m
Lembranças do meu casamento com SamiraNeste dia, o sheik Abdul Bashir nos aguardava para oficializar nosso casamento em uma mesquita a quatro quilômetros da casa de Samira. Meu coração estava acelerado, não apenas pelo calor sufocante do dia, mas pela proximidade de realizar o sonho que alimentamos juntos por tanto tempo.Paro meu carro em frente ao portão dela e deixo o motor ligado para manter o ar-condicionado funcionando. Mesmo assim, parece que o calor não se dissipa; é como se o próprio destino estivesse pulsando ao meu redor. Quando Samira aparece, meu mundo se ilumina. Ela está lindíssima. Um hijab branco cobre seus cabelos negros como seda, os olhos destacam-se em contraste com a maquiagem impecável, e o vestido, da mesma cor do lenço, é ornamentado com delicadas faixas douradas que cintilam sob o sol.Nossos olhares se encontram. Os olhos dela, negros como uma noite sem lua, brilham com emoção. Ela sorri, e eu sinto o coração vacilar, tomado por uma felicidade tão intensa q
Fecho a porta, mas meu coração ainda está acelerado. A visão daquele deus árabe sem camisa não sai da minha mente. É o tipo de beleza que poderia deixar até uma freira sem fala. Aquele peito largo, coberto por uma massa de pelos castanhos... uma perdição. Mas não foi isso que me deixou inquieta e sim aquela cicatriz.Deus do céu, o que pode ter acontecido com ele? É enorme, brutal, como se contasse uma história que ninguém deveria viver. Fecho os olhos por um momento, tentando afastar a imagem, mas ela continua pulsando na minha mente. Algo grave deixou essa marca em Karan. Algo que ele nunca vai me contar.Suspiro, tentando me recompor. Parece que essa semana será assim: refeições solitárias, cada um no seu canto. Por mais que eu odeie admitir, já estou acostumada com a solidão. Desde antes da morte da minha mãe, convivo bem com isso. Por que agora seria diferente?E se pensar bem, comer com ele seria um ato estranho e sua frieza, seu mal humor têm deixado muito clara sua intenção: c